Segunda Leitura

Reflexos da Lei de Abuso de Autoridade sobre a magistratura

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de dezembro de 2019, 8h02

Spacca
A Lei 13.869, de 5 de setembro passado, revogou a antiga Lei 4.698/1965, criando novas formas de conduta consideradas abusivas, atribuindo-lhes penas mais severas. Sua vigência se dará 120 dias após a publicação, portanto, no início do mês de janeiro de 2020.

A nova lei alcança todos os que exercem função pública (artigo 2º), não se limitando, como outrora, aos policiais. Não alcança, todavia, os que prestam serviços voluntários ou temporários.

Promulgada sob intensa emoção, teve 33 dispositivos vetados, sendo que 18 deles foram, posteriormente, rechaçados pelo Congresso Nacional.[i] Os efeitos já se fazem sentir. Com base na nova lei, em Cascavel (PR), o juiz de Direito Paulo Damas colocou em liberdade um homicida condenado a 29 anos pelo tribunal do júri por ter assassinado um policial federal[ii]. No âmbito cível, a juíza de Direito Vivian Bastos Mutschaewski, da 2ª vara de Aparecida (SP), reconsiderou determinação anterior de penhora de contas de executado por entender que a decisão poderia violar previsão da Lei de Abuso de Autoridade.[iii]

Na sequência, foram propostas ações diretas de inconstitucionalidade por associações de magistrados, de policiais e do fisco, apontando a inconstitucionalidade de diversos dispositivos, sendo distribuídas para o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal.[iv]

Muito embora a ação se dirija a todos os que exercem função pública, a leitura dos artigos permite concluir que algumas categorias serão atingidas mas diretamente (v.g., policiais). Todavia, os comentários serão direcionados apenas aos casos que envolvem a magistratura.

Cumpre, desde logo, registrar que alguns dispositivos não representam risco à função judicial e, inclusive, revelam-se oportunos. Vejamos.

Só haverá crime em caso de ações “praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (artigo 1º, parágrafo 1º). Trata-se, pois, de caso de dolo direto, ou seja, será preciso demonstrar que o agente desejou conscientemente abusar de seu poder.

O artigo 27 tipifica a requisição de investigação criminal ou procedimento administrativo sem que haja qual indício de crime, ilícito funcional ou administrativo. O que se quer evitar são iniciativas de cunho pessoal, principalmente em comarcas de menor porte, quando o magistrado se envolve em desavenças e usa seu poder para prejudicar o desafeto. São raros os casos, mas existem.

O artigo 37 torna crime, nos órgãos colegiados, pedir vista dos autos e não devolver “com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento”. As vistas por tempo indeterminado causam dano grave a uma das partes. Na esfera administrativa não são tomadas providências, nem mesmo quando o regimento interno estabelece prazo. Daí a razão da punição penal. Mas o crime é de dolo direto, portanto não se consuma quando o atraso é fruto de pouca disposição para o trabalho ou deficiente gestão dos processos.

O artigo 33 criminaliza o fato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. Destina-se a casos de ordem judicial com ofensa ao princípio da legalidade. Por exemplo, requisição da declaração de bens à Receita Federal de um vizinho que, no condomínio, não respeita regras de convivência.

O artigo 36 também tem suscitado preocupações, talvez excessivas. Vejamos:

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Os que conhecem a realidade judiciária brasileira melhor do que os livros de doutrina alemães, sabem que eventual erro do sistema pode gerar bloqueio excessivo e incompatível com o valor cobrado, não sendo demais lembrar que qualquer software não está imune a falhas. Além disto, o sistema busca em diversas contas do executado, inclusive cadernetas de poupança e até contas-salário, o mesmo valor, o que pode ensejar o penhoras exacerbadas. Mas, de qualquer forma há uma ressalva: só há crime se, demonstrado o excesso, o juiz não corrige.

O tipo penal foi criado porque há reclamações contra a demora no exame de petições encaminhadas ao juiz. O atraso pode decorrer da vara ser desorganizada, perdendo-se o requerimento no emaranhado de arquivos do processo eletrônico, ou por ação dolosa do juiz. A primeira hipótese deve ser objeto de aperfeiçoamento na gestão. A segunda, que suponho seja raríssima, deve ser apurada, pois é inconcebível que alguém queira manter patrimônio de um devedor imobilizado sem que haja causa.

Na verdade, duas conclusões o caso merece: a) o sistema Bacenjud não pode acabar, pois é o que dá eficiência às execuções civis ou fiscais; b) bloqueio ou penhora excessivos devem ser imediatamente anulados, seja por melhora no sistema (preventivo), seja agilizando-se nos cartórios ou secretarias os pedidos de reconsideração.

