Opinião

A urgência do debate jurídico sobre a "Tecnocracia" no Brasil

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22 de agosto de 2019, 11h24

Em meu artigo anterior (1) , procurei demonstrar como os americanos, após um século XX de ilimitada expansão do que eles chamam de administrative state (“Estado administrativo”, que seria melhor traduzido no Brasil como “Estado burocrático”), começaram a se questionar sobre a autoridade sem medidas que foi concedida aos órgãos reguladores para a interpretação de suas Leis constitutivas – um poder que saltou do simples tratamento de detalhes técnicos restritos a cada âmbito dos mercados regulados (que eles denominam subordinate questions, isto é, os pormenores que uma agência teria competência para definir dentro do quadro maior delimitado pelo Legislador) para uma verdadeira usurpação das competências legislativas pelos órgãos burocráticos, que passaram a estabelecer interpretações essencialmente legais, com o pretexto de estarem regulando aspectos técnicos envolvidos em sua competência.

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Nesse cenário, o que ocorreu nos Estados Unidos foi uma expansão do poder dos órgãos reguladores, por mandato próprio, das subordinate questions para as major questions (as “questões maiores”, que são a própria delimitação do assunto, suas fronteiras, conferidas pelo Legislativo).

Os órgãos burocráticos, sob pretexto de estarem interpretando tecnicamente suas Leis constitutivas, passaram a definir sua própria competência – e o Judiciário chancelou isso, especialmente no precedente Chevron v. NRDC, de 1984.

Contudo, a insegurança jurídica provocada aos particulares foi tão grande – afinal, sem as dificuldades próprias de um processo legislativo, uma agência pode, muito mais facilmente, dizer
hoje o contrário do que disse ontem – que o próprio Judiciário iniciou uma revisão do assunto.

No artigo anterior, expus como o Chief Justice John Roberts, a partir do seu voto divergente (dissent) no precedente City of Arlington v. FCC, de 2013, iniciou a retomada do papel do Judiciário em face da burocracia, posição que vem sendo reafirmada em sucessivos casos e que,
atualmente, já possui maioria na Suprema Corte.

A opinião de Roberts, compartilhada pelos justices Clarence Thomas, Samuel Alito, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e (em menor medida) por Elena Kagan, é simplesmente a básica ideia constitucional dos Fundadores da América: divisão e limitação de poderes.

A interpretação jurídica das Leis é competência constitucional dos juízes, não dos burocratas. Da mesma forma, a produção das Leis (a delimitação das fronteiras de ação de uma agência regulatória sobre a vida real) é matéria legislativa, uma major question, sujeita a amplo debate e conflito de posições no Congresso.

Parece evidente que a delimitação da regulação estatal deva ser matéria do Legislativo, afinal, estamos falando aqui de interferência sobre a vida real das pessoas, não de números abstratos numa folha de papel. Em muitos casos, trata-se de interferência destrutiva, um poder verdadeiramente ostensivo, que levou um doutrinador americano a afirmar: “The power to regulate – in addition to the power to tax – is the power to destroy” (2).

Não há nada de novo no que foi dito acima: é a exigência de representação popular para que o Estado tenha legitimidade para agir. Os Estados Unidos da América começaram, enfim, a
partir da queixa dos colonos de que os impostos que pagavam careciam de legitimidade porque eles não possuíam lugar garantido no Parlamento: no taxation without representation.

A frase poderia, sem perder sua essência, ser atualizada para: no regulation without representation.

A reflexão atual, entre os americanos, após quase um século de recrudescimento do administrative state, é de que não valeu a pena. A Administração Pública não pode oprimir a vida das pessoas, sacando da cartola interpretações legais inovadoras e surpreendentes, indo além do que lhe foi delimitado pela Lei (sob o pretexto amplíssimo da “técnica”), mudando hoje o que disse ontem e amanhã o que disse hoje.

E o Brasil?

Minha proposta é que aprendamos com os erros dos americanos e não realizemos aqui uma repetição deles.

Ou, talvez, a situação seja a inversa: devemos corrigir no Brasil, observando o exemplo americano, a tendência estatista e tecnocrática que parece ser um dado fundamental de nossa nação.

É a questão levantada pelo embaixador José Osvaldo de Meira Penna, no seu famoso O Dinossauro – Ensaio sobre a Burocracia Brasileira: “Como explicar esse caráter opressivo da burocracia num país que se orgulha de ser tolerante e ambiciona desenvolver-se segundo o modelo democrático?”(3)

Que o Brasil nasce com um germe estatista, é inegável, pois, como diz João Camilo de Oliveira Torres, no seu Interpretação da Realidade Brasileira (relançado recentemente em ótimo trabalho da Editora da Câmara dos Deputados):

“O Brasil oficialmente entrou a existir quando Dom João III, o Povoador, nomeou Tomé de Sousa governador geral do Brasil. […] Era o Estado do Brasil, que nascia com todos os órgãos que um governo que se preza deve ter. Notava-se, apenas, uma ligeira ausência, uma sombra no conjunto: não havia povo. […] Este famoso ‘barão assinalado’ conheceu um fato que, tirante fábulas antigas, raramente deve ter acontecido: um governante que desembarca no espaço vazio, chegando primeiro que seus governados, e constrói no mato a sua capital”(4).

Quanto à tecnocracia, o objetivo fundamental de estabelecimento de um “governo de técnicos”, iluminado pela pura racionalidade científica e infenso à politicagem do populacho, é uma pretensão positivista que alguns dos nossos melhores intérpretes apontam como imbricada na República surgida de 1889.

