Opinião

Nova Lei de Abuso não traz ampla inovação nem ameaça combate à corrupção

Autor

  • Luísa Walter da Rosa

    é advogada criminalista pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS mestranda em Direito do Estado na UFPR associada do IBCCrim e do IBDPE vice-presidente da Comissão de Investigação Defensiva e Justiça Penal Negociada da OAB/SC autora de livros sobre colaboração premiada e acordo de não persecução penal.

27 de agosto de 2019, 6h37

Domina as rodas de conversa a aprovação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei n. 7.596/2017[1], que trata sobre a nova Lei de Abuso de Autoridade, e criminaliza uma série de condutas praticadas por agentes públicos. Como já é praxe na atualidade, o assunto está em alta na internet, e transbordam manifestações pró e contra. Isso porque, na era das mídias sociais, dos tribunais de Facebook, das fake news, do amplo, imediato e irrestrito acesso a todo tipo de conteúdo, a sociedade (e seus representantes) forma e divulga suas opiniões – ainda que sem qualquer fundamento – o mais rápido possível.

Logo, a fim de contribuir com um necessário, saudável e democrático debate a respeito deste projeto de lei (PL), realizei uma breve análise técnico-jurídica sobre a proposta legislativa, comparando o projeto com a legislação já vigente no nosso ordenamento, e rebatendo os principais argumentos favoráveis ao seu veto total.

Contudo, antes de partir para a análise em si, gostaria de compartilhar com o leitor que a vontade de escrever este texto veio de uma angústia pessoal acerca da carência de profundidade e conteúdo dos debates atuais. Sou a única pessoa da minha família, até o momento, que seguiu uma carreira jurídica e vejo a dificuldade que meus familiares muitas vezes têm em compreender a densidade e a complexidade dos acontecimentos envolvendo o Direito.

Todos os dias somos “bombardeados” com notícias sobre o sistema de justiça, julgamentos de processos, termos técnicos, atuação do STF, e, principalmente, tudo o que concerne à área criminal – a minha área de atuação. Vivemos o verdadeiro “processo penal do espetáculo”[2], mas sem que a sociedade “leiga” compreenda verdadeiramente o que está sendo discutido e noticiado.

Logo, foi a partir desta angústia e desta realidade que busquei escrever este artigo. Em que pese eu faça uma análise jurídica do assunto, procurei fazer da forma mais clara e acessível possível, de forma que o conteúdo do texto e da comparação realizada sejam compreendidos por qualquer pessoa.

Pois bem. Depois de ler e assistir uma série de notícias e posicionamentos oficiais de instituições jurídicas, favoráveis e contrários ao projeto de lei que criminaliza de forma contundente os abusos de autoridades, senti vontade de analisar tecnicamente o assunto e verificar se a lei era de fato tão “absurda” quanto o noticiado.

Em razão disso, procedi a leitura do texto oficial, e, num primeiro momento, tive uma sensação de familiaridade com inúmeros dispositivos ali presentes. Resolvi então me dedicar a uma comparação entre a (possível) nova legislação e o que temos atualmente vigente no nosso ordenamento, sem buscar, é claro, esgotar o assunto. Para fins didáticos, elaborei uma tabela comparativa, que se encontra disponível em anexo para consulta.

A primeira e principal premissa, na minha opinião, da qual se deve dar início a análise de uma lei, é interpretá-la a partir de uma boa hermenêutica jurídica[3]. A lei deve ser lida e interpretada como um todo, e não de forma isolada, além do que essa leitura deve sempre partir de uma ótica constitucional. Não existe a possibilidade de aplicação e interpretação de uma lei que vá contra o que prega a nossa Constituição Federal.

Sendo assim, o que mais me chama a atenção, e que pouco é ressaltado nos debates sobre o projeto de lei, são as suas disposições gerais, que consequentemente norteiam todo o texto da proposta legislativa.

O artigo 1º, §1º faz questão de esclarecer que eventual crime de abuso de autoridade somente se configurará quando o agente o pratique com o dolo específico de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Ou seja, caso o agente pratique a conduta típica, ele só será responsabilizado se comprovada a vontade e consciência específicas de prejudicar alguém, beneficiar-se a si ou outra pessoa, ou até mesmo por mero capricho e satisfação pessoal.

Ademais, o mesmo artigo ainda deixa claro, no parágrafo 2º, que a divergência na interpretação da lei ou na avaliação das provas não configura por si só abuso de autoridade.

A meu ver, essas exigências legais, as quais o legislador reputou a devida importância, por se encontrarem presentes logo no primeiro artigo da lei, garantem a independência da atuação dos servidores públicos e suas instituições, não configurando ameaça de violação dos princípios constitucionais da independência funcional de magistrados e membros do Ministério Público, do juiz natural e da motivação das decisões judiciais.

Desta forma, não se sustentam, por si só, as alegações de que a nova lei deveria ser vetada, na sua integralidade, pois inconstitucional, genérica demais, e, em razão disso, capaz de inibir a atuação dos agentes públicos, a independência das instituições, tornando as autoridades vulneráveis a penalizações a qualquer custo – um resumo geral dos argumentos contrários à lei constantes nas notas de repúdio de instituições públicas[4].

