Opinião

Lei de abuso de autoridade: o poder tende a extrapolar os seus limites

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24 de agosto de 2019, 6h14

No dia 14 de agosto de 2019 a Câmara dos Deputados aprovava e enviava à sanção presidencial o Projeto de Lei 7596/17. Nesse mesmo dia, a Defensoria Pública da Bahia orientava pessoas da comunidade do Calabar, bairro periférico da cidade de Salvador.

O tema? O que você precisa saber sobre abordagem policial. É o título de uma cartilha lançada recentemente pela Instituição. O documento esclarece direitos e deveres da população, onde e quem procurar e o que fazer durante e depois de uma intervenção. É um instrumento de educação em direitos e de paz social, que protege civis e militares, pois serve também para demonstrar que a ação policial seguiu os parâmetros legais.

A discussão estava animada, as pessoas sentiam-se livres e à vontade para relatar suas vivências às autoridades ali presentes, esperando serem ouvidas, clamando por mudanças. Foi quando, infelizmente, a teoria se materializou na prática, o que não é incomum nos bairros mais humildes da Bahia e do Brasil. Uma viatura policial estacionou em rua próxima ao local da reunião e abordou dois jovens negros, levando o celular de um deles para averiguação.

Imediatamente acionadas, utilizando-se da linguagem e meios adequados, duas defensoras públicas se dirigiram às autoridades policiais presentes, conforme determina a Constituição. Porém, mesmo identificadas, representando uma Instituição importante, sentiram o coração palpitar, o sangue esfriar e as mãos tremerem ao serem desrespeitadas e fotografadas, numa nítida intenção de intimidação por parte de dois dos agentes integrantes daquela guarnição policial. Um dos policiais recusou-se a identificar-se e indagou: “onde está escrito que devo me identificar?”.

Mas o que isso tem a ver com o já mencionado Projeto de Lei 7596/17? É que este projeto tipifica crimes de abuso de autoridade cometidos por agente público, servidor ou não. No caso concreto, autoridades, abusando do seu poder, tentavam dificultar reunião de pessoas para fim legítimo (art.35 do projeto de lei), apreendendo telefones sem motivo concreto ou autorização legal (art.25).

O poder tende a extrapolar os seus limites. Essa tendência é mais forte quando mais fraca é a vítima. Não se trata de um defeito pessoal, mas de um fenômeno sociológico. Por isso, todos necessitamos de estímulos à contenção de impulsos violentos ativos ou omissivos. Mas, quem precisa mais dessa proteção são justamente os moradores das favelas ou comunidades em situação de pobreza.

Mais de 40% das pessoas presas no Brasil não foram ainda condenadas. Praticamente todas elas são pobres. As vítimas de prisões decretadas em desconformidade com as hipóteses legais (art. 9º) integram a juventude negra e não a elite. Vale lembrar pesquisa da DPE/RJ que demonstrou empiricamente que prisões por tráfico eram definidas pelo CEP. As vítimas de capturas, prisões, ou busca e apreensão ilegais (art.11) moram nos morros cariocas, não na Barra. Quem é exibido de forma vexatória como troféu em programas sensacionalistas (art.13, I e 14) não vive no Plano Piloto, vem de Taguatinga. A lista é enorme.

É legítimo discutir a proposta legislativa, mas fingir não ver o quanto interessa à população em geral é desonesto. Para cada pessoa de classe alta sujeita a um abuso de autoridade, há centenas de milhares de hipossuficientes que sofrem abusos piores. É a liberdade do pobre que é tratada com descaso. São os corpos negros que são descartáveis. Essa é a “carne mais barata do mercado”. Eles precisam de proteção.

O país vivencia uma oportunidade. Diante desse projeto, algumas autoridades, sentindo-se ameaçadas, começaram a se levantar contra a expansão do direito penal, contra condutas vagas definidas como crime, como nunca fizeram enquanto pregavam mais penas e usavam definições vagas para punir os outros. Ressalte-se que algumas das críticas ao projeto são válidas, inclusive estas. Mas, caso essas autoridades passem a adotar os cuidados que exigem para si também em relação aos mais pobres, já teremos ganhado muito.

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