Segundo Miguel Reale, essa ideologia de “um governo de filósofos positivistas, sem participação do eleitorado, a seu ver destituído da capacidade de escolha dos verdadeiros dirigentes sociais” foi introduzida no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos, para quem “o governo deveria ser confiado a dirigentes selecionados, não pelo voto, mas por seu saber e experiência, com predomínio do Poder Executivo”. Com base na Constituição castilhista do Rio Grande do Sul, de 1891, Borges de Medeiros se manteve por quarenta anos no poder e, de seu secretariado, originou-se aquele que, futuramente, elevaria o castilhismo ao plano nacional: Getúlio Vargas, instaurador do Estado Novo, em 1937, “fechando o Congresso Nacional, não por influência do fascismo, consoante se costuma dizer, mas sim em virtude da posição de inferioridade do Legislativo no sistema político comteano, como bem lembrou João de Scantimburgo em recente pronunciamento na Academia Paulista de Letras” (5).

É a mesma avaliação de Antonio Paim, para quem “Júlio de Castilhos concebeu e levou à prática um modelo tutelar para substituir o sistema representativo”.

“A grande força da doutrina castilhista”, continua Paim, “consistia no fato de ter sido proclamada em nome da ciência. O saber positivo é que nos assegura quanto à forma a ser assumida pela organização política. Se o mero mortal não chega a semelhante entendimento, não cabe nenhum projeto pedagógico, que o próprio Augusto Comte chegou a conceber em certa fase de sua meditação, mas imposição de um governo forte, centralizado” (6).

Não por coincidência, enquanto isso ocorria no Brasil, era a mesma influência comteana que originava, nos Estados Unidos, a ideologia do Progressivism, que embasou a expansão da burocracia estatal em nome da realização da justiça social nos governos dos Presidentes democratas Woodrow Wilson (1913-1921), Franklin Roosevelt (1933-1945) e Lyndon Johnson (1963-1969), como aponta o cientista político americano John Marini:

“Após a Guerra Civil, particularmente nas universidades americanas, a vitória do historicismo e do positivismo minou os fundamentos teoréticos e intelectuais do direito natural. Consequentemente, muitos dos novos cientistas sociais, mesmo aqueles admirados por Lincoln e que lutaram pela União, tornaram-se Progressistas e abraçaram o entendimento historicista do homem, feito cientificamente respeitável pelo Darwinismo. Subsequentemente, eles se tornaram inimigos de um governo constitucional” (7).

“Inimigos” porque um governo constitucional pressupõe a limitação de poderes e a representação popular, ao passo que a idéia positivista, adotada pelos progressistas americanos, era de que “o povo e os seus representantes deveriam abrir mão de sua razão para possibilitar aos cientistas sociais que levassem adiante a sua vontade. Em suma, eles deveriam desistir de seu direito de governarem a si mesmos”8 – uma ideologia, portanto, gêmea do castilhismo brasileiro.

Está lançado, assim, o problema: a defesa da tese de que a burocracia estatal deva ter poderes de interpretação e ação cada vez maiores, em nome da regulação técnica dos assuntos, parece ter origem no positivismo comteano, tanto nos EUA, quanto no Brasil.

Os americanos, contudo, aparentam estar mais avançados no debate para a solução do problema do administrative state, através da restauração dos limites de cada Poder, o que vem sendo discutido tanto pelos escritores daquele país, quanto pela Suprema Corte. Isso só é possível porque os Estados Unidos possuem uma tradição constitucional ininterrupta.

No Brasil, temos algumas dificuldades adicionais: em primeiro lugar, o estatismo já apontado, no germe da fundação brasileira, que vem sendo vencido paulatinamente pelo amadurecimento do povo; em segundo lugar, não parece que temos uma tradição constitucional sólida para a qual nos reportarmos (ao contrário, desde a substituição da longeva Constituição do Império, foram seis Constituições na República, algumas precedidas de golpes); em terceiro lugar, esse debate urgente sobre os limites necessários à tecnocracia não vem sendo travado no ambiente jurídico brasileiro – mais preocupado, ao invés, com o fortalecimento da burocracia, como demonstra a publicação de uma multiplicidade de obras quase que exclusivamente dedicadas a concursos públicos.

Apenas quanto a esse último âmbito este artigo deseja contribuir – e chamar a atenção.

(1) Controle judicial da burocracia regulatória: o precedente City of Arlington, Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2019, 6h24, disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-10/taiguara-fernandes-sousa-controlejudicial-burocracia-regulatoria
(2) “O poder de regular, somado ao poder de tributar, é o poder de destruir” (tradução livre). WALLISON, Peter J. Judicial Fortitude: the last chance to rein in the administrative state. New York: Encounter Books, 2018; p. 9
(3) MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Psicologia do Subdesenvolvimento. Campinas/SP: Vide Editorial, 2017; p. 56.
(4) TORRES, João Camilo de Oliveira. Interpretação da Realidade Brasileira: introdução à história das idéias políticas no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017; p. 52.
(5) REALE, Miguel. O Positivismo na Cultura Brasileira, em: Filosofia e Teoria Política: Ensaios. São Paulo: Saraiva, 2003; pp. 44-45.
(6) PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: LVM, 2018; p. 191.
(7) MARINI, John A.; MASUGI, Ken (ed.). Unmasking the administrative state: the crisis of American politics in the twenty-first century. New York: Encounter Books, 2019; p. 321 (tradução livre).
(8) MARINI, op. cit, p. 22 (tradução livre). 

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