No entanto, um tipo penal causa maior preocupação e pode, sim, interferir na própria atividade do juiz, ferindo o que a função tem de mais sagrado: a imparcialidade

Não por acaso a independência e a imparcialidade constam no Declaração Universal de Direitos Humanos (artigo 10), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 14, I), na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8º), implicitamente na Constituição Federal (artigo 5º, LIII, e 95, I a III), na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (artigo 41) e no Código de Ética da Magistratura, editado pelo CNJ (artigo 1º).

Obviamente, todos os textos garantem o princípio, sem descer a detalhes. Estes são analisados caso a caso, na medida em que surjam em leis ou outras normas e de acordo com a situação atual da sociedade a que se destinam. Mas na nova Lei de Abuso de Autoridade um dispositivo pode ensejar violação do aludido princípio. Vejamos:

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

"Manifesta desconformidade" é conceito subjetivo. O que é claro, evidente, inconteste, para um, pode não ser para outro, mesmo que ambos tenham a mesma opinião sobre a maioria das coisas.

Imagine-se um homicídio de um taxista em uma cidade do interior, originando um protesto de todos os seus colegas que tomam as ruas centrais clamando pela prisão do assassino. A pronta descoberta do homicida leva o juiz a decretar a sua prisão preventiva, para garantia da ordem pública (artigo 312 do CPP). Só que o assassino é primário, tem emprego e residência fixa. Um HC impetrado em uma corte localizada a dezenas ou centenas de quilômetros dos fatos, ordena a sua soltura e na ementa coloca que era desnecessária a prisão. Isto abre a possibilidade do juiz ser processado. E também do promotor, a quem poderá ser imputada coautoria.

A preocupação é maior quando se pensa nos incisos do artigo 9º. Por exemplo, o III, que afirma ser crime não “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível”, pode levar a situações absurdas. Imagine-se que um HC afirma que a pena imposta foi exacerbada. O acórdão do TJ a mantém, mas o do STJ a diminui e o acusado é posto em liberdade. O juiz e o desembargador relator estarão às voltas com um processo crime com pena máxima de quatro anos.

A inconstitucionalidade aí está na ameaça à independência e imparcialidade do juiz causada pelo medo de ser processado. Por que haverá alguém de arriscar-se a manter alguém preso e depois sofrer ação penal? Acovardado, o juiz porá o acusado em liberdade nas mais diversas e assim se tornará parcial. O equilíbrio entre acusação e defesa estará quebrado, prevalecendo a última.

Além do artigo 9º da nova Lei de Abuso de Autoridade representar um risco à independência e imparcialidade do juiz, ofendendo um antigo e consagrado arcabouço normativo, no qual se sobrepõe a Constituição da República, outros efeitos negativos poderão surgir.

Os conflitos entre advogados, agentes do Ministério Público e magistrados, que já se tornaram comuns, tenderão a aumentar, pois a cada discordância em audiência sobrevirão acusações de abuso de poder e ameaças, explícitas ou implícitas, de representação. Os juízes tenderão a procurar ilhas de segurança, como as varas de execuções fiscais, abandonando locais de possíveis conflitos, principalmente as varas criminais.

Isto será comum na primeira instância, mas as demais não estarão isentas, pois a falta do respeito à autoridade já chegou, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal. Curiosamente, a quebra das regras de convivência, podem dar-se, inclusive, entre membros do próprio Poder Judiciário. Segundo informa a mídia, o desembargador Andrade Neto, da 30ª câmara de Direito Privado do TJ-SP, ao reformar decisão de uma juíza de primeira instância que indeferiu o congelamento de bens com base na nova Lei de Abuso de Autoridade, atribuiu-lhe "paspalhice política".[v]

Muito mais há a dizer sobre a Lei de Abuso de Autoridade, mas ela, salvo reconhecimento de inconstitucionalidade pelo STF, deve ser cumprida. As escolas da magistraturas deverão capacitar os magistrados para este novo momento, as varas cíveis e de execução focar nos pedidos de reconsideração de bloqueio de bens e as salas de audiência receberem aparelhos de filmagem, que serão as testemunhas eletrônicas das ocorrências. Adaptar-se aos novos tempos faz parte do manual de sobrevivência.

[i] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2019/09/congresso-rejeita-18-dos-33-vetos-a-lei-de-abuso-de-autoridade. Acesso em 28/11/2019.

[ii] Revista eletrônica Consultor Jurídico, 14/11/2019, disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-14/juiz-determina-soltura-homicida-alega-basear-stf. Acesso em 28/11/2019.

[iii] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI313192,11049-Juiza+revoga+penhora+online+por+receio+da+lei+de+abuso+de+autoridade, Acesso em 29/11/2019.

[iv] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-set-30/celso-mello-relator-acoes-lei-abuso-autoridade. Acesso 29/11/2019.

[v] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI316091,21048-Paspalhice+politica+diz+desembargador+sobre+juiz+que+negou+penhora. Acesso em 28/11/2019.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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