Opinião

Não existe crime de ecocído no Tribunal Penal Internacional

Autor

  • Sylvia Steiner

    Juíza do Tribunal Penal Internacional (2003-2016). Membro da Delegação Brasileira na Comissão Preparatória do Tribunal Penal Internacional (1999-2000). Mestre em Direito Internacional pela USP. Senior Researcher na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (SP).

29 de agosto de 2019, 9h18

Em razão do desastre ambiental a que temos assistido nos últimos meses, não são poucas as inciativas tomadas por pessoas e grupos, na maior parte das vezes bem intencionados, no sentido de atribuir responsabilidade inclusive penal àqueles que, em razão do cargo ou função que ocupam, teriam o dever de prevenir, reprimir e sancionar quaisquer condutas que levem à destruição, total ou parcial, de nossas florestas e do ecossistema delas dependente.

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Tal forma de responsabilidade penal- a culpabilidade derivada da falha no dever de agir- reconhecida desde há muito na normativa internacional e vem expressa no Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, ratificado pelo Brasil e tornado, por força da Emenda Constitucional 45, norma de status constitucional para nosso país.

O Estatuto de Roma tipifica crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. No que neste texto nos interessa, vemos que são crimes de genocídio as condutas descritas no artigo 6 do Estatuto, todas demonstrando a intenção de seus agentes de destruir, no todo ou em parte, um grupo determinado, em razão da nacionalidade, raça, etnia ou religião. As condutas incriminadas são o assassinato, a causação de graves lesões físicas ou mentais, a imposição de condições de vida calculadas para causar a destruição do grupo, a tomada de medidas que impeçam nascimentos de membros do grupo, e a transferência forçada de crianças desse para outros grupos.

Em outras palavras, não são quaisquer atos de assassinato, de transferência forçada de crianças, de causação de graves danos físicos ou mentais em membros de determinado grupo que traduzem a prática de crimes de genocídio. Podem essas condutas, sim, demonstrar em tese a existência de crimes contra a humanidade, como veremos a seguir. Mas sem a intenção específica – o chamado dolus especialis no jargão legal – de destruir um determinado grupo, em razão de sua nacionalidade, raça, etnia ou religião, não se pode falar em genocídio.

Em relação aos crimes contra a humanidade, vêm estes descritos no artigo 7 do Estatuto de Roma. Sintetizando, temos as condutas de assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de pessoas, tortura, violência sexual, entre outras. No entanto, tais condutas só podem configurar crimes contra a humanidade, de competência do Tribunal Penal Internacional, se os atos delituosos forem cometidos como parte de um ataque sistemático ou generalizado dirigido contra a população civil, com conhecimento desse ataque.

Assim, da mesma forma como o crime de genocídio exige, para sua configuração, o elemento do dolo específico, o crime contra a humanidade, para assim ser classificado, exige que se demonstre o chamado elemento contextual, ou seja, o contexto em que foi perpetrado. Não é, pois, todo e qualquer ato de assassinato, de transferência forçada de população, de violência sexual, que configura crime contra a humanidade.

Essa breve e resumida apresentação se faz, a nosso ver, necessária, para que alguns pontos levantados pelas recentes manifestações a respeito da suposta existência de crime apelidado de “ecocídio” em nosso país possa ser analisada, ao menos sob o ponto de vista legal.

Em 15 de setembro de 2016 a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional publicou seu Policy Paper on Case Selection[1], um documento que expõe as principais diretrizes a serem adotadas por aquela Procuradoria na instauração de investigações de crimes sob a competência do Tribunal. Lembramos que, sob o Estatuto de Roma, a Procuradoria tem poder discricionário quase absoluto para iniciar por sua própria conta, com a autorização de uma Câmara Preliminar, uma investigação sobre fatos que cheguem ao seu conhecimento. Da mesma forma, fatos que cheguem aos eu conhecimento por intermédio de um Estado Parte, ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas, são igualmente submetidos à discrição da Procuradoria sobre a oportunidade/conveniência de abrir-se uma investigação, ainda que a decisão negativa, em alguns casos, tenha que ser submetida igualmente à Câmara Preliminar.

No seu Policy Paper, a Procuradoria esclarece que tem por dever estabelecer prioridades para a abertura de investigações, em especial devido à necessária alocação de recursos, à capacidade de o Office of the Prosecutor  levar a cabo um reduzido número de investigações, as condições operacionais no terreno, e o apropriado management  dos casos em andamento ( paras.11-13). Os casos serão selecionados, ainda, em razão de critérios de complementariedade e de gravidade, e ainda sob o ângulo dos interesses da justiça ( para. 24).

