Observatório Constitucional

A grande dicotomia: o STF entre as visões de Moreira Alves e Sepúlveda Pertence

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24 de agosto de 2019, 12h12

Houve um tempo no qual o Supremo Tribunal Federal era rico em produzir dados e informações que serviam para alimentar reflexões mais elevadas e profundas acerca da jurisdição constitucional. Não há dúvida que o tribunal tem essa responsabilidade de fundo: sua altivez e excelência contagiam juristas e doutrinadores, assim como sua eventual aridez ou frivolidade podem também rebaixar a qualidade do debate público.

Nesse período em que o tribunal povoa com incômoda frequência as pautas da fofoca ou da análise circunstancial, cabe relembrar um período no qual se estabeleceu no plenário uma das mais profícuas e exuberantes dicotomias de mentalidade e posicionamento intelectual que a jurisdição constitucional no Brasil já produziu. De um lado, o ministro Moreira Alves, uma das mentes mais argutas e geniais do Direito Civil no Brasil e, ao mesmo tempo, uma referência ímpar de prudência e criatividade nas matérias do direito constitucional. Do outro lado, o ministro Sepúlveda Pertence, um dos maiores juristas de seu tempo especialmente no Direito Penal e personalidade virtuosa e humanista.

Aqui está talvez a mais elogiosa e especial oposição entre exemplos do que de melhor o país já produziu em termos de visão política em matéria constitucional: enquanto o ministro Moreira Alves representou no tribunal a visão conservadora do Direito, sempre muito preocupado com as consequências das decisões e com os eventuais exageros e protagonismo da jurisdição constitucional, o ministro Sepúlveda Pertence encampava o olhar de um progressismo jurídico, inquieto com o marasmo institucional e com uma opção deliberada por não enfrentar determinadas questões politicamente delicadas.

De um lado, o exemplo da prudência, da cautela, da hesitação com as propostas inventadas de mudança e a certeza de que a revolução por meio do Direito é o pior do que se pode fazer; do outro a incorporação do sentimento de mudança, da superação dos antigos formatos, da construção de algo consistente para o futuro. Os dois ministros, que durante quase 15 anos (de 1989, ano da posse do ministro Sepúlveda Pertence, a 2003, ano de aposentadoria do ministro Moreira Alves) protagonizaram grande antagonismo a partir de suas próprias visões acerca do que deve ser e realizar a jurisdição constitucional, formam um dos mais significativos capítulos da nossa história constitucional e, até por isso, precisam ser estudados e examinados com mais interesse, uma vez que sua memória é verdadeiro legado do mais alto grau para o Direito e para o Poder Judiciário. Portanto, está-se diante de uma fonte inesgotável de conhecimento e de sementes para uma reflexão profundo sobre as relações entre a política e o direito, sobre o Estado e a Constituição e sobre direitos e deveres em um Estado constitucional.

Suas polêmicas e discussões, em realidade, não representavam divergências pontuais, mas tornavam claras suas profundas discordâncias acerca da forma como deve se comportar um tribunal de cúpula e como deve ser lida a própria Constituição. Além disso, sempre foram exemplo de como duas autoridades intelectuais de alto grau devem conviver em ambiente de extrema pressão e constantes embates.

Quando se confrontaram pelas primeiras vezes, a partir de 17 de maio de 1989, data da posse de Sepúlveda Pertence no tribunal (após indicação do presidente José Sarney), Moreira Alves já era um ministro experiente, tendo ingressado na corte em 20 de junho de 1975 com a indicação do então presidente Ernesto Geisel. Moreira Alves era um “polemista”, mas também, nas próprias palavras de Sepúlveda, um “querido amigo” e um “colega admirável em todos os sentidos”.[1]

Suas origens, formações e gerações eram certamente distintas, o que parte explica suas diferenças de visão. Moreira Alves sempre foi um estudioso do Direito Romano e pouco depois dos 30 anos já era catedrático de Direito Civil na USP. Aprendeu, desde cedo, o valor da educação, o respeito à cultura, a importância da história, das instituições seculares, das origens antigas dos institutos jurídicos. Desconfiava das inovações especialmente no Direito e era bastante descrente das possibilidades de um pensamento genuinamente publicista, em parte pela sua falta de raízes na experiência dos séculos e em parte pelo seu teor “político” e aberto. Dizia, com frequência, que, em larga medida, o Direito Constitucional era um amontoado de “achismos” que necessariamente deveriam passar pelo crivo do exame das consequências. Era um crítico, nessa linha, do chamado “Direito Civil Constitucional”, que, na prática, desnaturava a essência história dos institutos da civilística em nome de um discurso principiológico, quase de teor demagógico. Mesmo assim – e curiosamente – foi um gigante da interpretação constitucional e do Direito Público, tendo sido responsável pela precisa identificação da natureza jurídica do processo de controle abstrato de normas, a discussão em torno da eficácia das decisões proferidas, o significado da ideia de proporcionalidade ou do princípio do devido processo legal. Gilmar Mendes, de maneira bastante acurada, chegou a afirmar que não deixava de ser perturbador o fato de que “o desenvolvimento e significativas conquistas relacionados com a jurisdição constitucional no Brasil estejam indelevelmente associados a um nome que a imprensa cotidiana costuma classificar como prócer maior das ideias conservadoras no Supremo Tribunal Federal”[2].

