Limite Penal

No processo penal, a instrumentalidade é do direito material

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Rosmar Rodrigues Alencar

    é juiz federal em Alagoas doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) professor de Processo Penal na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e no Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL).

23 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
Ação de arguição de descumprimento fundamental –ADPF 612 foi autuada no STF em 19/8/2019, tendo como relator o ministro Ricardo Lewandowisk. Protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro, a demanda tem por objeto decisões judiciais, proferidas notadamente no âmbito do STJ, que se lastrearam no princípio pas de nulittè sans grief, sufragado no vetusto art. 563, do CPP, cujo teor aviva que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Depois de justificar que a aplicação desse princípio ofende a “espinha dorsal” ou a “medula óssea” do processo penal – tais como garantias da competência do juiz, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório –, formula pedido para que sejam suspensos os efeitos da decisão prolatada pelo STJ nos autos do REsp nº 1.765.139/PR e demais decisões que tenham se lastreado na noção de que não há nulidade sem prejuízo, sob a égide da Constituição do Brasil de 1988. Também requereu, no bojo daquela ADPF, que seja colocado óbice a que outros julgados se deem no mesmo sentido.

O fito, ao cabo, é a declaração de não-recepção do aludido art. 563, do CPP.

A partir de leitura de Jaime Guasp, processualista espanhol, sustentamos que não é o processo o instrumento do direito material, como de forma corredia se afirma. Especialmente em matéria processual penal, o direito material é acessório, secundário. O direito penal não tem autonomia para incidir por si só, malgrado tenha existência autônoma. Constituído por enunciados constitucionais nucleares, de primeira geração, o processo penal é o principal, a essência, condição sem a qual não há viabilidade de produção de atos normativos constitucionais e criminais dotados de validade, reconhecidos pelo sistema. Essa concepção vê o processo como instituição jurídica, cujas relações de fato são disciplinadas normativamente. Devem incidir as teorias da norma jurídica e da relação jurídica, conjuntamente. A preponderância do direito material ou processual relativamente ao processo fica na dependência do ponto de vista escolhido[1].

Partimos da premissa de que a instrumentalidade não é do processo. É o direito material que é o instrumento, eis que é a estrutura do processo penal, contemplada na Constituição do Brasil, que tem a aptidão de conferir operatividade às normas de direito penal e demais disposições de direito material. Dessa primeira ilação, decorre outra, não menos importante: o prejuízo em razão da violação das formas, em matéria processual penal, é presumido normativamente. Em acréscimo, não há dever atribuído à parte, para fazer prova do alegado prejuízo.

A forma no processo penal é tão basilar quanto o é a estrutura da razão humana para poder organizar os conteúdos cognitivos. Se a capacidade estrutural humana de relacionar as informações não estiver hígida, teremos uma patologia mental. De idêntica maneira, os conteúdos veiculados no processo devem respeitar os trilhos legais e constitucionais para viabilizar o seu conhecimento válido pelo juiz. É condição à afirmação de verdades[2] –sempre processuais, subordinadas a um procedimento rigoroso –, considerando a opção de entender que o juiz, como ser humano, é falível. Nas pegadas de Susan Haack, “ao formalizar, procura-se generalizar, simplificar, e aumentar a precisão e o rigor”[3]. Esse rigor (cuidado, prudência) é indispensável na aplicação do ramo do direito que visa tutelar a liberdade humana, objetivando limitar a imprevisibilidade e o abuso do poder.

Volvendo para o enunciado do art. 563, do CPP, constatamos, inicialmente, que não há nele qualquer dever atribuído às partes para comprovar prejuízo decorrente da nulidade, porquanto disciplina que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Em outras palavras, ao exigir que haja prova de prejuízo para o acusado a fim de permitir a nulificação de ato processual, o órgão judicial finda por obrigar alguém a fazer algo sem existência de lei expressa que o autorize, em descompasso com o inciso II, do art. 5º, da Constituição do Brasil, que preconiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Logo, mais uma ilação podemos alinhar: é antijurídico exigir, em desfavor do imputado, prova de prejuízo. Seja porque tem o potencial de lhe atribuir um dever, seja porque ofende o postulado de que, na dúvida, a decisão deve favorecer a liberdade, seja ainda porque não há prejuízo maior do que uma decisão que cerceie um direito fundamental seu. Afinal, reconhecemos, na forma, a essência. Mas há algo mais que depreendemos do art. 563, do CPP. Nele, não há distinção entre nulidades mais ou menos graves, absolutas ou relativas. A imprecisão terminológica do Código é um distintivo com potencial de ampliar o arbítrio[4]. Os Tribunais, na senda da generalização, proclamaram uma espécie de “relativização das nulidades processuais”, cujo efeito foi o de permitir que o órgão judicial possa tudo ou quase tudo, sem os contornos que seriam necessários à atuação do Judiciário.