Os critérios menos objetivos, quais sejam, o da gravidade e o do interesse da Justiça têm gerado certas controvérsias na jurisprudência do TPI[2] e na doutrina internacional[3]. De acordo com o Policy Paper,  por gravidade há que entender-se que devam os alegados crimes “serem os mais graves dentro de uma determinada situação que traduza preocupação para a comunidade internacional como um todo ( para. 35). Para acessar a gravidade, a Procuradoria levará em conta um teste mais estrito, tendo como fatores, entre outros, a escala, a natureza, o modo de comissão, a maneira de comissão, e o impacto das condutas (para. 37).

A escala pode ser acessada, entre outros, pelo número de vítimas diretas e indiretas, a extensão dos danos causados, em especial os danos físicos e mentais causados às vítimas e suas famílias, bem como a extensão de seu âmbito geográfico ou temporal (para.38). Quanto à natureza dos crimes, a Procuradoria levará em conta os elementos fáticos relativos a cada conduta, tais como o assassinato, o crime sexual, crimes cometidos contra crianças, a perseguição, a imposição e condições de vida a um grupo com o propósito de levar à sua destruição (para. 39). Sobre a maneira de agir, serão levados em conta os meios utilizados para a prática delitiva, de que maneira foram praticados de maneira sistemática ou resultaram de um plano ou  uma política organizada, se resultou de abuso de poder, se há elementos demonstrando uma crueldade anormal, inclusive em relação à vulnerabilidade das vítimas, quaisquer motivo que envolvam discriminação, a comissão e estupros ou outras violências sexuais, e – e aqui chamamos a atenção do leitor – a destruição do meio ambiente ou de objetos protegidos (para. 40). 

É da leitura – a meu ver imprecisa – desse último tópico que, logo a seguir, vimos surgir no mercado literário legal inúmeros artigos intitulados algo como Tribunal Penal Internacional reconhece ecocídio como crime contra a humanidade[4] . Não tardou a que grupos de ativistas em direito ambiental apresentassem à Assembleia dos Estados Partes uma proposta de emenda ao Estatuto de Roma, nele incluindo um chamado quinto crime, o ecocídio, que pela proposta inclui figuras – algumas a nosso ver até bizarras – como as de “julgamento declaratório” em casos de crimes que ainda não ocorreram, mas devido às circunstâncias podem ocorrer, a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, crimes que excedam as fronteiras planetárias, etc…[5]

Não é de nosso conhecimento que a proposta tenha tido qualquer andamento no seio da Assembleia dos Estados Partes. Afinal, o Tribunal Penal Internacional foi criado para julgar os tradicionalmente reconhecidos como crimes contra a paz. O que importa chamar a atenção, portanto, é para o fato de que (1) não existe qualquer previsão no Estatuto de Roma de crime de ecocídio; (2) um Policy Paper da Procuradoria do Tribunal não cria, nem poderia criar, figuras penais típicas; (3) o Policy Paper  de 2016 apenas elenca como um dos fatores de aferição da gravidade de um delito os eventuais danos ao meio ambiente que este delito possa ter causado; (4) ao contrário do que diz o artigo publicado, entre outros, pelo ConJur, a Procuradoria do Tribunal, em nenhum momento, afirmou que iria “interpretar os crimes contra a humanidade de maneira mais ampla, para incluir também os crimes contra o meio ambiente que destruam as condições de existência de uma população”.

Ainda assim, recentemente, grupos de autointitulados juristas informaram estar preparando uma denúncia por ecocídio junto ao Tribunal penal Internacional[6]. A repercussão midiática, como era de se esperar, é enorme.

No entanto, a nosso entender, a  premissa da mencionada denúncia é errônea, uma vez que – e é preciso repetir sempre – não há crimes contra o meio ambiente no Estatuto de Roma. O que há são condutas de destruição do meio ambiente como meio, como método de comissão de delitos, tais  como crimes de guerra – um deles aliás expressamente previsto no artigo 8(2)(b)(iv) do Estatuto ( lançar intencionalmente um ataque, com o conhecimento de que tal ataque causará perdas incidentais de  vidas ou danos a civis ou a objetos civis ou que causarão danos difusos, sérios e duradouros ao meio ambiente, que sejam  excessivos em relação à vantagem militar concreta que se pretendia).

