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Entrevista: Eleonora Rangel Nacif, presidente do IBCCrim

31 de agosto de 2019, 8h39

Por Fernanda Valente

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Uma das medidas previstas no pacote de reformas penais do ministro da Justiça, Sergio Moro, permite a gravação da conversa entre advogado e seu cliente preso em presídio federal. Esse tipo de ato já acontece e, de acordo com a advogada Eleonora Rangel Nacif, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), legitimá-lo é teratológico.

O projeto altera a Lei 11.671/2008, que regulamenta os presídios federais de segurança máxima. O texto estabelece que as cadeias "deverão dispor de monitoramento de áudio e vídeo no parlatório e nas áreas comuns, para fins de preservação da ordem interna e da segurança pública, sendo vedado seu uso nas celas". Além disso, a proposta prevê que "as gravações de atendimentos de advogados só poderão ser autorizadas por decisão judicial fundamentada".

A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente é "fundamental para estabelecer a confiança entre a pessoa presa que está sendo processada criminalmente e a defesa”, defende, em entrevista à ConJur

Caso o apelidado "pacote anticrime" seja aprovado, segundo Eleonora, não é só o resguardo do sigilo que está em xeque, mas também diversas outras garantias constitucionais. "Trata-se de um projeto de endurecimento penal, sem que os impactos humanos, políticos criminais e orçamentários tenham sido estudados. Em suma, é um projeto autoritário, populista, mas, acima de tudo, irresponsável", critica a advogada. 

Eleonora é professora da Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo onde coordena o curso prático de Tribunal do Júri. Já participou da diretoria do IBCCrim, e foi membro da Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). 

Leia a entrevista:

ConJur — A "lava jato" extrapolou a lei?
Eleonora Nacif —
É importante ressaltar que a operação “lava jato” tem inegável valor pelo fato de ter descortinado um problema antigo: o financiamento de campanhas eleitorais, essa relação promíscua entre empresas e o sistema político, entre público e privado. É lamentável que tenha havido inúmeros excessos e desrespeito a direitos constitucionais. Exemplo disso é o uso abusivo de prisões temporárias e preventivas para obter acordos de delação premiada, além de vazamento de informações sigilosas para a imprensa, manipulação da mídia para pressionar o Poder Judiciário, condução coercitiva desnecessária e ilegal e diversas formas de violação ao direito de defesa.

ConJur — O que conclui das conversas vazadas pelo site The Intercept Brasil?
Eleonora Nacif —
O conteúdo das conversas evidencia que o ministro da Justiça, o ex-juiz federal Sergio Moro, atuou de forma parcial, antiética e até mesmo ilegal na condução da “lava jato”. O artigo 254 do Código de Processo Penal prevê as hipóteses pelas quais um juiz deverá “dar-se por suspeito”. Não há dúvidas que a atuação do então juiz federal foi tendenciosa em afronta às garantias constitucionais, contaminando todo o processo e abalando sobremaneira a credibilidade do Poder Judiciário. 

Observamos, estarrecidos, um ex-magistrado assumir o cargo de ministro da Justiça após ter divulgado trechos de delação a 6 dias do primeiro turno, que afetaram, sem sombra de dúvidas, o resultado eleitoral em 2018. Um excelente cabo eleitoral, diga-se de passagem.  

ConJur — O que deve ser feito?
Eleonora Nacif —
Reconhecer a nulidade de todos os processos conduzidos de forma parcial e tendenciosa, restabelecendo-se a liberdade dos réus de imediato. Inúmeras pessoas foram presas no decorrer da operação "lava jato". O tempo passado na prisão é um tempo morto e que não volta mais. 

Diante da mínima suspeita de que tais prisões podem ter sido decretadas em desrespeito às regras constitucionais e processuais penais, o esperado em um Estado de Direito é que tal suspeita seja apurada com todo o rigor e que os agentes públicos envolvidos respondam pelos abusos na esfera administrativa e criminalmente. O que a advocacia pode fazer é cobrar essa apuração.

