O roteiro delatado e o processo penal do espetáculo
30 de agosto de 2019, 8h00
Muitas já foram e, certamente, outras tantas ainda serão as críticas apresentadas à delação premiada e seu uso desmedido e ilimitado no processo penal brasileiro, o que altera sobremaneira a concepção de processo penal em um sistema jurídico.
Certamente, há um enorme problema em se buscar o incentivo e estruturação de um processo em vista de uma delação premiada (ou de uma negociação, como o plea bargaining), o que remonta a lógica inquisitorial da busca pela confissão. Ou seja, novamente se está conformando o processo pela confissão. O Acusado confessou, isso gera uma economia processual muito grande, é um ‘atalho para obtenção da verdade’ que ainda retira a carga decisória dos ombros do julgador e facilita o trabalho do órgão acusador. É um excelente negócio para todos envolvidos, menos é claro, para o agente delatado.
Incentivar a delação premiada (ou o plea bargaining)[i], como principal alternativa estatal para o combate a criminalidade complexa, é o reconhecimento de uma falha enorme dos órgãos de persecução penal, que fornecem um recado claro aos criminosos, o de que o crime quando acompanhado de uma delação pode vir a compensar.
Uma espetacularização do processo penal, leva a sociedade a clamar por condenações, vulgar e equivocadamente, associada com justiça. As garantias são os entraves para este “desfecho justo”, que impede a reflexão e o questionamento acerca do conteúdo daquele acordo.
Na sociedade do espetáculo há uma realidade invertida, o real surge do espetáculo e o espetáculo é real. Daí não há sentido buscar a limitação disso através do respeito às garantias processuais, pois como ensinou Debord, o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.[1]
Na operação lava jato foram centenas de delações premiadas, o que apresenta um contexto evidentemente problemático, qual seja, o valor da informação variava de acordo com o interesse do Ministério Público e não levava em consideração apenas a qualidade das informações.
Quando um mesmo indivíduo realiza dezenas de reuniões com os Procuradores da República começa a entender o que efetivamente querem ouvir, isto é, o valor da delação depende do roteiro a ser apresentado pelo delator e, principalmente, dos personagens nele inseridos. Ele, obviamente, busca atender as expectativas criadas para valorizar sua informação e obter o ‘melhor negócio’ possível. Mas isso também dá lugar a falsas imputações.
Chegou-se ao ponto de Procuradores da Força Tarefa da Lava-jato, confirmarem em conversas internas que “os vazamentos (das operações) objetivam sempre fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração.”[2]
É ilusório pensar que a necessidade de comprovação da história contada evita esses problemas, uma vez que existindo um roteiro, existindo personagens interessantes, os elementos de prova são delegados a segundo plano, pois o enredo já agradou, havendo um mínimo de indícios a dar um suporte de possibilidade de ocorrência dos fatos, aceita-se o acordo, premia-se o delator e, se vai atrás do delatado.
Isto evidencia uma predileção dos agentes públicos por alguns alvos, o que era facilmente compreendido pelos delatores, que precisavam construir seus roteiros a partir do interesse do público alvo. Tal como um diretor de cinema que amolda a história para ganhar mais apreço do público, que romantiza, que amplia fatos visando uma maior dramaticidade, tendo em vista o sucesso de seu filme. Da mesma forma age o delator.
A partir disso, se cria no imaginário o roteiro construído e olvida-se que a história fora pensada e contada a partir de um interesse em especial. Ou seja, obviamente, a história retratada é aquela que mais vantagens pode oferecer e isso fica claro no decorrer de tantas reuniões para tratar dos termos do acordo. O que transforma um criminoso confesso em um valioso colaborador que merece um prêmio? Simples: a sua opção pela delação e capacidade de contar uma boa história.
Certamente não basta a história, ela precisa estar acompanhada de provas. Mas o que são provas, afinal? Se não elementos aptos a formar o convencimento de alguém? Quem define o valor de uma prova é quem se convence por ela. O problema é que quando já se está convencido, qualquer prova, prova.
Como leciona Rubens Casara: No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes. Substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias da ocasião, forjadas pelos meios de comunicação em massa, em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais.[3] A partir daí, quando o conteúdo da delação premiada já foi discutido amplamente em mídia impressa e televisiva, ingênuo crer que isso não influenciará o julgador quando da valoração daquela “prova” em face do ou dos delatados.
A garantia do processo, da produção da prova em contraditório, da proibição de prova ilícita, tudo cede em nome do apreço ao roteiro pré-estabelecido e da expectativa do final pretendido. Nesse contexto, as formas processuais deixam de ser garantias dos indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à ação dos mocinhos contra os bandidos (e a forma passa a ser um detalhe, que pode ser afastada de acordo com a vontade do “diretor”).[4]
O uso desmedido e banalizado da delação premiada, ao invés de uma reinvenção do processo penal, pode representar o seu melancólico fim. E nesse roteiro, muitos atores e figurantes, vão pagar um preço alto. Mas aqui, diferente do filme, não tem super-herói, e os figurantes são reais, por mais que muitos finjam não enxergá-los.
[1] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P: 17.
[3] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P: 12.
[4] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P: 13.
[i] Não estamos confundindo delação premiada com plea bargaining, mas tratando como espécies pertencentes ao gênero ‘justiça negocial’. São institutos distintos, obviamente, mas integram o mesmo gênero.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!