Assim, pode-se, sem dúvida, imaginar situações em que determinadas violações às normas de proteção ao meio ambiente sejam perpetradas com o intuito específico de aniquilar um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, configurando assim, em tese, um crime de genocídio. Pode-se também vislumbrar a prática de violações às regras de proteção ambiental, como incêndios desproporcionais, envenenamento de lençóis freáticos, pulverização aérea de agrotóxicos ou inseticidas que ponham em risco a vida e a saúde de populações, de forma sistemática ou generalizada, com conhecimento dessas condutas e com intenção, como meios ou métodos para causar mortes ou o deslocamento forçado de populações. Os crimes, entretanto, serão sempre contra as pessoas, as vítimas, a humanidade, objeto último da proteção legal, e não crimes contra o meio ambiente ou, pior ainda, ecocídio…

Cremos que a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional, ao contrário de algumas Cortes que criam tipos penais por analogia, ao examinar tais “denúncias”, e assim como o faz em relação a quaisquer outras denúncias, examinará liminarmente se o Tribunal tem jurisdição material sobre os fatos, e a conclusão será a de rejeição liminar da denúncia, em nome do princípio da legalidade estrita dos delitos e das penas.  E aqui falamos do princípio da legalidade estrita, legalidade prevista como garantia fundamental dos seres humanos desde as proclamações de direitos há 200 anos, e que vem expressa com todas as letras no artigo 5o. da nossa Constituição Federal e no artigo 22 do Estatuto de Roma: (1) Uma pessoa não poderá ser  penalmente responsabilizada sob este Estatuto a não ser que a conduta em questão, à data dos fatos, seja configurada como crime sob a jurisdição do Tribunal. (2) A definição do crime deverá ser construída de forma estrita, e não será ampliada por via da analogia. No caso de ambiguidade, a definição será interpretada de forma mais benéfica para a pessoa que esteja sendo investigada ou processada ou tenha sido condenada. (3) Este artigo não impede a caracterização de qualquer conduta como criminosa perante o direito internacional independentemente deste Estatuto.

Portanto, e já concluindo estas breves anotações, assumimos publicamente nosso entendimento no sentido de que quaisquer inciativas tendentes a criminalizar violações às regras de proteção ao meio ambiente, perante o Tribunal Penal Internacional, são legalmente inapropriadas, e embora possam causar grande impacto midiático não têm, a nosso ver, nenhuma consistência jurídica. Por outro lado, o desmonte das estruturas de proteção ambiental em nosso país, os discursos de incentivo ao desmatamento descontrolado, o descaso pela proteção do ecossistema de nossas florestas, rios e mar, com certeza merecem a atenção dos juristas para eventuais iniciativas juridicamente viáveis, inclusive perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão das Nações Unidas, e demais sedes internacionais. Mas, quanto ao Tribunal Penal Internacional, que vigore em toda sua plenitude o princípio da legalidade dos delitos.

[1] Ver em www.icc-cpi.int/prosecutor/policypaper/2016

[2] Ver, a exemplo, o caso da Union of Comoros, no qual a Procuradoria decidiu não abrir uma investigação, com base na pouca gravidade dos delitos efetivamente perpetrados, a Câmara Preliminar determinou à Procuradoria a revisão dessa decisão, e a Procuradoria apelou da decisão da Câmara, apelação esta que está pautada para julgamento no dia 02/09/2019. ICC-01/13-68, de 15/11/2018.

[3] A exemplo: EL ZEYDI, Mohamed. Artigos 17 a 19: Procedimentos de Admissibilidade, in O Tribunal Penal Internacional – Comentários ao Estatuto de Roma. Steiner, Sylvia, e Caldeira Brant, Leonardo Nemer (org). Belo Horizonte: Del Rey, 2016, pp.327-356, esp. Pp. 345-348. TRIFFTERER, Otto, e AMBOS, Kai. The Rome Statute of the International Criminal Court – A Commentary. C.H.BECK,HART , Nomos, 3rd edition, 2016, pp.781-831, esp. pp. 811-816.

[4] Ver: ConJur, 12/02/2017. Agencia Brasil, www.agenciabrasil.com.br, 11/02, 2017.

[5] Proposta à ASP, incluindo um draft proposal, pelo delegado de Vanuatu, preparado pelo Institute of Environmental Security de Vanuatu, 2016.

[6] A exemplo: Juristas preparam ação contra Bolsonaro, www.brasil247.com, em 27/08/2019; Juristas preparam ação contra Bolsonaro por ecocídio, www.terra.com.br, 27/08/2019.

Autores

  • Brave

    é candidata à presidência do IBCCrim pela Chapa 2, é fundadora do Instituto. Foi desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e juíza da Corte Penal Internacional, onde exerceu suas atividades de 2003 a 2016. É mestre em Direito Internacional pela USP

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