Opinião

UIF não é uma zona livre para o Ministério Público e para as polícias

Autores

  • Ticiano Figueiredo

    é advogado sócio do escritório Figueiredo e Velloso Advogados e mestre em Administração Contemporânea das Organizações pela Fundação Dom Cabral (FDC).

  • Pedro Ivo Velloso

    é sócio do Figueiredo e Velloso Advogados mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília UnB e doutorando em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP).

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

4 de dezembro de 2019, 10h54

Muito se noticiou que, por um expressivo placar de 9 a 2, o Supremo Tribunal Federal permitiu o compartilhamento de dados por parte da Receita Federal e da Unidade de Inteligência Fiscal (UIF), antigo  Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, sem a necessidade de autorização judicial prévia. Todavia, a discussão mais relevante ainda deve ocorrer nesta quarta-feira, ocasião em que o Plenário vai fixar a tese decorrente do julgamento com repercussão geral. No julgamento, espera-se que a corte defina quais as interações entre os referidos órgãos estão isentas de autorização judicial.

Para compreender por que a decisão ainda não tomou os seus contornos definitivos, é preciso dar um passo para trás. Antes de mais nada, é preciso entender que as interações entre as autoridades responsáveis pela investigação, de um lado, e a Receita e a UIF, de outro. O presente artigo vai focar as interações entre Ministério Público, polícia e UIF, mas seus pressupostos se aplicam também às interações com a Receita Federal.

A primeira espécie de interação consiste no fornecimento espontâneo de informação pela UIF ao MP e às polícias. A segunda espécie de operações ocorre quando a UIF recebe pedidos para análise sobre pessoas até então sem suspeita, com base em requisição do MP ou da polícia.

No primeiro cenário, o que se tem é o funcionamento esperado da unidade de inteligência financeira: cabe à UIF receber comunicações de operações dos entes obrigados (bancos, corretoras, seguradoras etc.). Com base nessas informações e, a partir de um know how específico, denominado inteligência financeira, a UIF busca padrões e correlações nas operações para identificar possíveis suspeitas de lavagem de ativos ou de outros delitos. Em caso positivo, tem-se o principal fruto do trabalho da UIF: um relatório de inteligência financeira (chamado por sua sigla RIF), que é encaminhado espontaneamente para aqueles que possuem a competência de apurar a responsabilidade criminal, MP ou polícia.

Nota-se que nem todas as operações comunicadas serão dignas de um RIF. Somente aquelas em que a inteligência financeira lograr identificar sinais de lavagem de ativos ou de outros delitos. Mesmo com tais informações em sigilo, pode-se afirmar, com segurança, que boa parte das comunicações à UIF não se transforma em relatórios. São operações que se encaixam nas hipóteses legais (como, por exemplo, saque em espécie de valor superior a R$ 100 mil), mas que, pelas circunstâncias, não evidenciam indícios de crime (por exemplo, a atividade econômica da pessoa física ou jurídica que fez o saque justifica a operação). O que vai fazer a diferença é uma isenta análise de inteligência financeira.

Tudo isso vai por água baixo, contudo, quando se permite que o MP ou a polícia encomendem relatórios da UIF. Nesses casos, a isenta análise de inteligência financeira é substituída pelo dedo indicador do MP ou da polícia. Acrescente-se que essa requisição pode ser realizada por meio de um sistema digital acessado pelos referidos órgãos de investigação. E tudo fica mais grave se o RIF é praticamente “gerado” pelo sistema, sendo, no mais das vezes, nada além de um extrato de comunicações suspeitas do alvo. Ou seja, operações que não haviam sido consideradas suspeitas pela atividade regular de inteligência financeira da UIF são entregues “sob a encomenda” do MP ou da polícia. Em suma, nenhuma inteligência financeira é realizada, e a UIF se torna um mero repositório de informação bancária. A informação financeira de alvos selecionados pelo MP e pela polícia fica facilmente disponível, sem a necessária autorização judicial. Em outras palavras, a UIF é transformada em um simples e ilegal banco de dados de operações protegidas por sigilo bancários.

É nesse contrafluxo, na requisição, na encomenda, que se contraria o requisito constitucional para a quebra de inviolabilidade. Até o momento, o STF cuidou da primeira espécie de operações, garantindo que movimentações suspeitas possam ser notificadas. Resta saber, entretanto, se o compartilhamento mediante solicitações ou encomendas é legítimo na visão da Corte. Adverte-se que, diferentemente do propalado, as Recomendações 29 e 31 do Gafi não autorizam a interpretação de que os dados da UIF podem ser acessados livremente pelos órgãos de investigação, tanto é que países como Espanha e Alemanha adotam posturas bem mais rígidas quanto ao compartilhamento de tais dados.

A posição aqui defendida é a da inconstitucionalidade da criação de uma via de mão dupla. Só pode ser considerada constitucional a atividade da UIF que analisa as informaçõese, a partir de uma análise de inteligência financeira, envia espontaneamente um relatório para a polícia o Ministério Público. O caminho inverso nada mais é que uma burla engenhosa à reserva de jurisdição necessária para a quebra do sigilo bancário.

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