Opinião

Supremo não legislou nem fez analogia ao considerar homofobia como racismo

Autor

  • Paulo Iotti

    é advogado professor universitário doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).

19 de agosto de 2019, 6h11

1. A decisão do STF e o conceito de racismo
Vejamos o conceito constitucional de racismo, afirmado pelo STF na tese fruto do julgamento que reconheceu a homotransfobia como tal (ADO 26 e MI 4.733):

“3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito”[1].

Tal conceito não foi inventado pelo STF. Decorre da concretização da literatura negra antirracismo, trabalhada no memorial[2] e captada com maestria pelo ministro Celso de Mello[3], redator da tese referendada pelo Plenário. Remeto a artigo em que explico tal literatura[4] e mostro que o conceito do STF é com ela coerente. E, se racismo é conceito político-social, também é o de raça, enquanto dispositivo político-social de poder, que visa garantir privilégios a um grupo dominante em detrimento de um desumanizado e inferiorizado grupo dominado, afirmado como “degenerado” e, assim, discriminado de maneira estrutural, sistemática, institucional e histórica, para o fim de estigmatizar, desqualificar moralmente, expulsar do convívio familiar ou até internar em hospitais psiquiátricos as minorias sexuais e de gênero (população LGBTI+), em prol de opressoras ideologias normalizadoras, mediante alterocídio discriminatório. Logo, o heterossexismo e do cissexismo são ideologias racistas ao pregarem a heteronormatividade e a cisnormatividade, ou seja, a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsórias, punindo simbólica, moral e/ou fisicamente quem “ousa” viver a vida de outra forma.

Como no célebre HC 82.424/RS, que afirmou que o antissemitismo é conduta racista ao aduzir que racismo é a inferiorização de um grupo social relativamente a outro, o STF partiu da constatação de que a CF (artigo 3º, IV) e a Lei Antirracismo falam em “raça” e “cor” em palavras diferentes (conforme máxima hermenêutica, a lei não possui palavras inúteis, donde “raça” não pode significar apenas “cor”) e do fato de o Projeto Genoma ter enterrado a tese de que a humanidade seria formada por “raças biologicamente distintas entre si”. Então, para o racismo não virar crime impossível, pela unicidade biológica da humanidade, afirmou-se ser conceito político-social — histórico, antropológico e sociológico (ratio decidendi da decisão).

Logo, a homotransfobia foi considerada espécie de racismo e enquadrada nos crimes raciais (“por raça”, por exemplo, artigo 20 da Lei 7.716/89): não por “analogia”, pois “criminalizar por analogia” demandaria dizer que a homotransfobia seria “tão grave quanto” o racismo, a merecer mesma punição, mas não foi isso que o STF reconheceu. Fez-se interpretação literal do termo legal raça e do termo constitucional racismo, ainda que evolutiva, caso se entenda que a compreensão biológica teria sido a “original”. Interpretação integrante do limite do teor literal (Roxin) da moldura normativa (Kelsen), e não por “ato arbitrário de vontade”, mas por conceito afirmado em precedente do STF e referendado pela literatura negra antirracismo, donde inexistente “intolerável vagueza”, violadora do princípio da taxatividade — leis penais desde sempre criminalizam por conceitos valorativos, carentes de concretização interpretativa, e isso sempre foi aceito, quando não intoleravelmente vagos (conforme terminologia alemã e Roxin; no Brasil, Cezar R. Bittencourt).

Entendimento contrário ressuscita o anacrônico e irreal “silogismo perfeito”, de Beccaria, negando ao Judiciário qualquer labor interpretativo, algo incompatível com o mundo real. A técnica legislativa cria crimes desde sempre por conceitos valorativos (conforme ofender a dignidade ou o decoro, da injúria, e o crime de rixa), bem como os usa como qualificadoras/agravantes ou elementos normativos do tipo (por exemplo, “motivo fútil ou torpe”). A definição de tais conceitos não está na lei penal, ela é feita por doutrina e jurisprudência. Quem discorda dessa técnica legislativa precisa enfrentar essa concepção hegemônica na jurisprudência constitucional mundial sobre a validade do uso de conceitos valorativos criminalizadores à luz da taxatividade penal.