Essa admiração pela tradição e sua genial intelectualidade faziam do ministro Moreira Alves um pessimista contumaz. Era pessimista em relação às “invencionices” dos novos pensamentos jurídicos, bem como das possibilidades inventivas do Supremo Tribunal Federal e da própria Constituição. Os mais rasos e açodados o acusavam de ser “retrógrado” ou “antiquado”, especialmente depois de julgados como do MI 107 (natureza do mandado de injunção), o HC 72.131 (prisão civil de depositário infiel em alienação fiduciária) e a formação de uma jurisprudência defensiva. Em seu discurso de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987, na condição de presidente do STF, Moreira Alves fala da “constituição como instrumento”, dos defeitos de sua aplicação no tempo, do seu uso pelo Estado liberal, social e socialista, do renascimento de “devaneios utópicos” a cada constituinte e do fenecimento dos “ideais de Constituição perfeita e perpétua”. Ao final, adverte os constituintes a resolver as múltiplas dificuldades com “prudência e sabedoria”, pedindo a Deus que os inspirasse.[3]

É difícil encontrar colocações assertivas de Moreira Alves sobre sua visão de Constituição. Não era constitucionalista e, portanto, não achava adequado ou útil formulações muito teóricas nesse tema. A construção de sua mentalidade, portanto, é mais viável por meio de sua postura diante dos casos, de suas próprias preocupações institucionais, de sua posição consequencialista e prudente e de afirmações soltas em plenário (já que nunca falava à imprensa ou em ambiente não acadêmico ou jurisdicional). Mas o desenho é claro: a Constituição é um garantidor de instituições, um instrumento para se conservar aquilo que a história e a tradição nos entregaram como legado. A estabilidade política e a segurança são os valores que devem servir como linha mestra da interpretação constitucional, deixando para o espaço democrático e político a dimensão maior da discussão acerca de novos direitos e deveres. Em matéria de Constituição – e, por consequência, de Supremo Tribunal Federal – palavras como “prudência”, “cautela”, “estabilidade”, “instituições” tinham muito mais pertinência e primazia do que termos como “justiça”, “direitos”, “princípios”, “valores”. Era certamente uma visão conservadora. Como símbolo dessa concepção de que “justiça” ou “direitos” não fazia parte do núcleo da atividade da corte, Moreira Alves dizia com frequência, especialmente quando queria explicar a famosa Súmula 400 do STF que “No Supremo, não se faz justiça quando se quer, se faz justiça quando se pode.”[4]

Do outro lado da grande dicotomia esteve Sepúlveda Pertence, “um homem de esquerda” ou com “diploma de esquerdismo”, como o próprio ministro Sepúlveda Pertence se referira ao descrever o clima com que foi recebido quando de sua nomeação para procurador-geral da República em março de 1985[5]. Sepúlveda havia participado da vida estudantil como vice-presidente da União Nacional dos Estudantes, tinha sido secretário jurídico do ministro Evandro Lins e Silva (aposentado compulsoriamente pelo AI 5), cassado do Ministério Público em 1969, afastado do cargo de professor da Universidade de Brasília pelo regime militar, com forte atuação em direitos humanos na condição de advogado e pela OAB. “O espírito libertário, rebelde, no sentido de insubmissão à injustiça, é a marca do ministro Sepúlveda Pertence”, anotou o ministro Carlos Velloso quando da sua posse na presidência do STF[6]. Sua história também explica a sua postura progressista na visão acerca dos direitos e garantista nas matérias relativas à relação entre o Estado e o cidadão e no Direito Penal. Sua compreensão acerca da Constituição sempre esteve envolta em um contexto de “estado social”, no qual as pessoas e as minorias precisavam de atuações pró-ativas da máquina judiciária para compensar desigualdades e injustiças. Participou, inclusive, da famosa Comissão Affonso Arinos, constituída pelo então presidente Sarney para elaborar o anteprojeto constitucional.

Para Sepúlveda Pertence, a Constituição, nessa dimensão, não poderia ser um mero instrumento, mas a própria mentalidade democrática e reformista – que inundou o país na década de 80 – condensada em um texto normativo. O Supremo Tribunal Federal, diante desse contexto, não poderia se acomodar em uma posição passiva, mas deveria se apresentar de maneira mais protagonista na defesa de direitos e em uma interpretação constitucional que pudesse concretizar as promessas emancipatórias plasmadas na Carta Política de 1988.

