Opinião

Lei de Abuso evidencia que Direito Penal deve ser aplicado como último recurso

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29 de agosto de 2019, 6h38

Pode parecer surpreendente que os juízes sejam contra a edição de uma lei visando a punir os abusos de autoridade. O que parece estar sendo desconsiderado pelos juízes é que, se editada, a lei será aplicada por eles mesmos, ainda que o acusado seja outro juiz. Quando a lei a eles se destinam não confiam nos julgamentos dos seus pares? Juízes são bons tão somente na aplicação da lei para os outros?

O temor da magistratura com a edição da Lei de Abuso de Autoridade é demonstrativo de que os juízes sabem como são feitos os julgamentos, conhecem as tramas que envolvem as investigações, as acusações, os processos e a formação de juízo sobre os fatos e os acusados. Por isso os juízes têm medo dos juízes. Sou juiz e também tenho medo.

Os juízes estão certos. O Direito Penal não resolve nada. A questão é que, no Brasil, virou a panaceia para todos os males e tem sido usado em todos os conflitos relacionais. Com a edição de uma Lei de Abuso de Autoridade e o encarceramento se pretende resolver questões da estrutura autoritária da sociedade brasileira.

A lógica de quem pensa o Direito Penal e o Sistema de Justiça para resolver problema de abuso de autoridade é a mesma de quem acredita que a violência somente se combate com "tiro na cabecinha", ou seja, para acabar com um tipo de violência seria necessária uma violência maior de outro tipo.

O Direito Penal vem sendo usado abusiva e indevidamente. De conflito no campo decorrente da estrutura fundiária, a conflitos de interesses decorrentes de relações de consumo ou exercício de necessidades fisiológicas em vias públicas onde inexiste banheiro público, tudo tem sido submetido ao sistema de justiça penal.

Os laços de sociabilidade e civilidade não se estabelecem a partir do Direito. Muito menos do Direito Penal. Não somos homicidas em série porque o Código Penal nos puniria. Mas, porque somos humanos e nos reconhecemos como tal, assim como aos outros. O Direito Penal é inadequado na maioria das vezes, também por ser o mais rigoroso. Além disto, impõe "punições não previstas em lei" como a estigmatização e a humilhação do acusado.

É o ramo do Direito mais sujeito aos riscos de cometer injustiças irreparáveis. O Direito Penal, mesmo diante de leis claras orientadas por princípios objetivos, é sempre abstrato e subjetivo, com aplicação carregada de preconceitos.

De decisão judicial se recorre. Não se pune quem decidiu. O trabalho dos juízes não pode ficar sujeito a ameaças do Direito Penal. A independência judicial é fundamento da atividade dos juízes, assim como a responsabilidade institucional, a imparcialidade e o compromisso com a realização substancial da ordem jurídica.

As decisões judiciais devem estar sujeitas a revisões a fim de reparar possíveis erros. O princípio da inocência precisa ser reafirmado em nome da sociabilidade. E esta concepção deve ser estendida a todos os cidadãos e a todos os que são acusados.

A repulsa dos juízes à Lei do Abuso de Autoridade deve servir como reflexão de que todos erramos e de que o Direito Penal somente deve ser aplicado como último recurso diante de um conflito. Jamais em primeiro lugar.

Não foi a falta de lei de abuso de autoridade que propiciou as ilegalidades na Lava Jato. Todos sabemos que condução coercitiva de quem não fora intimado e desatendera intimação, interceptação de conversa telefônica quando cessada a autorização, divulgação de conversa telefônica e outras violações ao sigilo profissional, bem como recebimentos – em conflito de interesses com os objetivos institucionais que deveriam orientar as atuações funcionais -, a pretexto de palestras, pagos por quem tinha interesse no resultado de causa, são ilícitos. Mas, havia instâncias que respaldavam as ilegalidades.

A Lei do Abuso de Autoridade poderá não atingir quem incida nas ilegalidades que pretende evitar e seja protegido. Mas, poderá ser fundamento para perseguições a quem não atenda a interesses escusos, ainda que ao final se conclua pela improcedência do que abusivamente se acuse. As penas não estão somente nas sentenças, mas sobretudo nos processos a que são submetidos os "indesejáveis".

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