2. Descabimento das críticas, que não enfrentam a fundamentação do STF
Em suma, pela tese acolhida pelo STF, só será racismo a inferiorização desumanizante de um grupo social relativamente a outro, em sistema de relações de poder em que grupo dominante oprime grupo dominado, em opressão estrutural, sistemática, institucional e histórica, geradora da qualificação artificial e ideológica de um grupo como “dominante”, atribuindo-lhe qualidades de “natural, neutro, bondoso e modelo de pessoa ideal”, bem como de outro grupo como “dominado”, atribuindo-lhe qualidades de “antinatural, ideológico, perigoso e pessoa degenerada” (pessoas LGBTI também já o foram, pela “teoria da degeneração sexual”). Daí ser equivocado falar em “racismo reverso”.

Nenhuma das críticas se digna a enfrentar esse conceito de racismo. Aparentemente por puro senso comum, quando muito dizem que os termos “raça” e “racismo” não abarcariam a população LGBTI+ e a homotransfobia[5], sem se dignarem a dizer o que entendem por uma coisa ou outra. Pregam uma diferenciação, mas não explicam sua pertinência lógico-racional, como exige o princípio da isonomia, ao impor o ônus de argumentação a quem defende o tratamento diferenciado (conforme Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais).

Configura arbitrariedade (e desrespeito) afirmar que o STF teria feito “ilusionismo”[6] na interpretação de tipo penal. Descabido falar que se teria “interpretado extensivamente” tipo penal[7] ou “legislado” em tal decisão[8]. Afinal, o STF partiu do conceito de racismo para afirmar que o crime positivado de discriminação por raça abarca a homotransfobia. Nenhum destes fundamentos da decisão foi enfrentado por tais críticas.

Simplista e incorreta a tese de não haver “mandado de criminalização” que incida pelo “fato de que a [CF] não elenca a LGBTfobia como bem jurídico a ser protegido penalmente”[9], porque ela se enquadra nos mandados de criminalização relativos ao racismo (artigo 5º, XLII) e à repressão a todas as discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI — que está na parte penal do artigo 5º e demanda proteção penal quando incide a proibição de proteção insuficiente (princípio da proporcionalidade), sendo que o STF citou precedente pretérito nesse sentido (HC 104.410/RS).

Descabido falar que haveria violação da teoria do Direito Penal Mínimo[10], pois ela traz um critério qualitativo, sobre o que pode ser crime, não quantitativo, proibitivo de novos crimes. Ela exige que a criminalização vise evitar a ofensa a bem jurídico indispensável à vida em sociedade, ante a ineficácia dos demais ramos do Direito para protegê-lo. O bem jurídico-penal protegido pela criminalização da homotransfobia é a tolerância à livre orientação sexual e identidade de gênero — nem se fala em respeito, a saber, tratar como igual, ainda que discorde, pois tolerar implica considerar a pessoa “inferior”, mas pelo menos sem agredir, ofender, discriminar e/ou matar (proteção a bem jurídico penal). Outrossim, os poucos estados que possuem leis antidiscriminatórias que punem administrativamente a homotransfobia (como SP e sua Lei 10.948/01) não têm conseguido reprimir de maneira eficaz tal opressão (ultima ratio).

Com isso, não se quer cair no erro das direitas, de achar que a criminalização seria a “panaceia de todos os males”, mas ser coerente com o pressuposto da teoria minimalista, que legitima a criminalização quando atendidos seus critérios. Mas muitos(as) se dizem “minimalistas” apenas quando a teoria justifica a descriminalização ou não criminalização, sendo incoerentes com seus ditos pressupostos teóricos quando ela legitima a criminalização.

