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Há desafios e limites na discussão sobre a cobertura de internação domiciliar

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27 de agosto de 2019, 8h00

Tema sensível que vem cada vez mais tomando espaço na mídia, na área acadêmica e, claro, no cenário econômico, o envelhecimento da população brasileira é algo que preocupa — ou deveria preocupar — toda a sociedade. Dessa vez, porém, não estamos diante de uma “jaboticaba”, já que o fenômeno atinge grande parte do mundo.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, em 2050 teremos cerca de 2 bilhões[1] de pessoas com 60 anos ou mais no mundo. Já no Brasil, pesquisas do IBGE relatam um crescimento expressivo desde o ano 2000, com projeções para 2030 de 223 milhões de brasileiros, com aproximadamente 41,5 milhões de idosos (18,6%).

Para tratar do tema objeto dessa reflexão, porém, não vou me permitir focar apenas nos idosos — embora a maior parte. O calamitoso mal da incapacidade atinge também diversas outras faixas etárias, inclusive nascituros, que podem ser dependentes durante toda a sua vida de um serviço médico e de cuidador.

Sobre a necessidade de acompanhamento técnico em domicílio — aqui abrangendo todos os ramos da saúde, tratarei neste artigo especificamente daqueles casos onde o enfermo tem um plano de saúde.

Hoje, aproximadamente 47 milhões de brasileiros são usuários desse segmento. Ou seja, cerca de 22% são privilegiados e não dependem diretamente do SUS para as suas necessidades médicas, desde que estejam previstas em contrato ou abrangidas pelo rol de procedimentos e eventos em saúde editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)[2].

Após essa breve introdução para demonstrar parte do problema existente, cujo prognóstico não é favorável, dou início ao principal objeto de reflexão deste artigo: até onde as operadoras de planos de saúde estão obrigadas a disponibilizar e assumir responsabilidades com o tratamento em ambiente domiciliar, o popularmente — e muitas vezes confundido — home care?

A ideia é trazer para reflexão os tipos de atendimentos voltados para os pacientes em ambiente domiciliar, as respectivas obrigações e, por fim, como a ANS e o Poder Judiciário vêm enfrentando o assunto.

Não pretendo, claro, esgotar o tema diante da sua complexidade, mas, sim, pretendo fazer com que reflexões possam ser extraídas, gerando ainda mais dúvidas naqueles que porventura têm certezas.

Para trazer norte ao debate, destaco as seguintes modalidades firmadas pela literatura: (i) internação domiciliar; (ii) assistência domiciliar e (ii) atenção domiciliar[3].

Tais conceitos foram utilizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), através da RDC 11/2006, cujos fundamentos serviram de alicerce para as decisões do Superior Tribunal de Justiça desde então — voltarei ao tema mais adiante, uma vez que a judicialização da saúde é crescente, com decisões ainda merecedoras de maior aprofundamento.

Antes disso, a Lei Federal 10.424/2002 — que alterou a Lei Federal 8.080/1990 — já estabelecia no âmbito do SUS conceitos e abrangências de atendimentos e internações domiciliares, delineando os seus limites para o setor público. De forma complementar, a RDC 11/2006 da Anvisa trouxe conceitos mais específicos e clareou algo até então enfumaçado.

No segmento privado, o tema foi destacado pela ANS, atualmente, na Resolução Normativa 428/2017. Mas há tempo a internação domiciliar é objeto de esclarecimento por parte daquele órgão regulador como uma faculdade das operadoras.

E por que a ANS entendeu ser necessário alguns esclarecimentos técnicos sobre o home care? Porque não há qualquer previsão legal que obrigue as operadoras de planos de saúde a procederem ao custeio da assistência à saúde no ambiente domiciliar.

Podem as operadoras, porém, oferecer essa cobertura aos contratantes dentro do bojo do contrato (art. 2º da RN 428/17), cujo cálculo atuarial deverá ser revisto para o alcance da contraprestação e equilíbrio econômico-financeiro daquele contrato.

