Opinião

Eros Grau, o homem que escolheu passar pela porta estreita

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31 de agosto de 2019, 6h38

Não julgueis, para que não sejais julgados, porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.

………………………..Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, poucos há que a encontrem.” (Evangelho de Mateus, 7-1a6; 8-13a14).

Não raramente, a metáfora da “porta estreita” é invocada por juristas e filósofos do Direito, em alusão ao Estado de Direito.[1] Em crítica a um ditado búlgaro, assim se manifesta Martin Krygier:

… “diz o ditado búlgaro que o direito é como uma porta no meio de um campo aberto. É claro, você poderia passar pela porta, mas somente um tolo se incomodaria com isso. Onde esse ditado tem ressonância, o Estado de Direito provavelmente não existe.” (Cf. Martin Krygier. The Rule of Law: Legality, Teleology and Sociology, in. G Palombela and N Walker, Re-Locating the Rule of Law. Oxford: Hart Publhising, 2008, p. 60.)

Eros, erudito e culto, esteta e amante das artes e do bom vinho, de poucas peias e correntes, solto no mundo e livre para pensar, escolher, agir e sentir, talvez tenha feito, até agora, apenas o que mais lhe apetecia em todo lugar e a todo o momento. E, simplesmente, seguindo as inclinações de seu espírito, dedicou-se às reflexões científicas, à literatura, à criação no Direito e nas artes, à elaboração articulada e racional de pareceres técnicos. E, no entanto, embora genial, Eros escolheu passar pela porta estreita.

Gosto requintado, cidadão do mundo, residência em Tiradentes, a pequena e belíssima cidade mineira, residência em São Paulo e na França, para matar as saudades de sua cidade gaúcha, Eros, homem tão livre e liberto de traves e entraves, no entanto, escolheu passar pela porta estreita.

E quem o vê ligado por amarras de ouro à família, aos amigos e aos diletos alunos, saberia logo que a afeição e o amor o alimentam. Mas o homem dos impulsos nobres, tão sensível e sensorial ao mesmo tempo, emotivo, escolheu passar pela porta estreita. Por que, sendo genial, escolheu passar pela porta estreita?

Como Relator, no HC 84078, assim se expressou o Min. Eros Grau:

“... afastado o fundamento da prisão preventiva, o encarceramento do paciente após o julgamento do recurso de apelação ganha contornos de execução antecipada da pena.

…Refletindo a propósito da matéria, estou inteiramente convicto de que o entendimento até agora adotado pelo Supremo deve ser revisto…”

E após o exame minucioso das leis infraconstitucionais, além dos precedentes da própria Corte, da lavra de Pertence, Celso de Mello, Peluso e Marco Aurélio, assim continua o Relator:

… “A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu artigo 5º, Inciso LVII, que ´ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória`.

… “Aliás a nada se prestaria a Constituição se esta Corte admitisse que alguém viesse a ser considerado culpado – e ser culpado equivale a suportar execução imediata da pena – anteriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial imponham ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não me parece possível, salvo se for negado préstimo à Constituição, qualquer conclusão adversa ao que dispõe o inciso LVII do seu artigo 5º. Apenas um desafeto da Constituição – lembro-me aqui de uma expressão de GERALDO ATALIBA, exemplo de dignidade, jurista maior, maior, muito maior do que pequenos arremedos de jurista poderiam supor – apenas um desafeto da Constituição admitiria que ela permite seja alguém considerado culpado anteriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Apenas um desafeto da Constituição admitiria que alguém fique sujeito a execução antecipada da pena de que se trate. Apenas um desafeto da Constituição.”

A resposta a minha indagação é, portanto, muito fácil e simples: Eros, sendo genial, nada ingênuo ou tolo, escolheu passar pela porta estreita do Direito, porque essa é a única porta. A do direito. Não há outra. Não existe outra mais larga e confortável, nem acesso fácil em um campo aberto. Eros nem enxerga o campo aberto como opção, a porta larga do autoritarismo ou do voluntarismo soberbo de sobreposição à Constituição. A única porta para o homem leal ao Direito, que não seja um desafeto da Constituição, na expressão de Geraldo Ataliba, é o caminho do Estado de Direito.