Equivocado falar que o Código Penal seria suficiente para coibir a homotransfobia[11], pois as condutas de discriminar alguém e praticar discursos de ódio não são punidas por ele, só pelo artigo 20 da Lei 7.716/89. O crime de constrangimento ilegal exige violência ou grave ameaça, não abarca qualquer discriminação. Os crimes de injúria e difamação supõem vítimas individualizadas, não ofensas a grupos sociais e coletividades. Tais condutas são punidas penalmente apenas pelo artigo 20 da Lei Antirracismo, pelo crime de “praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação” por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (lembre-se, a homotransfobia foi considerada uma discriminação por raça, na acepção político-social de raça e racismo). Um crime constitucional, embora merecedor de interpretação conforme a Constituição e aos tratados internacionais para considerar o taxativo conceito da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Racismo (artigo 1º, parágrafo 1º), pela qual ‘discriminação racial’ significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública”[12].

Descabido dizer que o STF agora poderia “dar [outra] interpretação equivocada e criminalizar outros comportamentos”. Ora, partiu-se de conceito estrito de racismo, à luz da literatura negra antirracismo, de precedente do STF na definição de “raça” e “racismo” e de taxativo conceito de discriminação racial de tratado internacional. Logo, trata-se de temor arbitrário. Afinal, a lei precisa conter algum conceito positivado para permitir a interpretação judicial: se a interpretação se enquadra na moldura normativa do limite do teor literal, a responsabilidade é do Legislativo, que aprovou o texto normativo (e pode alterá-lo se discordar da exegese judicial). Mas afirmar a homotransfobia como crime de racismo nem de longe abre um tal precedente, dados os pressupostos da tese (ordem constitucional de legislar, existência de conceito valorativo positivado na lei e conceito estrito de racismo, conforme supra).

Portanto, é decepcionante ver juristas de qualidade criticando a decisão sem se dignarem a enfrentar seus fundamentos concretos, que tornam a decisão coerente consigo mesma (coerência interna) e com o Direito (coerência externa).

3. Conclusão
Raça e racismo são conceitos legais, a serem concretizados por exegese judicial, mesmo para quem (irresponsavelmente) acha que “racismo não existe, porque somos todos humanos” (sic). Existe, como conceito político-social. A orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas LGBTI+ são marcadores sociais que as fazem ser inferiorizadas de forma estrutural, sistemática e institucional ao longo da história. São tratadas como “exóticas”, relegadas a papéis sociais e trabalhos secundários (com demissões ou não contratações quando se descobre serem LGBTI+), consideradas pessoas “degeneradas” (longe do “modelo” heterossexual cisgênero) e “perigosas” por grande parte da sociedade, uma “raça do demônio” como neonazista afirmou, certa vez, no SBT, em 2014. Enquadram-se, assim, em todos os elementos do racismo, não por “analogia”, mas por precisa identidade conceitual.

As condutas que se enquadrarem no conceito geral e abstrato de racismo reconhecido pelo STF (em suma, a inferiorização desumanizante de um grupo social relativamente a outro, no contexto de relações de poder social de grupo dominante relativamente a grupo dominado) merecerão esse qualificativo. O reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo não viola o princípio da legalidade penal estrita, por ser subsumível a tipo penal já previsto em lei (por exemplo, artigo 20 da Lei 7.716/89, de praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça), donde respeita a legalidade penal formal (lei escrita), por se enquadrar no conceito ontológico-constitucional de racismo, referendado por precedente histórico do STF (HC 82.424/RS) e pela literatura negra antirracismo, de sorte que não pode ser considerado como “intoleravelmente vago”. Inexiste violação ao princípio da taxatividade, pois este sempre admitiu a criminalização por “conceitos valorativos” (conforme supra), donde a interpretação do STF respeita a legalidade penal substancial, relativa aos princípios da taxatividade e anterioridade (lei certa, estrita e prévia), pois modulados os efeitos da decisão.

Longe de permitir que “qualquer coisa” seja considerada como racismo (ou outro crime), tal compreensão aumenta a dignidade constitucional do conceito de racismo, evitando que qualquer discriminação assim considerada, mesmo por lei. Então, a decisão deve ser celebrada, por não prejudicar o combate à opressão contra pessoas negras e possibilitar a proteção de outros grupos vulneráveis pela repressão constitucional ao racismo, quando se enquadrem nesses taxativos requisitos.


Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. É membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, diretor-jurídico do SEMEAR Diversidade e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).

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