Primeiro porque não há inconstitucionalidade (em uma primeira análise, ao menos), tendo em vista que a maioria dos crimes criados remetem a dispositivos da própria CF/88. Quando não remetem a Carta Magna, relacionam-se com artigos previstos em outras leis do nosso ordenamento (vide tabela em anexo). Segundo, desde o início da lei já se esclarece que somente em situações muito singulares o agente seria penalizado.

Logo, conforme bem explicado pelo deputado federal (PP/PR) Ricardo Barros, relator do PL na Câmara dos Deputados, “o projeto não pretende punir quem trabalha seguindo as balizas legais, mas sim aqueles que extrapolam a lei em detrimento da sociedade como um todo”.

Ainda, juízes e membros do Ministério Público “continuarão livres para avaliar os fatos que chegarem ao seu conhecimento, valorar as provas encontradas e interpretar as leis conforme sua experiência. Não haverá qualquer limitação da atividade jurisdicional ou investigativa, mas sim uma exigência de maior zelo na fundamentação das decisões, o que, sem dúvida, contribuirá para um ambiente de maior segurança jurídica”[5].

Com a leitura completa do PL, a minha impressão vai no mesmo sentido da do deputado, de que se fizermos cumprir a lei, agora com a garantia de que caso os agentes públicos a violarem indevidamente, serão investigados e, se comprovada autoria e materialidade, devidamente responsabilizados, haverá sim uma maior segurança jurídica. Isso porque todos os agentes, sejam eles policiais, delegados, promotores de justiça, juízes terão que aprimorar a qualidade da sua atuação, a fim de evitar que abusos e ilegalidades sejam cometidos.

Em consequência disso, todo o sistema de justiça se beneficia, pois a qualidade das provas produzidas aumenta, o número de prisões indevidas e/ou ilegais diminui e eventuais condenações são subsidiadas por elementos mais contundentes.

Ressalta-se, desde já, que não há nenhuma inovação estapafúrdia na lei no sentido de que as autoridades serão condenadas sem o devido processo legal, sem o respeito ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, por exemplo. Pelo contrário, constatados indícios da prática delituosa, o próprio projeto de lei garante que desde a investigação policial até o término de eventual ação penal todos os direitos do investigado/acusado serão garantidos, seja ele um agente público ou uma pessoa comum.

Partindo destas ideias iniciais, analiso agora a parte mais polêmica do projeto de lei, o seu Capítulo VI, que dispõe acerca “dos crimes e das penas”. A fim de permitir uma visualização melhor, elaborei uma extensa tabela comparativa entre os “novos” tipos penais do PL e o que já é previsto na nossa legislação atual, mais especificamente fazendo referências ao Código Penal, Código de Processo Penal, à Constituição Federal, Lei de Execução Penal, Lei da Prisão Temporária, Lei da Interceptação Telefônica, Lei das Organizações Criminosas e até mesmo ao Código de Processo Civil.

Esclareço que não necessariamente as comparações remetem a tipos penais (crimes), mas sim a dispositivos legais e súmulas do Supremo Tribunal Federal que tratam do mesmo assunto.

A meu ver, a única novidade do PL n. 7.596/2017 foi criminalizar condutas praticadas por agentes públicos em desacordo com previsões legais, que são cotidianamente desrespeitadas na prática forense. Como não existe nenhuma sanção eficaz contra o não cumprimento dos dispositivos legais, já existentes e indicados na tabela, a saída encontrada pelo legislador foi tornar o desrespeito à lei crime.

Em que pese eu tenha um forte receio à excessiva expansão da criminalização de condutas no ordenamento jurídico brasileiro, há que se considerar como válida e há que se refletir acerca da iniciativa legislativa, que talvez seja o caminho mais eficaz para garantir e frear o tão corriqueiro abuso de autoridade.

É certo que alguns tipos penais se repetem, foram redigidos de forma ampla demais ou poderiam ser abarcados por previsões já existentes em outras leis, como os crimes de constrangimento ilegal e prevaricação previstos no Código Penal, por exemplo. Além do mais, toda legislação merece ser devidamente debatida e melhorada, antes de eventual aprovação ou rejeição, a fim de verificar se há aplicabilidade e necessidade.

Porém, transvestir as devidas críticas ao PL numa massiva campanha sensacionalista de veto total pelo Presidente da República é um desrespeito com a população brasileira. Ao invés de habilitar a sociedade para o debate, esclarecer sobre como funciona a realidade, o que já possui previsão em lei, o que falta e o que pode ser melhorado, opta-se em adotar um discurso vitimista, falacioso, rotulante e sem embasamento concreto.

Em tempos caóticos e de extrema divisão na sociedade brasileira, tenta-se mais uma vez fortalecer o discurso do “nós, cidadãos de bem X eles”, rotulando aqueles que ousam discordar, criticar ou travar um debate sério de “favoráveis à corrupção, comunistas, defensores de bandidos”, etc.