Ao analisar o ethos da fidelidade ao Direito, e móvel do Estado de Direito, Postema pontua que os juízes chamam tal fidelidade de imparcialidade, de equidade das partes em juízo, de abertura do processo à evidência e à argumentação de todos os lados, ao dever de tomar decisões racionais segundo princípios baseados nas provas e na argumentação apresentada na Corte. “Os juízes precisam ver para isso, em lugar de relações pessoais, a língua franca das cortes. Isso reclama uma convicção profunda, ciumentamente guardada, de sua independência em relação a outros ramos de governo.”[2]

E Postema, voltando ao ditado búlgaro, concorda com M. Krygier em suas duras críticas, para dizer que, se fosse verdade que somente um tolo se incomodaria em passar pela porta estreita do Direito, tal atitude evisceraria as entranhas do Estado de Direito[3].

Disso resulta o voto enfático de Eros, amante da Constituição, seu forte e prestimoso seguidor, de robusta lealdade ao Direito. A sua independência, como dizem franceses e juristas do common law, “jalousement gardée” ou “jealously guarded”, foi preservada zelosamente, em face dos demais Poderes (Executivo ou Legislativo), aos quais não se curva e nem cede, guiado que está pela Constituição.

Modificando o entendimento da Corte, até então prevalente, Eros, no HC 84078, conduziu aqueles que, com ele, se afinavam, à lealdade ao Estado de Direito, ao robustecimento da fidelidade. É fácil, pois, compreender como um homem, genial como Eros, escolheu passar pela porta estreita do Direito. Simples lealdade ao Direito.

O que é difícil e mais complexo explicar é por que razão, depois de se curvar à Constituição, como não poderia deixar de ser, a Corte, contra ela, a Constituição, vai se rebelar posteriormente, cedendo às pressões do Ministério Público. A sua independência antes tão “jalousement gardée” em face dos demais poderes da República, tornar-se-á mais frágil em função de uma operação policial ou outra, aqui e ali, e as evidências e as provas havidas no processo, antes prévias e avaliadas como passo necessário à convicção da culpa, para lá de uma dúvida razoável, ao contrário, serão supervenientes, bastantes ou não, a uma convicção de culpa, pré-formada.

Em cíclica performance, ora deprimido, ora murchando em inexplicável cultura de deferência não qualificada à autoridade governamental, ora florescendo na democracia, o Estado de Direito, no Brasil, oscila. Explicam os juristas e filósofos que o Estado de Direito não é redutível apenas ao atuar dos juízes, não é uma regra a ser aplicada apenas pelos julgadores. Ele depende de um certo grau de lealdade ao Direito reinante na sociedade. Então, diz Postema,um componente indispensável da infraestrutura da fidelidade está em uma rica, diversificada e civilmente educada sociedade, incluindo organizações religiosas, organizações não lucrativas, universidades, uniões sindicais, grupos de vigilância comunitária e similares. Repartições governamentais de controle, formal ou informal, comissões de direitos humanos, e organizações similares podem também inspecionar e monitorar atividades governamentais e informar, habilitar e facilitar os esforços de responsabilização.”[4] E prosseguindo em suas considerações relacionadas ao Estado de Direito, que depende de virtudes cívicas, pondera: Bentham argumentou que um governo livre deveria cuidar, encorajar e habilitar a disposição popular para a resistência.”[5]

 

Ricos estudos sobre o ideal do Estado de Direito, em filosofia, ciência política teoria da Constituição, acumulam-se ao longo da história. Influentes estudos relativos ao Estado de Direito, que se apoiam na separação de poderes, nos advêm desde Locke ou Montesquieu,[6] passam pelas lições de Dicey[7], mas no rol devem ser incluídos aqueles que, como Fuller,[8] insistem na legalidade e nas oito condições necessárias para sua configuração: (1) generalidade das regras; (2) publicidade; (3) não retroatividade; (4) inteligibilidade; (5) não contradição; (6) exequibilidade; (7) estabilidade; (8) e administração de modo consistente com seu teor.

Como contraponto, demonstrando a insuficiência da legalidade (pois não chamaríamos de Estado de Direito ao Estado nazista que partia de leis aplicadas por juízes que se curvavam aos abusos da autoridade), um universo rico de outros teóricos da ciência política ou da filosofia se levanta com J. Raz,[9] Waldron,[10] Postema,[11]Krigier[12], alhures e no Brasil.[13]

As instituições e a racionalidade são fundamentais para a legitimação do órgão jurisdicional. Lembra-nos Thomas Bustamante que esse tipo de racionalidade já foi atacado em um momento histórico importante, no Século XVII, quando Hobbes negava a existência de uma racionalidade do Direito, de uma sabedoria, uma prática, um conjunto de princípios – que conjuntamente foi denominado de “Rule of Law”. Hobbes acreditava que todo o direito emanava do soberano, e que contra esse não havia direito, LEI ou LIMITE.

