Opinião

Ponto por exceção aprovado pelo Congresso na MP da liberdade econômica

Autores

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

  • Fernanda Antunes Marques Junqueira

    é doutora em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.

  • Ney Maranhão

    é Juiz Federal do Trabalho Substituto do TRT da 8ª Região (PA/AP). Graduado e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Università di Roma – La Sapienza (Itália). Professor Substituto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) (2011). Professor convidado da Universidade da Amazônia em nível de pós-graduação. Professor convidado da Escola Judicial do TRT da 8ª Região. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social “Cesarino Júnior” (IBDSCJ) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA).

24 de agosto de 2019, 6h53

O Senado aprovou em 21/08/2019 o projeto de lei de conversão da MP da Liberdade Econômica, MP 881/19 (PLV 21/2019), após a retirada de vários dos pontos que colocariam em risco sua aprovação, notadamente a ampliação do trabalho aos domingos, suprimida na versão aprovada e que agora se encaminha à sanção presidencial.

No entanto, nem todos os pontos contaminados pelo vício de inconstitucionalidade foram extirpados, entre os quais se destaca o deletério instituto do “ponto por exceção”. O texto aprovado altera o art. 74, §3º da CLT, nos seguintes termos:

CLT, art. 74, § 3º Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.” (NR)

Referido dispositivo abre permissivo para anotação da jornada de trabalho por exceção, prática extremamente desaconselhável, por vários motivos.

Registrar o ponto apenas excepcionalmente faz presumir pontualidade britânica no início e término da jornada, quando se sabe ser humana alguma variação de horário, o que, por certo, será questionado pela via judicial. De maneira que, inexistindo documento acerca da jornada de trabalho cumprida, ao invés de eventuais debates acerca de irregularidade dos registros de ponto escritos, é previsível o incremento da litigiosidade para comprovar os verdadeiros horários laborados.

Ao optar pelo registro de ponto por exceção, estará o empregador perdendo a oportunidade de documentar de forma fidedigna a jornada, documento que lhe protege de eventuais alegações abusivas, ainda mais quando levado a efeito por Relógio de Ponto Eletrônico certificado pelo INMETRO (na forma da Portaria 1.510 do Ministério do Trabalho), com memória lacrada e inviolável, que pode ser resgatada sempre que necessário para desmentir alegações de jornada fantasiosas.

O controle de ponto bem feito, ainda que de forma manuscrita, outrossim, possui presunção de validade, que só pode ser descartada com prova inconcussa em sentido contrário. No entanto, se ausente qualquer registro, todas as questões de horário dependerão de prova testemunhal em ação judicial, prevendo-se o crescimento exponencial de insegurança jurídica e judicialização.

Para os trabalhadores, tal sistemática também cria grande insegurança. É natural que, inexistindo a rotina de registrar o ponto a cada dia, acabe-se deixando de anotar pequenas diferenças de minutos acima da tolerância legal (e.g., 7min, 10min, 12min). Já quando houver diferenças maiores, como 30 ou 60min, teria o trabalhador de pedir “permissão” para registrar o trabalho extraordinário? Deixaria de pedir o registro com receio de retaliação?

Quanto ao acordo escrito individual, embora teoricamente possa haver real liberdade negocial, a assimétrica relação do contrato do trabalho coloca o empregado geralmente em uma condição subserviente e vulnerável, tendente a aceitar qualquer “solicitação” vinda da chefia.

Não possuindo garantia de manutenção de emprego caso recuse o “acordo individual escrito”, renunciando ao controle diário de jornada, é presumível que o trabalhador não terá coragem de deixar de assiná-lo (da mesma forma como não se sentirá seguro para enfrentar o empregador exigindo o registro de suas horas extras).

Abre-se a possibilidade de todo o tipo de coação velada e de fraude em relação ao registro de horário, ferindo princípios da transparência e da lealdade, retirando do trabalhador o direito de conhecer e documentar de modo fidedigno seus horários e a renda que deles auferirá.

Veja-se que, na prática, tornar excepcional o registro de horas extras tende a esvaziar o próprio direito à “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais” (art. 7º, XIII, da Constituição) e à “remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal” (art. 7º, XVI, da Constituição), já que enfraquecerá significativamente as formas de controle do tempo de trabalho. 

Trata-se de garantia individual do cidadão, cláusula pétrea que constitui o núcleo duro e imutável da Constituição, para o qual não pode haver lei tampouco emenda constitucional tendente a lhe abolir. “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: … IV – os direitos e garantias individuais” (art. 60, §4º, IV, da Constituição) dentre os quais estão incluídos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais previstos no art. 7º da Constituição, parte de seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

De maneira que, se não se admite a sua alteração por emenda constitucional, a qual exige quórum qualificado, mais grave ainda é o eclipsamento do direito à limitação de jornada por lei ordinária. Ademais, não apenas uma revogação explícita de clausula pétrea está proibida, mas sim qualquer dispositivo que a diminua, esvazie, tangencie, como é o caso do referido dispositivo constante do projeto.

Afinal, o texto constitucional é eloquente, não podendo ser deliberada emenda “tendente a abolir”, ainda que indiretamente, através do enfraquecimento dos meios de controle da jornada, sujeitando-se à invalidação em controle difuso de constitucionalidade, por qualquer órgão do Judiciário, ou em controle concentrado, levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.

Finalmente, não esqueçamos que tal alteração, além de ser inconstitucional por esvaziar uma cláusula pétrea, também o é porque representa inegável retrocesso social, conforme a jurisprudência dos Tribunais Superiores, com amparo no art. 7º, que prevê uma estrutura mínima de direitos dos trabalhadores “sem prejuízo de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Assim, sem prejuízo de outros debates existentes quanto ao teto aprovado pelo Congresso, entende-se que o registro de ponto por exceção é gravíssimo e deveria ser vetado, já que ao invés de propiciar liberdade econômica e criação de empregos, a ninguém beneficiará.

Antes, pelo contrário, prejudicará a empresários e trabalhadores, gerando maior insegurança jurídica e litigiosidade, com o potencial de judicialização exponencial para o questionamento da constitucionalidade de tal sistemática, assim como para a própria produção de prova, impondo a oitiva de testemunhas, quando a prova documental, com certa frequência, já seria suficiente.

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    é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal e juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA).

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    é juíza do Trabalho do TRT-14, doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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    é Juiz Federal do Trabalho Substituto do TRT da 8ª Região (PA/AP). Graduado e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Università di Roma – La Sapienza (Itália). Professor Substituto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) (2011). Professor convidado da Universidade da Amazônia, em nível de pós-graduação. Professor convidado da Escola Judicial do TRT da 8ª Região. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social “Cesarino Júnior” (IBDSCJ) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA).

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