Opinião

30 anos de Celso no STF: o legado de um garantista que não se nega a inovar

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

19 de agosto de 2019, 15h28

No último dia 17 de agosto, celebramos os 30 anos de ingresso do Ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. A figura do decano é unanimemente louvada pelos membros da Corte e pela comunidade jurídica nacional, seja pela densidade jurídica de seus votos, seja ainda mais pelo primor ético, cortês e agregador da sua atuação como membro do Tribunal.

Natural de Tatuí, São Paulo, Celso de Mello formou-se na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1969, e, já no ano seguinte, ingressou na carreira do Ministério Público do Estado de São Paulo. Após 20 anos na instituição, em 1989, foi indicado ao Supremo Tribunal Federal ante a aposentadoria do Ministro Rafael Mayer.

A feliz proximidade entre os 30 anos de atuação ministerial de Celso de Mello e da vigência da Constituição de 1988 permitiu a construção de um rico legado jurisprudencial de defesa irrestrita das garantias processuais penais. Nomeado à Corte menos de um ano após a promulgação da Carta Constitucional, o Ministro Celso exerceu papel-chave em nossa recém-instalada Democracia, que, ainda permeada pela herança autoritária dos tempos ditatoriais, pouco estava acostumada ao devido processo legal e à importância das limitações ao poder punitivo do Estado. É possível dizer que parcela rica do que hoje se conhece na doutrina e na jurisprudência brasileira sobre o tema possui a marca inconfundível do Ministro Celso de Mello. Sua atuação primorosa como Juiz Constitucional marca um impecável legado de um garantista que nunca se negou a buscar soluções inovadoras dentro do sistema constitucional de proteção de direitos.

A defesa irrestrita das garantias ao contraditório e à ampla defesa em seus votos data dos seus primeiros anos de atuação no STF. É o caso, por exemplo, dos posicionamentos sobre o direito ao silêncio – do qual, para o Ministro, decorre também a prerrogativa de o acusado negar, ainda que falsamente, a prática da infração[1] -, bem como sobre questões aparentemente simplórias, mas que, na prática forense, possuem impacto de grande relevância à defesa dos direitos individuais, a exemplo da obrigatoriedade de abertura de prazo à defesa para se manifestar sobre a prova pericial realizada.[2]

No campo probatório, seus votos ajudaram a formar jurisprudência no sentido de assegurar aos cidadãos o respeito à intimidade e à privacidade frente às tendências de abuso por parte dos detentores do poder. O seu veemente repúdio às provas ilícitas, cuja inadmissibilidade é, na opinião do Ministro, uma das “projeções concretizadoras mais expressiva” da garantia do devido processo legal[3], é marca conhecida em vários precedentes. No HC 69.912, o Supremo Tribunal Federal, com o voto do Ministro Celso, reconheceu a necessidade de lei com previsões específicas para a utilização da interceptação telefônica no processo penal.[4] Já, no RHC 90.376, de sua relatoria, reiterou-se jurisprudência da Corte no sentido de que o quarto de hotel, quando habitado, também estaria acobertado pela proteção referente à inviolabilidade do domicílio, a qual exige prévia decisão judicial para qualquer tipo de atividade probatória.[5]

Embora fiel aos precedentes firmados no Plenário, o Ministro Celso não se eximiu da responsabilidade de fomentar debates necessários ao avanço da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Tal é o caso das extradições para o cumprimento de prisão perpétua, as quais, até 2004, eram autorizadas pela Corte sem ressalvas. Foi em um precedente de sua relatoria que se condicionou a entrega do extraditando ao compromisso do Estado requerente em comutar a pena imposta ao limite de 30 anos previsto na legislação brasileira.[6] Em outro caso de extradição, o Ministro excetuou entendimento até então consolidado e permitiu a concessão de prisão domiciliar a estrangeiro de idade avançada e em grave situação de saúde.[7] Posteriormente, após outras decisões com conteúdo semelhante, o Plenário da Corte destacou a necessidade de se ponderar a prisão para a extradição com os direitos assegurados pela Constituição de 1988.[8]

O tema das prisões cautelares, aliás, sempre foi bastante caro ao Ministro Celso, que defende a excepcionalidade da medida e a impossibilidade de seu uso com viés punitivo. Em claro cumprimento da função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, o decano da Corte sempre destacou a impossibilidade de prisão cautelar fundada no clamor popular, mesmo em caso de crime hediondo. Em um dos casos, em que havia um “contexto de extrema hostilidade ao paciente”, o Ministro relembrou a importância das garantias processuais penais mesmo diante de crimes de notória gravidade[9].