Pondera Thomas queEdward Coke sustentava que o direito possuía uma ‘racionalidade artificial’, no sentido de que não era a racionalidade transcendental, metafísica, própria de filósofos e teólogos, mas uma racionalidade argumentativa, institucional, interna à prática jurídica, que ocorria nos contextos e nos muros dos tribunais. O common law, para Coke, era a ‘razão adjudicada e especialmente selecionada mediante disputas e argumentos’”.[14]

E continua Bustamante, em seu relato, que Coke, contra a posição de Hobbes, afirmava que o processo de construção do direito e da argumentação deve ser empreendido fora da mídia, fora da opinião pública fácil, fora das pressões externas de supostos filósofos, religiosos e, principalmente, dos políticos, dos interessados em interpretar o direito à margem dos precedentes, das leis, e dos avanços e do arcabouço histórico do tribunal. E conclui:

Um dos mais valiosos relatos dessa ética jurídica e institucionalista que, se observada em pensadores Pré-Benthamistas como Coke, Hale e Blackstone (os maiores common lawyers da história e provavelmente os maiores juristas práticos dos Séculos XVI, XVII e XVIII, respectivamente), se encontra em um valioso estudo do Professor Gerald Postema (Classical Common Law Jurisprudence (Part II). Oxford University Commonwealth Law Journal, vol. 3 (2), p. 1-28, esp. p. 8.). A noção de razão artificial a que COKE, HALE E BLACKSTONE se referem é a razão tal como aplicada no âmbito institucional da corte, como espaço de argumentação, como a instância, a esfera adequada para discutir os argumentos jurídicos sobre os direitos e liberdades fundamentais que todos nós temos. O que se busca proteger é o valor da autonomia judicial.

A autonomia judicial, Eros a soube proteger zelosamente, “jalousement garder” ou “jealously guarding”, em face dos demais Poderes, jamais curvando-se, subordinando ou cedendo. Fiel à Constituição, Eros escolheu passar pela porta do Direito. A única.

Como dissemos, é simples explicar as razões pelas quais Eros foi relator da histórica decisão do STF, no HC 84078. Pode-se resumir singelamente a questão em uma só palavra: lealdade.

Mas tal lealdade deverá também ser institucional, e mais, socialmente reconhecida sob pena de não prevalecer o Estado de Direito, sob pena de proliferarem os desafetos da Constituição. Com razão, Postema e Krygier, quando acrescem à reverência às leis; às instituições; à independência do juiz, ciumentamente guardada em face dos demais Poderes; ao devido processo legal; à ampla defesa e à presunção de inocência; à racionalidade do discurso argumentativo que se trava nas cortes para a construção do Direito; quando, enfim, adicionam a esses tão imprescindíveis constituintes do Estado de Direito, a fidelidade, a lealdade ao Direito socialmente prevalente. E, como consequência da lealdade, socialmente dirigente, preconizam aqueles cientistas, a resistência, no sentido preconizado por Bentham.

Reconta-nos Postema o caso de dois juízes da Corte Juvenil do Condado de Luzerne, Pensilvânia, infiéis ao Direito (entre 2003 a 2008), e processados por conspiração, lavagem de dinheiro, extorsão e sonegação fiscal. Reproduz as palavras da Comissão Investigadora do escândalo, ao abrir seus trabalhos:

“Nessa manhã, nossa Comissão começa suas audiências públicas para avaliar o colapso de tirar o fôlego do sistema de justiça juvenil no Condado de Luzerne. Dois juízes são acusados criminalmente por conduta que teve o inequívoco efeito de prejudicar crianças… há pouca dúvida de que sua conduta, se criminosa ou não, tenha tido consequências desastrosas para o sistema de justiça juvenil… Nossa preocupação, entretanto, não é apenas com a ação dos dois juízes do Condado de Luzerne. Nossa preocupação é também com a inação de outros. Inação de juízes, promotores, defensores públicos, advogados, agentes públicos e cidadãos privados – com aqueles que sabiam mas falharam em falar; com aqueles que viram mas falharam em agir.”[15]

Quando olhamos com serenidade as violações ao Direito, quando entendemos ser normal a deslealdade à Constituição, quando se multiplicam os infiéis à lei, sem qualquer resistência, então reconhecemos a fragilidade do Estado de Direito no Brasil. O ditado búlgaro (somente os tolos se incomodariam em passar pela porta do Direito) ainda tem ressonância em setores sociais e profissionais e, pois, ainda eviscera o Estado de Direito em nosso País.

