Limite Penal

O roteiro delatado e o processo penal do espetáculo

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Daniel Kessler de Oliveira

    é doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Professor nas áreas do direito penal e processo penal na Universidade Feevale em Novo Hamburgo. Advogado criminalista.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

30 de agosto de 2019, 8h00

Muitas já foram e, certamente, outras tantas ainda serão as críticas apresentadas à delação premiada e seu uso desmedido e ilimitado no processo penal brasileiro, o que altera sobremaneira a concepção de processo penal em um sistema jurídico.

Spacca
Na coluna de hoje não ocuparemos da ilusória voluntariedade, do uso da prisão como ferramenta de “convencimento” do delator, tampouco, das cláusulas ilegais que marcam tantos acordos de colaboração no Brasil. Não negamos a relevância, mas preferimos hoje focar em outro ponto fundamental: a espetacularização da delação, a influência disso na homologação ou não do acordo e seu uso como prova em detrimento do delatado.

 

Certamente, há um enorme problema em se buscar o incentivo e estruturação de um processo em vista de uma delação premiada (ou de uma negociação, como o plea bargaining), o que remonta a lógica inquisitorial da busca pela confissão. Ou seja, novamente se está conformando o processo pela confissão. O Acusado confessou, isso gera uma economia processual muito grande, é um ‘atalho para obtenção da verdade’ que ainda retira a carga decisória dos ombros do julgador e facilita o trabalho do órgão acusador. É um excelente negócio para todos envolvidos, menos é claro, para o agente delatado.

Incentivar a delação premiada (ou o plea bargaining)[i], como principal alternativa estatal para o combate a criminalidade complexa, é o reconhecimento de uma falha enorme dos órgãos de persecução penal, que fornecem um recado claro aos criminosos, o de que o crime quando acompanhado de uma delação pode vir a compensar.

Uma espetacularização do processo penal, leva a sociedade a clamar por condenações, vulgar e equivocadamente, associada com justiça. As garantias são os entraves para este “desfecho justo”, que impede a reflexão e o questionamento acerca do conteúdo daquele acordo.

Na sociedade do espetáculo há uma realidade invertida, o real surge do espetáculo e o espetáculo é real. Daí não há sentido buscar a limitação disso através do respeito às garantias processuais, pois como ensinou Debord, o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.[1]

Na operação lava jato foram centenas de delações premiadas, o que apresenta um contexto evidentemente problemático, qual seja, o valor da informação variava de acordo com o interesse do Ministério Público e não levava em consideração apenas a qualidade das informações.

Quando um mesmo indivíduo realiza dezenas de reuniões com os Procuradores da República começa a entender o que efetivamente querem ouvir, isto é, o valor da delação depende do roteiro a ser apresentado pelo delator e, principalmente, dos personagens nele inseridos. Ele, obviamente, busca atender as expectativas criadas para valorizar sua informação e obter o ‘melhor negócio’ possível. Mas isso também dá lugar a falsas imputações.

Chegou-se ao ponto de Procuradores da Força Tarefa da Lava-jato, confirmarem em conversas internas que “os vazamentos (das operações) objetivam sempre fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração.”[2]

É ilusório pensar que a necessidade de comprovação da história contada evita esses problemas, uma vez que existindo um roteiro, existindo personagens interessantes, os elementos de prova são delegados a segundo plano, pois o enredo já agradou, havendo um mínimo de indícios a dar um suporte de possibilidade de ocorrência dos fatos, aceita-se o acordo, premia-se o delator e, se vai atrás do delatado.

Isto evidencia uma predileção dos agentes públicos por alguns alvos, o que era facilmente compreendido pelos delatores, que precisavam construir seus roteiros a partir do interesse do público alvo. Tal como um diretor de cinema que amolda a história para ganhar mais apreço do público, que romantiza, que amplia fatos visando uma maior dramaticidade, tendo em vista o sucesso de seu filme. Da mesma forma age o delator.

A partir disso, se cria no imaginário o roteiro construído e olvida-se que a história fora pensada e contada a partir de um interesse em especial. Ou seja, obviamente, a história retratada é aquela que mais vantagens pode oferecer e isso fica claro no decorrer de tantas reuniões para tratar dos termos do acordo. O que transforma um criminoso confesso em um valioso colaborador que merece um prêmio? Simples:  a sua opção pela delação e capacidade de contar uma boa história.

Certamente não basta a história, ela precisa estar acompanhada de provas. Mas o que são provas, afinal? Se não elementos aptos a formar o convencimento de alguém? Quem define o valor de uma prova é quem se convence por ela. O problema é que quando já se está convencido, qualquer prova, prova.

Como leciona Rubens Casara: No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes. Substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias da ocasião, forjadas pelos meios de comunicação em massa, em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais.[3] A partir daí, quando o conteúdo da delação premiada já foi discutido amplamente em mídia impressa e televisiva, ingênuo crer que isso não influenciará o julgador quando da valoração daquela “prova” em face do ou dos delatados.

A garantia do processo, da produção da prova em contraditório, da proibição de prova ilícita, tudo cede em nome do apreço ao roteiro pré-estabelecido e da expectativa do final pretendido. Nesse contexto, as formas processuais deixam de ser garantias dos indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à ação dos mocinhos contra os bandidos (e a forma passa a ser um detalhe, que pode ser afastada de acordo com a vontade do “diretor”).[4]

O uso desmedido e banalizado da delação premiada, ao invés de uma reinvenção do processo penal, pode representar o seu melancólico fim. E nesse roteiro, muitos atores e figurantes, vão pagar um preço alto. Mas aqui, diferente do filme, não tem super-herói, e os figurantes são reais, por mais que muitos finjam não enxergá-los.

 


[1] DEBORD,  Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P: 17.

[3] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P: 12.

[4] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P: 13.

 


[i] Não estamos confundindo delação premiada com plea bargaining, mas tratando como espécies pertencentes ao gênero ‘justiça negocial’. São institutos distintos, obviamente, mas integram o mesmo gênero.

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