ConJur — O Congresso acaba de aprovar uma reforma na Lei de Abuso de Autoridade. Qual será o impacto para a advocacia?
Eleonora Nacif — O projeto deve ser comemorado. Em um país democrático, o agente público que comete abusos deve ser responsabilizado. Não podemos confundir autoridade com autoritarismo. Existe uma tentativa de desprestigiar o direito de defesa e de retirar dele sua importância. Isso acontece das mais diversas formas, como quando a mídia veicula matérias que acabam confundindo a figura do advogado com a do cliente, numa tentativa de demonizar não apenas o acusado, mas também o exercício profissional dos defensores.  Ou quando, durante a audiência, magistrado e membro do Ministério Público trocam bilhetinhos, ou é dada voz de prisão ao advogado ou a testemunhas sem nenhum fundamento jurídico. Infelizmente, isso ocorre diuturnamente. Observo também o uso indiscriminado e desnecessário de algemas. Enfim, situações abusivas que desrespeitam as prerrogativas profissionais e que configuram abuso de autoridade. 

ConJur — O IBCCrim publicou nota técnica sobre o "pacote anticrime" do Ministério da Justiça com várias críticas e apontamentos importantes. O que é mais preocupante?
Eleonora Nacif —
Um dos mais preocupantes é a possibilidade de gravação da conversa entre advogado e cliente preso em presídios federais. Na verdade, tudo indica que isso já foi implementado clandestinamente em algumas penitenciárias e agora querem legitimar este tipo de situação absolutamente teratológica. O resguardo do sigilo desse tipo de comunicação é fundamental para estabelecer a confiança entre a pessoa presa que está sendo processada criminalmente e a defesa. Existe o direito de o advogado se comunicar reservadamente com seu cliente ainda que preso e incomunicável, conforme estabelece o artigo 7º, inciso III, do Estatuto da Advocacia.

ConJur — O IBCCrim também criticou trecho do pacote que trata da chamada legítima defesa presumida. Do que se trata?
Eleonora Nacif —
Há uma mensagem política muito clara que reforça o extermínio da população pobre e negra, que já existe na atualidade, mas que será intensificado caso o pacote, que costumamos chamar de embrulho, seja aprovado. 

De acordo com o texto do pacote, o juiz pode diminuir a pena até metade ou até mesmo deixar de aplicá-la, caso a ação seja decorrente de medo, surpresa ou violenta emoção (artigo 23, parágrafo 2º). Ora, é uma verdadeira licença para matar. E isso engloba qualquer situação, inclusive situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando a conduta do agressor poderá ser enquadrada tranquilamente nas hipóteses dessa nova excludente. O artigo 25 do projeto se refere claramente ao "agente policial", algo que estimula a ocorrência de mortes de civis por agentes de segurança pública.  

Outro dispositivo nitidamente inconstitucional trata da possibilidade de o juiz fixar discricionariamente o tempo mínimo para cumprimento de pena em regime fechado, o que afronta o que já foi declarado inconstitucional a partir da Lei dos Crimes Hediondos. 

ConJur — O pacote coloca na conta do acusado muitas responsabilidades?
Eleonora Nacif —
O pacote traz propostas que contribuem para a restrição da ampla defesa, como aquelas que alteram os artigos 116 e 117 do Código Penal, criando causas suspensivas de prazos prescricionais ou alterando marcos interruptivos do prazo prescricional. A morosidade do sistema de Justiça não é de responsabilidade da pessoa acusada, mas da ineficiência do poder público em investigar e processar dentro de um prazo razoável. No Brasil adotou-se  uma "teoria do não prazo" para a magistratura e para o Ministério Público. Na prática, deixou de existir o "excesso de prazo", sendo exigido o respeito aos prazos legais apenas por parte da defesa. Para que a persecutio criminis seja efetiva e célere, é necessário que magistratura e o MP façam essa autocrítica e se corrijam. 

ConJur — Já é uma crítica recorrente ao Supremo dizer que o tribunal legisla em alguns assuntos. Em matéria penal, isso é ainda mais forte. Qual a sua opinião?
Eleonora Nacif —
De fato, testemunhamos nos últimos meses, estarrecidos, situações nas quais o Judiciário se antecipou ao Legislativo em matéria penal, invadindo a seara deste. E o pior, in malam partem, ou seja, com posturas que prejudicam o réu, em total afronta ao princípio da legalidade. Todos sabem que não há crime sem lei anterior que o defina e que não há pena sem prévia cominação legal (artigo 1º do Código Penal).  A partir do momento que o Judiciário, no caso o STF, expande o conceito de determinado crime atingindo e ampliando o seu alcance, invade uma seara que não é sua. E mais, vai contra a ideia de Direito Penal mínimo, de ultima ratio, que não harmoniza com a Constituição Federal, no sentido de que o Direito Penal deve intervir apenas quando todas as outras formas de controle social falharem.