Diário de Classe

Qual é o fim do ensino jurídico?

Autor

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

24 de agosto de 2019, 13h13

Uma das contraposições mais equivocadas, que é repetida exaustivamente, é aquela que vê um antagonismo entre fé e razão. Geralmente proferida por aqueles que jamais abriram um livro de teologia – mas dão palestras sobre a “irracionalidade da fé” –, essa linha argumentativa é repetida através de um jargão de lógica binária: ou se procede pela razão ou se procede pela fé. No fundo, pressupõe-se que aqueles que têm fé são, ipso facto, irracionais.

Essa pressuposição míope não consegue manter-se sólida em face de qualquer leitura rápida sobre a questão. Isso porque já no primeiro livro da Bíblia Sagrada, Gênesis, há a conhecida passagem de que Deus fez o homem a sua imagem e semelhança. Ora, se Deus fez o homem a sua imagem e semelhança, não poderia ter dotado o homem de razão e fé simultaneamente, sendo que ambos supostamente seriam incompatíveis. Grandes livros de teologia também atestam essa harmonia entre fé e razão, tal como a obra de Santo Tomás de Aquino. É já no texto introdutório, de Marie-Joseph Nicolas, que há item explicativo sobre essa relação harmoniosa: “em primeiro lugar, elas não se opõem. A fé é um ato da própria razão ou, pelo menos, do espírito humano”[1].

Por fim, o próprio Catecismo da Igreja Católica afirma peremptoriamente, nos parágrafos 156-159, que fé e razão não se dissociam e, mais do que isso, define que o cientista que “tenta investigar, com humildade e perseverança, os segredos das coisas, ainda que disso não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta todas as coisas, fazendo com que elas sejam o que são”.

Ou seja, fides quaerens intellectum.

Contudo, fé e razão e sua relação não excludente, porque complementar, é melhor e mais claramente demonstrada não somente através da própria interpretação das Sagradas Escrituras, do magistério dos doutores da Igreja ou de sua própria doutrina. É, para a surpresa de muitos, nas universidades que isso fica muito mais claro.

A pergunta de “por que existe algo como a universidade?” demanda o necessário e imediato estudo da história do cristianismo em nossa civilização, uma vez que a universidade é, talvez, a maior contribuição da Idade Média para a civilização ocidental[2].

É nesse sentido que, em recente palestra, intitulada como “O fim da Universidade (Cristã)” (ver aqui), o professor Gabriel Ferreira (Unisinos-RS) relembra que as primeiras universidade do ocidente – Bologna, Paris e Oxford – surgiram como grupos de pessoas que se reuniam em vista de um fim específico e comum, com a finalidade específica de ensinar e aprender. Assim, homens que já haviam passado pelo trivium e quadrivium e que visavam a se especializar nas leis civis, medicina, artes, teologia etc., congregavam-se em tais grupos, com o intuito de compartilhar e dissipar seu conhecimento.

Mostra-nos que, nesse período, a Igreja usava sua regência sobre as universidades justamente para fomentar o estudo, uma vez que a universidade medieval é filha das escolas catedralícias – escolas que funcionavam para a formação de corais e, posteriormente, para a formação do clero em espaços adjuntos às Igrejas.

Ora, embora a universidade tenha surgido com finalidades práticas, como a formação do clero e a capacitação de grupos profissionais, não é possível esquecer que, sendo o homem dotado de racionalidade, por sua própria imagem e semelhança divina, a prática de conhecer e entender o mundo que lhe circunda é um exercício que terá como fim também o conhecimento de Deus. Daí por que surge um segundo aspecto no exercício do conhecimento, que deixa de ser meramente prático e passa a ter valor em si mesmo.

Sobre isso, a lição do professor Gabriel precisa ser repetida: “esse segundo aspecto, da importância da nossa atividade intelectiva, foi condição de possibilidade de uma das grandes sendas, reiteradas pela tradição medieval, e que está intimamente ligada com o surgimento e com a manutenção da universidade como instituição, a saber, a consciência da existência de uma subdivisão da nossa vida interior. Para além das dimensões da vida biológica, da vida afetiva e da vida espiritual, deve haver um lugar – e um lugar privilegiado – para a possibilidade do cultivo da vida intelectual”.

Ou seja, em suas origens, a universidade foi uma instituição que nasceu voltada ao cultivo e propagação desse saber, que é valioso e bom em si mesmo.

Essa retomada é importante, sobretudo nos tempos atuais que vemos a vida intelectual reduzida à subserviência de algum interesse que não a si próprio. No campo jurídico brasileiro, que mais nos interessa, observamos o conhecimento servindo ao objetivo único de passar em provas como a da OAB e em concursos públicos. É claro que não é proibido que alunos dirijam seus estudos a essa etapa da vida profissional (passar em um concurso ou OAB), afinal é preciso buscar a colocação no mercado. É um fim prático do estudo do Direito. Mas isso pode ser feito objetivamente sem que tenha que se baixar tanto o nível[3] e não deveria ter se tornado o fim último do ensino jurídico[4].

Com essas observações, a conclusão do professor Gabriel é a de que o fim do conhecimento de história não é preponderantemente impedir que se repitam os erros do passado; o conhecimento da filosofia não é preponderantemente formar alunos críticos e, acrescento, o conhecimento do Direito Constitucional não é fazer com que você “seja foda” (ver aqui)[5] e passe em concursos. O fim preponderante é o cultivo da vida intelectual, que tem alto valor em si mesma.

É óbvio que o presente texto não pretende que as universidades desprezem todo o conhecimento com fins práticos ou voltados à capacitação técnica de profissionais. Contudo, o que preocupa é o desdém absoluto com qualquer contemplação intelectual no Direito que não possa ser escrita em uma petição ou que não sirva para resolver uma questão de concurso. Aliás, é justamente por isso que é apenas sintomática a necessidade de que este texto tenha que ser redigido.

Por todas essas razões que a contemplação da atividade intelectual tem um valor próprio e bom. Para isso que a universidade foi criada e isso que visa a proteger, embora aqueles que não entendam precisamente o que fazem nos bancos universitários desdenhem dessa atividade e a rotulem, fazendo gracejos, como destinada aos nefelibatas.

[1] NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica. In: AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 34 e ss.

[2] AERTSEN, Jan. Aquinas’s philosophy in its historical setting. In: KRETZMANN, Norman; STUMP, Eleonore. The Cambridge companion to Aquinas. NY: Cambridge University Press, 1999. p. 15.

[3] É conhecido o combate do professor Lenio Streck com relação ao declínio do ensino jurídico. Além das inúmeras colunas e textos publicados sobre o tema, vale mencionar capítulo específico da obra hermenêutica jurídica em crise que, já em 1999, denunciava o modo rasteiro e anti-intelectual que permeava o ensino jurídico. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, pp. 97 e ss.

[4] E quando se fala em conciliação da fé com a razão, obviamente não se tem em mente coisas como “professores” ostentando terços nas mãos para explicar quórum na Constituição (ver aqui).

[5] São casos em que só o bom humor salva. Aqui sigo na linha de prestar “uma ajudinha na construção do movimento salvacionista chamado "Unfucking the Constitution”, proposto pelo Prof. Streck. Ver em STRECK, Lenio Luiz. Extra, extra: a lista de pedidos de um jurista ao Papai Noel. Consultor Jurídico, São Paulo, 20 dez. 2018.

Autores

  • é advogado na Raatz e Anchieta Advocacia, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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