Há, não obstante, quem exercite a resistência, quem insista na fidelidade ao Direito. São juristas, universidades, organizações sociais e acadêmicas, parte numerosa da sociedade. Ou mesmo dentro da Corte Suprema.[16]

Esta obra, que ora se lança sobre a “Execução Provisória da Pena”, é exemplo disso, de resistência e de lealdade. Reúne autores, dos mais importantes da literatura jurídica para, capitaneada pelo Professor Felipe Martins, louvar o desempenho do querido Ministro Eros Roberto Grau, ao lado de Geraldo Ataliba, o maior dentre os maiores juristas.


[1] Cf. Gerald J. Postema. Law’s Rule. Reflexivity, Mutual Accountability, and the Rule of Law. In Bentham’s Theory of Law and Public Opinion. Coord. Xrabv Zhai, p 33 ; Martin Krygier. The State of the Rule of Law State, Cap. 3, p.60; Thomas Bustamante. Precedent. IVR Encyclopedia. Heidelberg, Springer, no prelo para 2020, ou em discursos e aulas da pós-graduação da UFMG.

[2] Cf. Gerald Postema, op. cit. p. 32.

[3] Cf. Gerald Postema, op. cit. p. 33.

[4] Cf. Gerald Postema,op. cit. p. 34.

[5] Cf. Gerald Postema, op. cit. p. 33.

[6] Cf. J. Locke. Two Treatises of Government, ed. p. Laslett. Cambridge Press, 1988, os. 265-428 in Second Treatise.

[7] Cf. Av. Dicey. Introduction to the Study of the Law of the Constitution, 10th edn. (first edn. 1885) (London: Macmillan, 1959).

[8] Cf. Lon Fuller. The Morality of Law. New Haven, CT. Yale University Press, 1969.

[9] Cf. J. Raz. The Authority of Law. Oxford, Clarendon Press, 1979.

[10] Cf. J. Waldron. The Concept and the Rule of Law. Georgia Law Review, 43 , 2008.

[11] Cf. Gerald Postema, op. cit.

[12] Cf. Martin Krygier, op. cit.

[13] Cf. Por todos, citemos Thomas Bustamante. Precedent. IVR Encyclopedia. Heidelberg, Springer, no prelo para 2020.

[14] Coke, Prohibitions del Roy (1607), in E Coke, The Reports of Sir Edward Coke, in Thirteen Parts, editado por J Moore, Dublin, 1793, Report n 13, p. 242.

[15] Cf. Gerald Postema, op. cit., p. 9.

[16] Cf. Considerando a importância do princípio da presunção de inocência (do qual deriva o in dubio pro reo, em oposição ao in dubio pro societate), regra consagrada como direito individual fundamental, intocável, de nossa Constituição, por isso denominada de cláusula pétrea, o Ministro Gilmar Mendes, escreveu: … “Se há qualquer dúvida a propósito da prevalência das provas, deve-se aplicar o princípio do in dubio pro reo, imposto pela Constituição (artigo 5º, LVII, CF), pelas convenções internacionais (art. 8.2. da Convenção Americana dos Direitos Humanos – CADH) e pelas leis (artigos 413 e 414 do Código de Processo Penal) da ordem jurídica nacional.” E, ao final, conclui: “Assim, a confrontação entre o in dubio pro societate e a preservação dos direitos fundamentais é tema essencial do processo penal de um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a Corte Suprema parece dar mais um passo em direção à consolidação de uma hermenêutica constitucional que compatibilize, concilie a necessidade de uma ação penal efetiva com a preservação das garantias constitucionais.”(Critérios de valoração racional da prova e do standard probatório para pronunciar o acusado perante o júri.” Consultor Jurídico, 6/04/2019. https://www.conjur.com.br/2019-abr-06/observatorio constitucional.

Autores

  • é professora em Direito Tributário da UFMG, sócia do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, membro da Academia Internacional de Direito e Economia e presidente da ABRADT.

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