Opinião

O Projeto de Lei 1928/2019 e o risco de retorno à prisão migratória no Brasil

Autor

  • Ana Luisa Zago de Moraes

    é defensora pública federal membro do GT Migrações Refúgio e Apatridia da DPU; professora do Mestrado em Direitos Humanos da Uniritter; e doutora em Ciências Criminais.

29 de agosto de 2019, 6h18

Tramita na CAS – Comissão de Assuntos Sociais – o Projeto de Lei (PL) 1928/2019, de autoria do Senador Acir Gurcacz (PDT/RO), sob a Relatoria do Senador Luiz do Carmo (MDB/GO), que visa à inclusão de dispositivos na Lei 13.445/2017 (Lei de Migração).[1]

Inicialmente, o PL tratava sobre visto temporário ao imigrante para fins de estágio e intercâmbio, estabelecendo o criticável limite de idade de 29 anos para tal finalidade.[2] No entanto, o texto foi emendado pelo Senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE) para incluir, basicamente, limites ao princípio do non refoulement (art. 62-A), ao acesso à informação (art. 62-A, § 4.º), o dever de as transportadoras de disponibilizar à Polícia Federal informações antecipadas sobre passageiros e mercadorias (art. 38-A), a prisão para fins de expulsão (art. 48-A). Assim prevê a Emenda ao PL:

Art. 48-A. A autoridade policial federal poderá representar, perante o juízo federal, pela prisão ou outra medida cautelar necessária, para fins de deportação ou expulsão, observado o disposto no Título IX do Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

§1º O deportando ou o expulsando preso será informado de seus direitos, observado o disposto no inciso LXIII do caput do art. 5º da Constituição Federal.

§2.º A pessoa, enquanto não efetivada a sua deportação ou expulsão, poderá ser recolhida à prisão por ordem do juízo federal, pelo prazo de até sessenta dias.

§3.º O prazo previsto no §2.º deste artigo poderá ser prorrogado, em casos excepcionais, mediante despacho fundamentado do juiz federal.

§4º A autoridade judicial deverá comunicar a prisão de qualquer pessoa estrangeira à missão diplomática de seu Estado de origem ou, na sua falta, ao Ministério das Relações Exteriores, no prazo máximo de cinco dias.

A redação – que muito se assemelha à Portaria 666 do Ministério da Justiça, já analisada na Nota Técnica do Grupo de Trabalho Migrações, Refúgio e a Apatridia da Defensoria Pública da União –[3] prevê, além do uso de medidas cautelares alternativas e a própria prisão do imigrante para fins das duas principais medidas de retirada compulsória previstas na Lei de Migração: a deportação e a expulsão.

Trata-se da opção por instituto jurídico já extinto no ordenamento jurídico brasileiro[4], seja pela ausência de previsão constitucional, seja pela inclusão da não criminalização como um princípio geral do direito migratório pátrio.[5]

O princípio da não criminalização está previsto expressamente no art. 3º, III, da Lei de Migração e se adequa às recomendações e informes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, bem como é característico de legislações migratórias que visam à proteção dos direitos humanos, superando o paradigma securitário presente em legislações como o revogado Estatuto do Estrangeiro de 1980.

Esse princípio pode ser subdividido em quatro subprincípios: (a) não criminalização das migrações; (b) não discriminação no processo penal e execução penal de crimes comuns; (c) devido processo legal nas medidas de retirada compulsória; (d) não aprisionamento de migrantes com fundamento no seu status jurídico.

A prisão, da forma como prevista no dispositivo da Emenda ao PL, viola, pelo menos, os três últimos subprincípios, uma vez que, via transversa, acaba aprisionando o imigrante em razão de seu status migratório (inclusive em razão de irregularidade documental, já que não se restringe à prisão para fins de expulsão, mas também à decorrente de deportação); gera discriminação no processo e na execução penal ao prolongar o tempo de prisão penal quando desta decorrer a subsequente expulsão; viola o devido processo legal nas medidas de retirada compulsória ao não estabelecer limite temporal à prisão, tampouco estabelecer limites à cautelaridade desta, o que a torna mais gravosa do que a prisão penal.[6]

Caso o legislador considere a necessidade de medidas cautelares que garantam e efetividade das medidas de retirada compulsória – repatriação, deportação e expulsão -, deveria realizar amplo debate sobre a detenção migratória no Brasil levando em consideração os estândares do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial do Sistema Interamericano.

Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no Informe sobre Migrações nos Estados Unidos, atentou à necessidade de distinção entre a detenção migratória e a penal; recomendou que as instalações de detenção fossem realizadas perto de centros urbanos, para assegurar que os detidos tivessem acesso à defesa legal; vedou a deportação sumária para todas as pessoas em situação de vulnerabilidade e os solicitantes de refúgio que demonstrassem fundado temor de perseguição; e vedou a deportação sumária de residentes.[7]

Assim, seguindo esse estândares, o PL deveria, inicialmente, excluir a “prisão”, substituindo a expressão por “detenção migratória”, que consiste na medida restritiva da liberdade de imigrantes em decorrência de seu status migratório, seja para aplicação de medida de retirada compulsória, seja para qualquer outra finalidade. Não decorre da aplicação da lei penal, mas da atuação das agências de controle de fronteiras com base em previsão expressa na legislação migratória.

Posteriormente, deveria fixar parâmetros mínimos para a detenção, como o concreto risco de fuga e a inefetividade de medidas alterativas que vão desde a apresentação periódica, que não gera ônus ao Estado até o monitoramento eletrônico ara casos considerados, de forma motivada, mais “graves”. Deverá, ainda, sendo fundamentadamente inaplicáveis as medidas cautelares alternativas à detenção, fixar limite temporal correspondente à cautelaridade da medida – por exemplo, 5 (cinco) dias, em analogia à prisão temporária do Código Penal.

Além disso, deverá criar centros de acolhimento, perto de grandes centros urbanos e facilmente acessíveis a advogados e Defensores Públicos, para tal finalidade, de forma a evitar que os migrantes sejam conduzidos ao sistema penitenciário.

Outra violação decorre do texto do art. 62-A, que prevê a deportação sumária (ou repatriação), até mesmo antes de solicitar refúgio, à pessoa suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas, crimes hediondos, terrorismo, torcida com histórico de violência em estágios, dentre outros. Nesse sentido, além da violação ao princípio da presunção de inocência, também macula o direito de buscar e receber refúgio previsto no art. 22.7 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que veda a repatriação sumária sem o exame adequado do status de refugiado e sem conceder entrevista para verificar se estão presentes os requisitos de “refugiado”.[8]

Espera-se, portanto, a não aprovação da referida proposta e a abertura de debate amplo sobre a efetivação das medidas de retirada compulsória seguindo os parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos.


[1]Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136094

[2] O limite de idade de 29 anos é originado do Estatuto da Juventude (Lei 12.852, de 5 de agosto de 2013), para o qual são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade. (Art. 1º, § 1º).

[3] Nesse sentido: https://www.conjur.com.br/2019-jul-27/portaria-reportacao-viola-direitos-constituicao-dpu

[4] Acerca do histórico do instituto no Brasil: MORAES, Ana Luisa Zago de. Crimigração: a relação entre política criminal e política migratória no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2016.

[5] MORAES, Ana Luisa Zago de. Migrações forçadas e o princípio da não criminalização. In: DUTRA, Cristiane Feldmann; PEREIRA, Gustavo de Lima. Direitos Humanos e Xenofobia: violência internacional no contexto dos imigrantes e refugiados. Curitiba: Prismas, 2017.

[6] Acerca das consequências da prisão migratória sem critérios de cautelaridade: MORAES, Ana Luisa Zago de. Crimigração: a relação entre política criminal e política migratória no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2016.

[7] OEA. Comissión Interamericana de dos Derechos Humanos. Informe sobre Imigraciones em Estados Unidos: Detenciones y debido proceso. 30 diciembre 2010.

[8] CIDH. Informe de Fondo n. 51/96. Caso 10.675, Personas Haitianas – Haitian Boat People – Estados Unidos, 13 de março de 1997, párr. 163. In: CIDH. Movilidad humana. Estándares interamericanos. Washington: OEA, 2015, p. 2013.

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