Adentrando aos conceitos, a atenção domiciliar é a mais abrangente, pois além de contemplar as outras duas modalidades, traz ações de promoção à saúde, prevenção, reabilitação, tratamento de doenças dentre outras modalidades voltadas para um aspecto completo da saúde e da doença.

Já a assistência domiciliar é o conjunto de atividades de caráter ambulatorial, programadas e continuadas desenvolvidas em domicílio em favor do paciente.

Por fim, a mais específica e ponto nodal deste trabalho, está a internação domiciliar. Segundo definição da RDC 11/2006 da Anvisa, entende-se como o conjunto de atividades prestadas no domicílio, caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente com quadro clínico mais complexo e com necessidade de tecnologia especializada.

Em razão da complexidade do tema, os Conselhos Federais de Medicina e de Enfermagem também trataram de regulamentar a questão da internação e assistência domiciliares desde o início dos anos 2000, através da Resolução 1.668/2003 e Resoluções 270/2002 e 464/14, respectivamente, fazendo eco com o desafio do debate em nossa sociedade.

Há tempo a matéria envolvendo a cobertura — ou não — dos serviços em ambiente domiciliar por parte das operadoras vem extrapolando o viés administrativo entre empresa e consumidor, tomando a cena das discussões jurídicas nos tribunais de todo o país. Por isso, a digressão supra é importante para dar continuidade e entender a real necessidade de cada paciente, assim como o limite do seu contrato.

Isso porque a disponibilização da atenção domiciliar — embora não amparada pela maioria dos contratos — envolve gastos significativos com pessoal, deslocamentos, equipamentos e insumos.

Não por outra razão, a ANS tratou como uma faculdade — diante do silêncio do legislador sobre o tema — da empresa operadora de plano de saúde fornecer esse tipo de cobertura. Ela [operadora] deve ser livre para oferecer o serviço levando em consideração os riscos, o necessário equilíbrio do contrato e a harmonia da relação de consumo, obedecendo as regas do Código de Defesa do Consumidor e aos princípios da equidade e da boa-fé (art. 4º III)[4].

Em razão das diversas interpretações e teses é que nasceu o norte dado pelo Superior Tribunal de Justiça para delinear as obrigações das operadoras, especificamente sobre a internação domiciliar como um substitutivo da internação hospitalar.

O primeiro voto que tratou sobre a internação domiciliar foi proferido no REsp 1.378.707/RJ, com relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino. O destaque, porém, está no voto-vista do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que, mais adiante, deu origem ao principal acórdão sobre o tema (REsp 1.537.301/RJ).

Afirmou Sua Excelência — citando diversas doutrinas médicas sobre internações em ambientes hospitalar e domiciliar — que a única hipótese onde a operadora de plano de saúde está obrigada a cobrir é quando há possibilidade de a internação domiciliar substituir a internação hospitalar, desde que exista: (i) condições estruturais na residência[5]; (ii) real necessidade do atendimento domiciliar, com verificação do quadro clínico do paciente[6]; (iii) indicação expressa do médico assistente[7]; (iv) solicitação da família[8]; (v) concordância do paciente[9]; (vi) e, por fim, a não afetação do equilíbrio contratual[10].

Estamos diante de um rol taxativo firmado pelo STJ para os casos onde não haja previsão contratual para a cobertura da internação domiciliar. Sem uma dessas condições, a operadora, s.m.j., não está obrigada a transferir o paciente para o seu domicílio.

Merece atenção o fato de o STJ não ter feito menção à cobertura do cuidador por parte das operadoras, o qual, segundo a RDC 11/2006 da Anvisa, é aquela “pessoa com ou sem vínculo familiar capacitada para auxiliar o paciente em suas necessidades e atividades da vida cotidiana”. Esse tipo de serviço não é contemplado na internação hospitalar, não podendo sequer haver comparação com o trabalho e as responsabilidades dos enfermeiros e técnicos de enfermagem.