A deferência ao sistema de garantias individuais constitucionais orientou ainda o posicionamento do Min. Celso de Mello no julgamento das ADCs 43 e 44 e do HC 152.752, em que o Tribunal discutiu a constitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade após condenação em segunda instância. O histórico voto do decano afirmou que o postulado do estado de inocência repele de forma veemente suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha o trânsito em julgado da condenação penal, ante a opção soberana do Constituinte nesse sentido. A eficácia normativa desse postulado não se acanha diante das deficiências do sistema processual penal, até mesmo porque, nas palavras do eminente decano, “eventual inefetividade da jurisdição penal ou do sistema punitivo motivada pela prodigalização de meios recursais não pode ser atribuída ao reconhecimento constitucional do direito fundamental de ser presumido inocente”.[10]

A proeminência do resguardo ao sigilo bancário no contexto da ordem constitucional de 1988 também foi destacada pelo eminente decano, em seu paradigmático voto, no julgamento da ADI 2.859/DF. Na oportunidade, o Ministro defendeu que o compartilhamento de dados obtidos pela Administração Tributária com entidades do sistema financeiro não poderia passar ao largo da reserva de jurisdição, uma vez que somente ao Poder Judiciário competiria arbitrar a situação de polaridade conflitante entre as prerrogativas institucionais do Estado e os direitos e as garantias básicas dos contribuintes. Na ocasião, ressaltou que “a circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República”[11].

Mais recentemente, o brilhantismo do eminente decano nos rendeu uma das mais paradigmáticas decisões da nossa Corte na concretização do direito constitucional à igualdade. No julgamento da ADO 25, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade da ausência de regulamentação do crime de homofobia. As 155 páginas do voto de Celso de Mello consagraram um tratado das liberdades fundamentais na ordem constitucional brasileira. Reconhecendo o quadro de absoluto desrespeito e de ameaças à população LGBT brasileira, o decano asseverou que o Tribunal Constitucional não pode curvar-se às pressões de grupos sociais majoritários que buscam impor exclusões e negar direitos a grupos vulneráveis por meio de atos odiosos de violência, preconceito e discriminação[12].

Esse breve percurso pelo legado jurisprudencial de Celso de Mello revela apenas parte das suas ricas e históricas contribuições, fruto da incansável dedicação do seu excepcional saber jurídico à proteção do Estado de Direito. A densidade de seus votos, a cautela e o esmero no enfrentamento de discussões complexas quotidianamente nos rememoram o primoroso valor da missão atribuída à Corte Constitucional brasileira. A presença de Celso no Supremo Tribunal Federal merece ser vivamente festejada por todos os que creem na relevância da jurisdição constitucional para a construção de uma sociedade democrática e justa.


[1] STF, Primeira Turma, HC 68.929, Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 28.8.1992

[2] STF, Primeira Turma, HC 69.001, Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 26.6.1992

[3] STF, Tribunal Pleno, HC 69.912, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Dj. 26.11.1993 e 25.3.1994.

[4] STF, Tribunal Pleno, HC 69.912, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Dj. 26.11.1993 e 25.3.1994.

[5] STF, Segunda Turma, RHC 90.376, Rel. Min. Celso de Mello, Dj 18.5.2007.

[6] STF, Tribunal Pleno, Ext 855, Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 1º.7.2005

[7] STF, Ext 791, Decisão do Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 23.10.2000

[8] STF, Tribunal Pleno, HC 91.657, Rel. Min. Gilmar Mendes, Dj. 13.3.2008

[9] STF, Segunda Turma, HC 80.719, Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 28.9.2001

[10] HC 152.752, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 27.6.2018.

[11] ADI 2.859, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje 21.10.2016.

[12] ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, acórdão pendente de publicação.

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    é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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