A propósito, Geraldo Prado pontuou que “o gênero da invalidade – cuja autonomia jurídica e dogmática é inegável no processo penal brasileiro – congrega espécies que se dividem quanto à pluralidade de tratamentos relativamente aos efeitos destrutivos do ato inválido e ainda quanto às consequências, dada a variedade dos níveis de imperfeição”[5]. Esses, talvez, sejam os efeitos mais nefastos, eis que alarga a esfera de possibilidades decisórias[6].

A estrutura normativa do fenômeno da nulidade enlaça duas normas jurídicas[7]. A primeira, que deve reconhecer o vício, denominada nulidade-fato. A segunda, que se segue e dependente da primeira, deve decretar a sanção, a nulidade-consequência[8]. O espaço de liberdade para reconhecer ou deixar de reconhecer a nulidade lato sensu deve ser demarcado por essa relação. O desvio da providência consequente, para evitar a declaração da nulidade e supressão dos efeitos do ato sobre a qual recai aquele rótulo, não deve ser admitido, mormente, quando a hipótese se tratar de nulidades classificadas como absolutas – cujo prejuízo é presumido pelo teor literal da Constituição ou da legislação –, em especial quando concernentes aos direitos que constituem o núcleo duro do processo criminal brasileiro.

Afrânio Silva Jardim, examinando o § 1º, do art. 65, da Lei nº 9.099/1995, cujo teor é similar ao do questionado art. 563, do CPP, tocou no ponto nevrálgico. De compasso com aquele enunciado, “não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo”. No entanto, consoante pontificou o jurista, deve-se ler “nulidades relativas, porque, se a nulidade for absoluta, evidentemente, independente de prejuízo, tem de ser reconhecida de ofício pelo juiz”. Em outros termos, “não se precisa nem presumir o prejuízo, porque, quando você o presume, está vendo prejuízo ao interesse das partes. Aqui é o prejuízo para a função jurisdicional do Estado, para o devido processo legal”[9].

A conjugação dessa percepção –que denota que há maximização do arbítrio judicial na praxe forense brasileira, sob perspectiva autoritária, não democrática– com àquela que impõe à defesa, indevidamente, uma espécie de ônus de comprovar o prejuízo, permite trilhar o mesmo percurso descrito por Aury Lopes Jr. Vale dizer, “não é a parte que alega a nulidade que deverá ‘demonstrar’ que o ato atípico lhe causou prejuízo, senão que o juiz, para manter a eficácia do ato, deverá expor as razões pelas quais a atipicidade não impediu que o ato atingisse a sua finalidade ou tenha sido sanado”[10].

Sob a ótica da teoria da nulidade no processo penal, compreendemos que, se o vício processual não afetar negativamente direito fundamental contemplado constitucionalmente, poderá haver maior amplitude pragmático-possibilista, tendente à conservação do ato processual penal. Eis a sede para a parca aplicação da regra do “prejuízo”, do art. 563, do Código de Processo Penal, porquanto, tratando-se de vício categorizado como nulidade absoluta, a imposição do princípio pas de nullitè sans grief é inconstitucional. Nesse ponto, é presumido o prejuízo, ressalvada a verificação de maior eficácia concreta do direito fundamental do imputado.

