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A necessidade da tutela da intimidade para o sigilo investigativo

27 de agosto de 2019, 8h00

Por Leonardo Marcondes Machado

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Sigilo implica restrição ou limitação quanto ao acesso às informações. Diferente do processo penal, cuja marca principal, em um sistema constitucional acusatório, é a publicidade (art. 5º, incisos XXXIII e LX, bem como art. 93, IX, todos da CRFB), o inquérito policial é sigiloso por natureza. A relação aqui é inversa. O sigilo na investigação decorre da própria lei (ex lege).

Não é necessário, portanto, que a autoridade judiciária decrete o sigilo no inquérito policial, uma vez que é da própria estrutura do procedimento investigatório a limitação informativa, principalmente no tocante a terceiros.

Nesse sentido, reza o art. 20 do CPP que “a autoridade (policial) assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.

Frise-se, contudo, que é preciso interpretar essa característica (legal) de sigilo na fase investigativa à luz da ordem constitucional e convencional, inclusive em superação à ideia autoritária e tipicamente inquisitiva do inquérito policial “como se fosse uma tumba impenetrável”[1] pela defesa do investigado.

A justificativa tradicional para o sigilo no inquérito policial remonta à máxima de eficiência nas investigações. O segredo seria fundamental à colheita de elementos sobre a materialidade e autoria. Diz-se que uma investigação pública correria o sério risco de tornar-se ineficaz ou improdutiva.[2] Nesse viés, o recurso a fundamentos absolutamente vagos (ou imprecisos) do segredo investigativo como o “interesse da ordem pública ou da coletividade”.[3]

Após a Constituição de 1988, entretanto, o sigilo das investigações precisa assumir um novo lugar no sistema de persecução criminal, mais relacionado a um viés protetivo da esfera individual de todos os envolvidos no procedimento de apuração preliminar. Ou seja, destina-se principalmente à salvaguarda da intimidade (art. 5º, X, CRFB) das testemunhas, vítimas e suspeitos.

Com efeito, o que seria da vítima, em certos casos, com a divulgação de informações sobre a dinâmica do crime? Pensemos nos delitos contra a dignidade sexual, por exemplo. A sobrevitimização seria evidente. Talvez a publicização pudesse gerar dano igual ou maior que o próprio fato criminoso.

Quanto ao suspeito ou indiciado, o risco também se mostra elevado. O anúncio midiático de certa pessoa como investigado por eventual delito figura, na maioria das vezes, como suficiente para a sua “condenação” imediata no seio popular; provável que o estigma de “culpado”, mesmo sem qualquer processo penal, o acompanhe para sempre. Inegável, portanto, que a garantia do estado de inocência (art. 5º, LVII, CRFB) ficaria esvaziada em muitos aspectos com a hiperpublicização das investigações criminais.

Não se pode perder de vista a necessária dimensão ética no contexto da persecução criminal. Sublinhe-se que “a finalidade do inquérito policial não é nem pode ser a de causar vexames a pessoas”.[4] Logo, cabe ao delegado de polícia a difícil tarefa de zelar por uma tramitação investigativa com o máximo respeito possível à dignidade de todas as pessoas envolvidas, sem fomentar a corriqueira espetacularização delitiva[5].

Vale destacar neste ponto a classificação do sigilo no âmbito das investigações preliminares. É possível falar em duas espécies de limitação: externa e interna.

A primeira seria direcionada aos terceiros desinteressados juridicamente no feito (ex.: a imprensa). O sigilo externo deve(ria) ser o máximo possível. Já o segundo grupo restritivo, formado por aqueles diretamente envolvidos no procedimento investigatório, ou seja, legítimos interessados juridicamente na apuração, deve(ria) ser o mínimo possível, ou mesmo, inexistente.

Na prática, contudo, em muitas ocasiões essa relação lógica é invertida.[6] Não raras vezes pretende-se opor ao investigado um sigilo absoluto ao mesmo tempo em que se permite aos órgãos midiáticos livre acesso às investigações em nome de um suposto direito público à informação. É óbvio que esse tipo de jogada do investigador, na busca de criminalização midiática e de condenações populares antecipadas, constitui doping nas apurações, inclusive com possibilidade de responsabilização pessoal da autoridade presidente do feito.


[1] BIZZOTTO, Alexandre. Lições de Direito Processual Penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p. 308.

[2] Segundo Noronha, o sigilo investigativo é da essência do inquérito. “Não guardá-lo é muita vez fornecer armas e recursos ao delinqüente, para frustrar a atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria” (NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 22).

[3] FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. 02 ed. v. I. Rio de Janeiro: Record Editora, 1960, p. 112.

[4] SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. 02 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 158.

[5] MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 82-85.

[6] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 01 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 92-93.