Sobre o tema, foi aprovado recentemente no Plenário da Câmara dos Deputados — já enviado para sanção presidencial — o Projeto de Lei da Câmara 11/2016, que cria e regulamenta a profissão do cuidador.

Logo em seu artigo 2º, o texto do PLC define que a profissão “caracteriza-se pelo exercício de atividade de acompanhamento e assistência à pessoa com necessidade temporária ou permanente, mediante ações domiciliares, comunitárias, ou institucionais de cuidado de curta ou longa permanência, individuais ou coletivas, visando à autonomia e independência, zelando pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer”.

Para separar as responsabilidades de cada profissional na atenção, cuidado e tratamento do paciente, o parágrafo único do mesmo dispositivo é taxativo ao vedar ao cuidador “a administração de medicação que não seja por via oral nem orientada por prescrição do profissional de saúde, assim como procedimentos de complexidade técnica”, cujas responsabilidades são exclusivas das equipes médica e/ou de enfermagem que assistem ao paciente.

Como se vê, diversa nuances percorrem o assunto envolvendo a internação domiciliar e a responsabilidade financeira das operadoras de planos de saúde. Nesse sentido, caminhou bem o STJ ao trazer para os consumidores e para o mercado um norte jurisprudencial sobre a matéria, aplicando explicitamente a Análise Econômica do Direito (AED) para dirimir casos que dificilmente terão semelhanças fáticas nos processos judiciais.

Todo o debate sobre o tema deve ser norteado em prol de um único bem: o paciente. Cada um terá a sua peculiaridade e somente o dia a dia poderá demonstrar a sua real necessidade, seja no ambiente hospitalar, seja no ambiente domiciliar, pois só assim teremos a plenitude da sua dignidade em momento tão difícil da sua vida.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[1] Que reflete aproximadamente 17% da população, frente a 8,5% no ano de 2016, segundo dados do Census Bureau dos Estados Unidos — https://www.census.gov/

[2] Atualmente, o rol da ANS está previsto na Resolução Normativa 428, de 7 de novembro de 2017. Em complemento, leia-se o artigo 10-A da Lei 9.656/1998:
Art. 10-A – A amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS.

[3] Revista Saúde e Sociedade, volume 5, número 2, páginas 88-95, 2006.

[4] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

III — harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (
art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

[5] Por exemplo, deve haver avaliação e laudo da concessionária de energia elétrica, atestando a viabilidade de suporte da carga que será gerada por aparelhos médicos e de ar condicionado; estrutura física para comportar os móveis, aparelhos e utensílios; local apropriado para a realização dos atendimentos e permanência dos profissionais, assim como guarda de produtos; que o local não tenha condições precárias, que exponham ao risco paciente e profissionais etc.

[6] Muitas vezes não há indicação de uma substituição da internação hospitalar pela domiciliar, mas sim, o encaminhamento do paciente para o ambiente domiciliar para continuidade de tratamento ou acompanhamento por cuidador. Sob esse prisma, não há obrigatoriedade de cobertura por parte da operadora.

[7] O médico assistente deve atestar e laudar a necessidade de substituição da internação hospitalar pela domiciliar, indicando expressamente quais tratamentos serão realizados naquele ambiente, que, anteriormente, eram realizados no hospital.

[8] Mediante a indicação do médico assistente, deve a família do paciente solicitar a internação domiciliar ao seu plano de saúde, juntando toda a documentação necessária para a análise.

[9] Caso o paciente esteja consciente e com suas faculdades mentais aptas para decidir, este deverá anuir com a internação domiciliar. Na hipótese de o paciente ser incapaz, essa decisão competirá ao seu representante legal. Se este estiver incapacitado de exercer as suas faculdades, entendo, prima facie, que caberá à sua família a decisão.

[10] Ponto sensível que engloba comparativo das despesas realizadas em ambiente hospitalar x domiciliar. Isso porque, como dito, esse cálculo não foi previsto na álea do contrato.

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