Leniências em Questão

Lei 12.846, ano 5, e novas relações entre Estado e empresas

Autor

  • Igor Tamasauskas

    é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ) mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Instituto dos Advogados de São Paulo. Foi corregedor administrativo e procurador-geral ambos do município de São Carlos e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política” publicado em 2019 e “Acordo de Leniência Anticorrupção” publicado em 2021.

21 de agosto de 2019, 16h03

A Lei Anticorrupção introduziu uma série de medidas no microssistema jurídico de enfrentamento a desvios cometidos em desfavor do erário. Responsabilidade objetiva, mecanismos de integridade, possibilidade de atuação administrativa mais intensa e com penas relevantes são todos elementos que nos acostumamos, os operadores do direito que lidamos com essa legislação no dia-a-dia, nesses mais de cinco anos de vigência da lei.

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Igor Tamasauskas

Os acordos de leniência, já usuais em outras áreas, como no antitustre, passaram a fazer parte da realidade nacional desde que a prática se impôs como resultado da atuação do Ministério Público Federal, no âmbito da operação "lava jato", em 2014, com o primeiro acordo com SOG Óleo e Gás e outras empresas. Desde então, contam-se mais de duas dezenas de acordos celebrados e homologados pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. No meio do caminho, estabeleceram-se regras complementares para organizar o processo de negociação, sob balizas cada vez mais objetivas.

Ainda na esfera federal, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União superaram lacunas na legislação e também lograram estabelecer um programa consistente para a celebração desse tipo de acordo. Editaram-se normas infralegais, recentemente atualizadas, como “porta de entrada” para o sistema. Garantiu-se o sigilo das tratativas, a inutilização de elementos de prova apresentados durante as tratativas, em caso de não celebração de acordo, o impedimento de funcionários públicos que tomaram contato com a negociação de participar em eventual processo sancionatório —também em caso de não celebração— e, mais importante, definiram-se parâmetros objetivos para o cálculo da multa e do ressarcimento ao erário. O regramento permite ao interessado inferir o intervalo da possível multa a ser estabelecida no acordo de leniência, conferindo alguma previsibilidade, em grau ainda distante do desejável, ante o fato de ainda estarmos em curva de aprendizado.

No plano estadual, em São Paulo, os influxos dessa legislação identicamente vêm rendendo frutos para soluções negociadas em casos de corrupção. A prática paulista indica uma solução jurídica um pouco distinta do plano federal, todavia engenhosa e igualmente em processo de aperfeiçoamento. O Ministério Público de São Paulo adotou a celebração de “termo de autocomposição”, calçado no art. 36, par.4º, da Lei n. 13.140/15, como meio de suporte a soluções consensuais em matéria anticorrupção. Celebrado o ajuste, leva-se à homologação judicial. Uma das críticas que tal modelo vem recebendo reside na ausência de uma supervisão pelo Conselho Superior, ocasionando falta de coesão interna do próprio MPSP, quanto ao instrumento. Aqui, parece que uma norma interna que viesse a estabelecer o fluxo dessa supervisão (mediante homologação) poderia mitigar essa situação.

A resistência a esse tipo de solução, regra geral, reside na vedação do art. 17, par. 1º da Lei de Improbidade Administrativa que, como muitos, entendo derrogada pelas normas posteriores da Lei Anticorrupção e da Lei de Mediação na Administração Pública. Embora a jurisprudência venha sendo construída nesse último lustro, uma posição do Supremo Tribunal Federal ainda é aguardada e poderá surgir com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.175.650/PR, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. Embora trate objetivamente da possibilidade de cláusula protetiva contra ações de improbidade em acordo de colaboração premiada de natureza criminal, um possível “output” desse julgamento é resolver definitivamente se o dispositivo da Lei de Improbidade restou derrogado.

Feito esse panorama bem geral, gostaria de apresentar uma discussão que pode vir a ganhar corpo nessa temática: a tentativa de utilização de um acordo de leniência para buscar resultado que extrapole os limites fáticos e jurídicos daquilo que vier a ser confessado pela empresa candidata à leniente.

É certo que a legislação desejou que se estabelecesse um espaço de diálogo entre autoridades e investigados para que, num processo republicano e objetivo, sejam identificados os atos ilícitos e negociada a penalidade aplicável. Um negociador experiente, seja ele autoridade ou conselheiro do candidato a leniente, sabe que somente se dispõe a entrar num processo de negociação de acordo de leniência quem se vê às voltas de uma investigação que pode lhe trazer inúmeros incômodos, além da pena ao final do processo sancionatório administrativo ou judicial. A própria Lei Anticorrupção trabalha com elementos sancionatórios vexatórios, como a pena de publicação extraordinária da decisão condenatória, além de, pelo estímulo à prática de integridade, estabelecer uma rede privada de fiscalização de práticas indevidas.

Por conta dessa rede privada de fiscalização, uma empresa investigada por ato de corrupção terá de prestar esclarecimentos não apenas às autoridades encarregadas da investigação, mas a fornecedores, clientes, instituições financeiras. A depender do ramo em que atue, isso pode inviabilizar seu funcionamento.