Ao contrário de Moreira Alves, “direitos fundamentais”, “justiça social”, “princípio de liberdade política”, “redução de desigualdades” eram ideias que faziam parte do main core da atividade judicante do tribunal[7]. Certamente, o custo do protagonismo político da corte logo após a Constituição de 1988 não seria um problema diante das enormes dificuldades que o tribunal teria que enfrentar para tornar a Constituição Cidadã efetivamente cumprida, especialmente pelo Estado social.

Ao longo de quase 15 anos, essas duas visões de mundo rivalizaram no plenário do STF e representaram posições opostos em inúmeros julgados e discussões. O poder de argumentação e de retórica de ambos brindou o jurisdicionado e os demais ministros com debates elevadas e ricas e fatalmente poderiam inspirar livros e trabalhos de dissecação de cada posição. A inteligência e a profundidade de cada opinião basicamente esgotavam as discussões e as reduzia a pontos dogmáticos. Dificilmente, pelo tamanho intelectual dos personagens, era possível construir um ponto mediano ou mesmo uma terceira via de voto. Era improvável que uma manifestação conseguiria se sustentar tendo, ao mesmo tempo, a oposição de Moreira Alves e de Sepúlveda Pertence. Da mesma forma, a convergência de ambos para um mesmo sentido de voto funcionava como uma força gravitacional irresistível.

É fundamental, entretanto, perceber que essa dicotomia de visões acerca da Constituição e da interpretação jurisdicional não era mera divergência intelectual, mas projetava para o futuro modelos totalmente diversos de jurisdicional constitucional. A “Corte Moreira Alves” (de 1975 a 2003) com o império da construção de uma jurisprudência ponderada, sensata e discreta acabou sendo suplantada pelos ventos do final dos anos 90 e início dos anos 2000 que exigiam um tribunal mais protagonista e ativista, que assumisse uma pretensa função realizadora no campo dos direitos. A visão do ministro Sepúlveda Pertence nessa linha mais garantista e social serviu de base de sustentação para a explosão do STF como real agente político, definidor de direitos (para além da Constituição) e quase poder moderador na relação e separação entre os poderes. O ponto de inflexão foi talvez o famoso caso Ellwanger (HC 82.424), que também marcou a aposentadoria do ministro Moreira Alves.

O tribunal, ao rejeitar sua função como garante da estabilidade política por meio da defesa e conservação das instituições, transformou-se em uma fonte inesgotável de demandas e litígios autoalimentada pela ilusão de que o excesso de judicialização era um traço de amadurecimento normativo e democrático. Logo se tornou lugar comum afirmar que a função de uma jurisdição constitucional era reconhecer e realizar direitos fundamentais, o que levou a um nível politicamente insuportável de ativismo judicial. Embora não seja culpa do ministro Sepúlveda Pertence, é possível indicar as raízes desse excesso de Supremo na sua posição progressista nessa grande dicotomia.

Talvez essas sejam fases cíclicas, momentos de um movimento sutil de “balançar de olhos” entre uma concepção conservadora do Direito e do tribunal e outra progressista. Da mesma forma, como a Constituição de 1988 parecia não caber em um formato muito cauteloso de jurisdição constitucional, hoje também parece claro os males que vieram de uma visão ativista de direitos e de Supremo Tribunal Federal. Para além das avaliações casuísticas e de circunstâncias, sou convencido de que a “grande dicotomia” continua a ser a chave para se discutir, de forma elevada e sofisticada, as mazelas e os rumos da nossa jurisdição constitucional. E para aqueles que entenderem que essa divergência é de fácil solução, lembro da lapidar frase dita pelo ministro Sepúlveda Pertence ao ministro Moreira Alves ao analisar o STF do mensalão e relembrar das antigas polêmicas por eles protagonizadas naquele plenário: “Nós dançando o minueto e eles achavam que era capoeira”.[8]

[1] História Oral do Supremo Tribunal Federal (1988-2013) – Sepúlveda Pertence, FGV, volume 3, págs. 105-106;

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: C. Bastos: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, pág. 144;

[3] ALVES, José Carlos Moreira. Assembléia Nacional Constituinte – Instalação. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília. Ano 24, número 93, jan/mar de 1987, pág. 5;

[4] Também relembrou a frase RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze – O STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pág. 171;

[5] História Oral do Supremo Tribunal Federal (1988-2013) – Sepúlveda Pertence, FGV, volume 3, págs. 93;

[6] Discurso do Ministro Carlos Velloso, em 17.05.1995, quando da posse do Ministro Sepúlveda Pertence como Presidente do STF;

[7] Tais ideias, por exemplo, estão presentes em seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, proferido em sessão solene de 17.05.1995 -http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/Plaquetas/161410/PDF/161410.pdf

[8] Frase relembrada pelo Ministro Sepúlveda Pertence em conversa especial com esse autor e Felipe Recondo. Consta também de RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze – O STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pág. 284;

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