Anuário da Justiça

TJ-SP usa questão de ordem do mensalão para desobedecer precedente do STJ

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31 de agosto de 2019, 6h56

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem extrapolado decisão do Supremo Tribunal Federal em questão de ordem do mensalão para "superar" precedente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça em recurso repetitivo.

Rosinei Coutinho / SCO STF
Voto de Barroso em questão de ordem do mensalão tem sido usado pelo TJ-SP para desobedecer tese definida pelo STJ em recurso repetitivo, mostra levantamento
Rosinei Coutinho / SCO STF

Em dezembro de 2018, o Supremo decidiu que o Ministério Público tem legitimidade para cobrar multas impostas em condenações penais. O Plenário seguiu, por maioria, voto do ministro Luís Roberto Barroso. Segundo ele, o fato de a multa ser uma sanção pecuniária não tira dela o caráter penal. Portanto, o MP, como titular da ação penal, poderia cobrá-la.

A decisão foi um prolongamento de outra, quando ficou definido que, em crimes que Barroso chama "de colarinho branco", como peculato, o réu só poderia progredir de regime se pagasse a multa. Em dezembro, o tribunal decidiu que o MP pode cobrar o pagamento da multa. "Dizer que a multa é dívida de valor não significa dizer que ela perdeu a natureza de sanção penal. Não há como retirar do MP essa competência", disse Barroso, em seu voto — clique aqui para ler o acórdão.

E o TJ-SP tem usado esse entendimento para impedir a declaração de pena cumprida de quem não paga as multas, mesmo depois de cumprir a pena corporal.

Levantamento feito para o Anuário da Justiça São Paulo 2019, que será lançado em setembro, mostra que apenas três (5ª, 8ª e 14ª) das 16 Câmaras Criminais majoritariamente negam a extinção da punibilidade por não pagamento da pena de multa. O recente posicionamento do Supremo, que ainda não teve decisão publicada, já foi incorporado ao entendimento de desembargadores em cinco câmaras, no entanto.

Isso contradiz frontalmente o que o STJ decidiu no tema repetitivo 931, julgado em agosto de 2015. Naquela ocasião, a corte decidiu que a multa é punição extrapenal e deve ser cobrada pela Fazenda Pública. E o não pagamento não poderia impedir a expedição do certificado de cumprimento de pena e a exclusão do Rol de Condenados.

Redações
O debate é em torno do artigo 51 do Código Penal. Em 1984, a Lei da Execução Penal permitia que a pena de multa fosse transformada em prisão, caso o réu deixasse de pagá-la.

Em 1996, a Lei 9.268 mudou de novo a redação do dispositivo. O artigo passou a dizer que: "Transitada em julgado a sentença condenatória, a
multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição".

Na discussão da questão de ordem do mensalão, Barroso observou que essa nova redação trouxe duas consequências. A primeira foi proibir a conversão da multa em prisão. A outra foi dizer que a multa é "dívida de valor". Mas isso não retirou da multa seu caráter penal, disse Barroso.

O Ministério Público ganhou, então, o "prazo razoável" de 90 dias para cobrar o pagamento após o trânsito em julgado. Depois disso, a obrigação vai para a Fazenda.

Origem do pensamento
O voto de Barroso tornou-se jurisprudência no TJ-SP. "Em rigor, a alteração legislativa sequer poderia cogitar de retirar da sanção pecuniária o seu caráter de resposta penal, uma vez que o artigo 5°, inciso XLVI, da Constituição, ao cuidar da individualização da pena, faz menção expressa à multa", analisou o ministro. 

"Reforça-se, nessa medida, o caráter punitivo da pena de multa, que só subsidiariamente será cobrada pela Fazenda”, afirma o desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade, em decisão da 6ª Câmara Criminal já a utilizar o precedente. 

Ao todo, 24 membros da Seção Criminal desobedecem o STJ. Diversos outros também o fariam, mas acabam por ressalvar o entendimento para seguir o precedente. O caráter penal da multa é o fator mais ressaltado na discussão exposta nos acórdãos. Ignorá-lo, segundo o desembargador Grassi Neto, da 9ª Câmara, equivaleria a invadir a esfera de competência do Poder Legislativo, que previu multa entre as sanções penais.

Já o desembargador Hermann Herschander, da 14ª Câmara, afirma que tal entendimento permitiria que, em casos em que aplicada exclusivamente a pena de multa, a punibilidade seja natimorta. "Teríamos infrações penais sem sanção penal", explica. E Lauro Mens de Mello, da 6ª Câmara, classifica como "um absurdo" a possibilidade de um juiz criminal aplicar sanção punitiva de natureza não-penal.

O desembargador Guilherme Nucci, da 16ª Câmara, acrescenta que admitir a natureza civil da multa autorizaria a execução da pena mesmo após a morte do condenado, o que é proibido pela Constituição Federal, no inciso XLV do artigo 5º. "Em suma, é pena e deve ser cumprida", diz o desembargador Fábio Poças Leitão, da 15ª Câmara.

O Ministério Público tem levantado também uma questão semântica quando trata do assunto: a extinção da punibilidade não impede a cobrança na seara cível. "Para ser mais técnico, o recomendável é que se declare extinto o processo de execução, mas deixe claro que a cobrança da multa caberá à Fazenda Pública", explica o desembargador Otávio de Almeida, da 16ª Câmara. 

Consequências
A extinção ou não da punibilidade implica em sérias consequências para os condenados: restabelecimento de direitos políticos, a retirada do nome do Rol dos Culpados, remoção do nome dos sistemas policiais de consulta e o início da contagem do quinquênio depurador previsto no artigo 64 de Código Penal que, após cumprido, influi na caracterização de reincidência e maus antecedentes. Está ligada, portanto, à reinserção do apenado na sociedade.

Com isso, desembargadores do TJ-SP chamam atenção para a importância da questão. Para Gilda Diodatti, da 15ª Câmara, seria "desarrazoado" prejudicar o apenado em função de uma multa que tem natureza civil atribuída por lei. Já Figueiredo Gonçalves, da 1ª Câmara, ressalta a intenção do legislador com a mudança: buscar procedimento rápido e eficiente na execução da multa, diante da “notória inoperância do sistema vigente até então”.

"Pode-se questionar eventual falha técnica na redação dos dispositivos legais, pois a pena pecuniária integra a condenação, sendo certo que ambas precisariam ser cumpridas para que, em tese, a reprimenda fosse integralmente satisfeita. Todavia, não é possível a interpretação de leis in malam partem [interpretar por analogia para prejudicar o réu]", afirma o desembargador Marco Antonio Marques, da 6ª Câmara.

Ausência de divergências
A 3ª Câmara é o colegiado mais dividido quanto à questão: os desembargadores Toloza Neto, Ruy Cavalheiro e o juiz em segundo grau Andrade de Castro seguem o precedente do STJ, enquanto os desembargadores Álvaro Castello e Luiz Antonio Cardoso – este já apoiado no voto do ministro Barroso – não extinguem a punibilidade do réu em tais casos.

Na mesma 3ª Câmara é observada a tendência da Seção Criminal do TJ-SP: a ausência de votos divergentes. Embora o colegiado se divida em 3 a 2 a favor da extinção da punibilidade do réu que não pagou a pena de multa, todas as decisões analisadas pelo Anuário da Justiça são unânimes.

Isso significa que a decisão vai seguir o entendimento do relator, mesmo que revisor e 3º juiz votem de forma diferente quando relatam casos da mesma matéria. O mesmo ocorre na 4ª e 6ª Câmaras. Em nove das 16 câmaras criminais o entendimento em relação à extinção da punibilidade não é unânime.

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