Dizer que a aprovação do projeto de lei por si só acabaria com o combate à corrupção no país, viabilizaria a impunidade dos “criminosos”, em especial da criminalidade organizada, e impediria a atuação independente dos órgãos judiciais é fugir do tema, tornar a discussão rasa e apelar para o senso comum.

Não há nenhuma inovação legislativa de conteúdo no projeto. O conteúdo de todos os tipos penais criados – sem exceção – remetem a artigos de lei ou súmulas do Supremo Tribunal Federal que são completamente ignorados por muitas autoridades, ainda que com louváveis exceções. Todos os dias se desconsideram ou se mitigam artigos de lei em prol da “segurança da sociedade e da garantia da ordem pública”.

Todos os dias o investigado/acusado submetido a um dilacerante processo penal vê seus direitos e garantias serem renegados, sem embasamento legal, a partir de pedidos e construções jurisprudenciais que refletem o conservadorismo e juízo de valor de alguns “cidadãos de bem”. Todos os dias nós advogados criminalistas temos que explicar o inexplicável aos nossos clientes: a lei diz uma coisa, mas na prática é completamente diferente, depende em qual promotoria, vara, câmara o seu processo vai cair.

A lei é a mesma para todos. Não existe hierarquia entre juízes, promotores, advogados. Todos nós atuamos e qualquer pessoa que seja parte de um processo, seja ele penal ou não, será submetida ao cumprimento da mesma legislação. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, conforme o caput do artigo 5º da Constituição Federal”. Porém, na prática é diferente.

Tendo em vista este cenário, o projeto de lei vem em boa hora, numa tentativa de garantir a paridade de armas no processo, a igualdade de tratamento, a isonomia legal, processual e operacional do nosso sistema de justiça e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

Aproveito o ensejo para mencionar e refutar brevemente os argumentos contrários a dispositivos do PL, que constam no parecer de 5 páginas elaborado pelo Ministério da Justiça[6]. Confesso que me impressionou a carência técnica de fundamentação doutrinária e jurisprudencial do parecer[7]. Dá a impressão de que foram transcritas meras opiniões pessoais que desconhecem ou pouco convivem com a realidade do sistema de justiça, em especial as mazelas que assolam o sistema de justiça penal do nosso país.

Desabafos pessoais à parte, toda possível alteração legislativa merece a devida atenção. De nada adianta criar leis totalmente desconectadas e inviáveis se comparadas à realidade do país. Estudos técnicos devem ser realizados, discussões sérias travadas, especialistas favoráveis e contrários ao tema ouvidos. Resumidamente, devem se garantir os pilares de um Estado Democrático de Direito.

E, por fim, para que esse Estado continue existindo, não podemos continuar permitindo que abusos sejam cometidos em prol de um “bem maior”. Repito, mais uma vez, que todos nós estamos submetidos às mesmas leis. Todos nós, sejamos pessoas comuns, sejamos autoridades detentoras de um cargo público, eventualmente, podemos praticar uma conduta criminosa e sofrermos (literalmente) uma ação penal.

Caso isso ocorra, nós precisamos ter a certeza e a segurança de que estamos protegidos e que seremos julgados tão somente pelas leis, e não submetidos a boa ou má vontade das pessoas que as aplicam.

Nem as pessoas comuns, nem as autoridades precisam ter medo[8]… como dito desde o título, não existem inovações despropositadas no projeto de lei. O que se tenta com ele, e o que no fundo todos nós queremos (ou deveríamos querer), é a tão sonhada e almejada igualdade, inclusive e especialmente quando formos submetidos a rigorosa aplicação da lei.


[1] Projeto disponível na íntegra em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=D9DD032E44A0889EADA05B6243CD9169.proposicoesWebExterno2?codteor=1556805&filename=PL+7596/2017.

[2] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

[3] Sobre o conceito de hermenêutica jurídica: https://www.conjur.com.br/2015-ago-29/isto-hermeneutica-juridica

[4] Disponíveis em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/em-resposta-a-lei-de-abuso-de-autoridade-pgr-defende-independencia-do-mp

https://www.mpsc.mp.br/noticias/projeto-de-lei-de-abuso-de-autoridade-n-e-contra-excessos-e-retrocesso

http://ajufe.org.br/images/pdf/AJUFE_Nota_Tecnica_PL_7596-2017_1.pdf

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/a-lei-de-abuso-de-autoridade-nao-merece-vetos-ricardo-barros/

[6] Íntegra do parecer: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/ministerio-justica-emite-parecer-1.pdf

[7] Sobre o parecer do MJ: https://www.conjur.com.br/2019-ago-20/lenio-streck-moro-indica-livro-nao-leu-chumbar-lei

[8] https://www.conjur.com.br/2019-ago-17/lenio-streck-juizes-procuradores-nao-confiam-neles-mesmos

Autores

  • Brave

    é pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS; graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); advogada criminalista, associada da Associação de Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (AACRIMESC); e membro das Comissões de Assuntos Prisionais e Direito Penal da OAB/SC.

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