De todo modo, não é desejável a diminuição da função de previsibilidade do sistema, mediante a aplicação do princípio pas de nullitè sans grief. Como acentuado na petição inicial da ADPF 612, a sua incidência no processo penal, na mesma medida que ocorre no direito processual civil, pode causar tratamento não-isonômico às partes. De outro lado, reputamos, nessa esteira, que aquele cânone, “além de não existir no ordenamento pátrio como princípio geral do direito, e de fragilizar a imparcialidade, o devido processo legal e o princípio republicano, também serve para desvirtuar a forma do Processo Penal como garantia do acusado, transformando o réu em mero objeto de pretensões processuais, despido de sua dignidade (art. 1º, inciso III, da CF/88)”[11].

Afinal, como justificar a incidência daquele dispositivo legal em face do que estabelece a Constituição do Brasil acerca da “garantia ao contraditório e à ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes? Como o acusado demonstrará ‘prejuízo concreto’ relativamente ao vício de um ato processual?”. Uma “simples condenação” já representaria um dos piores prejuízos que o acusado poderia ter “diante de um processo que não tivesse respeitado as diretrizes legais. Daí que o art. 563, do Código, só deve ser aplicado se receber leitura compatível com a Constituição de 1988, para exigir que o prejuízo a ser demonstrado fique a cargo do Judiciário, mediante decisão fundamentada que indique que a prática do ato, violador da forma, não afetou o direito individual por ela tutelado”[12].

Por fim, podemos encerrar essas breves linhas com uma conclusão forte. A incidência do art. 563, do CPP, de forma genérica, evidencia que há baixo controle dos órgãos judiciais superiores sobre os atos processuais eivados de nulidades. Trata-se de um atestado, de uma evidência, de uma verificação de que o sistema de garantias processuais penais não é adequadamente tutelado pelos tribunais mediante a aplicação da teoria da nulidade no processo penal. Contrariamente, depreende-se que há cotidiana convivência com processos criminais constituídos a partir de atos produzidos em descompasso com os alicerces mais importantes do direito processual penal, estampados na Constituição. São feridas as formas cuja natureza jurídica é essência, diante da instrumentalidade do direito material, relativamente à disciplina processual penal e constitucional.

 


[1] GUASP, Jaime. Derecho procesal civil: tomo primeiro [introduccion y parte general]. Madrid: IEP, 1968. p.34.
 
[2] Nesse contexto, aduzimos que “o regime de nulidades do CPP (arts. 563-573), além de ultrapassado, é confuso. Adota a compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, art. 566), mantém dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (art. 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência de prejuízo – pas de nullité sans grief (CPP, art. 563)” (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 5. ed. Florianópolis: EMais, 2019. p.582-583).
 
[3] HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução: Cezar Augusto Mortari; Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP, 2002. p.63.
 
[4] A legislação deveria, nessa toada, cumprir a função de melhor estabelecer parâmetros, apesar de existir sempre o espaço para a liberdade jurídica do juiz, como averba Carlos Cossio, ao explicar que “la ley señala un marco de posibilidades todas las cuales se subsumen con igual corrección en la ley; pero sólo una de ellas, aquella que escoge el arbitrio judicial en tanto que poder de decisión, es realidade”[1] (COSSIO, Carlos. La teoria egologica del derecho: y el concepto juridico de liberdad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964. p.531).
 
[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p.90.
 
[6] Nesse sentido: NICOLITT, André. Manual de processo penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p.958; TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: Juspodivm, 2019. p.1542.
 
[7] Em estudo específico, concluímos, de um lado, que “a teoria da nulidade no processo penal descreve um padrão sintático para o preenchimento semântico de sua estrutura, tomando por supedâneo o entrelaçamento hierárquico do ordenamento e do sistema, que deve ter como norte interpretativo a Constituição” e, de outro, que “esse formalismo no processo penal, ao invés de sonegar direitos ou inviabilizar o funcionamento do sistema, proporciona sua efetividade. Ao cabo, procura fechar espaços de discricionariedade, de imprevisibilidade e de contingência em matéria de nulidade no processo penal” (ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.621).
 
[8] ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.274; 458.
 
[9] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho do. Direito processual penal: estudos, pareceres e crônicas. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p.514.
 
[10] LOPES JR. Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.944.
 
[11] PETIÇÃO INICIAL. Ação de descumprimento de preceito fundamental: ADPF nº 612, de 18 de agosto de 2019.
[12] ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.274; 458.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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    é juiz federal em Alagoas, doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor de Processo Penal na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e no Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL).

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