Portanto, o particular que adota a ideia de buscar uma solução consensual certamente terá levado em conta todos esses fatores extraprocessuais para a formação de seu convencimento.

Do outro lado do balcão, as autoridades certamente também levarão tal contexto em consideração na formação de sua estratégia negocial. E, como titulares do poder-dever de defesa de nossa ordem jurídica e do patrimônio público, é fundamental que o façam. Todos esperamos que essas autoridades, como nossos representantes, ajam para proteger os nossos interesses da forma mais competente possível.

Tal postura permitirá que as autoridades identifiquem e eliminem eventuais opacidades por parte do lado privado, como, por exemplo, atos ilícitos omitidos pelo particular durante as tratativas. Ou, de outro lado, ancorem a negociação de penas pecuniárias para buscar o melhor benefício possível dentro de um diálogo consensual. Isso é sadio e pertence ao jogo natural esperado. Uma omissão intencional é grave e merece reprimenda durante a negociação, inclusive o próprio encerramento do processo consensual. De outro lado, dentro de um intervalo objetivamente previsto na lei, é esperado que as autoridades trabalhem pelo maior valor possível de reparação.

O problema surge quando essa natural desconfiança, que deve diminuir ao longo da negociação sadia, passa a ser usada de forma teratológica, não para buscar o consenso ao final, mas para forçar o privado a adotar uma posição que não seria possível de atingir mediante um processo regular.

Explico: sabedora das vicissitudes por que passa a empresa que se pretende leniente —vicissitudes causadas, no mais das vezes, pela própria conduta ilícita praticada em favor da empresa, diga-se— uma autoridade pode buscar ancorar a multa pecuniária em patamares muito além do intervalo permitido pela legislação.

Buscando um pretenso “excelente” acordo para o erário, essa hipotética autoridade está, em verdade, desvirtuando o instrumento para atingir um objetivo que não conseguiria pela via do processo sancionatório, mesmo que este corresse à revelia da empresa, mesmo que sem qualquer defesa.

Ou, em outra hipótese, para forçar a aplicação da leniência anticorrupção para caso em que não esteja caracterizada a incidência da norma. Por exemplo, em caso de violação a norma penal que não possua correlação com malversação de bens ou poderes do Estado; vale dizer, uma conduta de pessoas físicas tipificada pela norma penal, que, no entanto, não desafiaria a aplicação simultânea da Lei Anticorrupção para a pessoa jurídica.

Nesses dois casos hipotéticos, essa autoridade estaria usando a ameaça da continuidade de investigações, como forma de obrigar a empresa ou a aceitar uma pena muito acima do quanto previsto pela legislação, ou a assumir um tipo de compromisso que a ela não se imporia numa negociação saudável.

Esse tipo de situação é novo, aqui, na temática anticorrupção, como, de resto o é tudo aquilo que se relacione com a legislação em análise, dado que estamos aprendendo a manusear seus institutos e mecanismos.

Todavia, não se trata de temática desconhecida em outras searas, p.e., no tema do licenciamento ambiental, em que não é raro se verem obrigações extravagantes, como condicionantes a empreendimentos relacionadas a construções de obras públicas dissociadas da tutela ambiental.

Há, inclusive, na literatura estrangeira uma terminologia para esse tipo de prática: trata-se do “arm-twisting”, a “torção de braço”, praticada pelas autoridades, para forçar a um acordo que não seria obtido não fora as ameaças impingidas ao particular.

Tão perigoso quanto a omissão e o falseamento da verdade, por parte do particular, o “arm-twisting” configura um desvio de finalidade e abuso de poder, por parte do Poder Público, que igualmente maculam o instituto da leniência.

Em instigante texto que analisa o fenômeno nos Estados Unidos, LARS NOAH[1] aponta a necessidade de incremento da transparência e do “accountability” sobre a atuação de autoridades como forma de minimizar os seus efeitos. Lá, como as agências são delegatárias do Congresso, ele sugere que haja maior rigor na fiscalização da atuação das autoridades, bem como a diminuição do espaço para atuação discricionária.

Fazendo uma adaptação dessas recomendações para a realidade brasileira, nota-se a importância de normas como aquelas editadas para organizar a negociação, para estabelecer os limites de uma penalidade, para definir critérios de ressarcimento ao erário.

As instituições parecem atentas a esse fenômeno, visando mitigar os efeitos que uma autoridade, por mais bem-intencionada que esteja, possa ocasionar ao programa de leniência ao impor condição não estabelecida pela lei ou para além de seus limites. Todavia, repita-se, o aprendizado ainda está se construindo e há longo percurso pela frente.

 


[1] NOAH, Lars. Administrative arm-twisting in the shadow of Congressional delegations of authority. Wisconsin Law Review 1977: 873-941.

Autores

  • é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ), mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo). Foi corregedor administrativo e procurador-geral, ambos do município de São Carlos, e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política”, publicado em 2019, e “Acordo de Leniência Anticorrupção”, publicado em 2021.

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