Direito Civil Atual

Para que serve o contrato de seguro D&O? — parte III

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

19 de agosto de 2019, 8h55

ConJur
Na primeira coluna alusiva à presente temática tivemos a oportunidade de, ainda que resumidamente, dissecar o risco que interessa ao contrato de seguro D&O, qual seja, a responsabilidade do administrador, fazendo-o fundamentalmente por meio do exame dos deveres de diligência e de lealdade.

A segunda coluna, por sua vez, ocupou-se das zonas de convergência e de divergência existentes entre a business judgment rule e o contrato de seguro em referência, formulando-se conclusão no sentido de que, nada obstante a proteção conferida por aquele instituto, o contrato de seguro permanece relevantíssimo, sobretudo considerando a severidade que, cada vez mais, caracteriza o regime de responsabilidade dos administradores no direito brasileiro.

Compreendidos os dois pontos acima, acredita-se que para esta terceira e última coluna [1] seja importante explicar, estruturalmente, como as coberturas comumente oferecidas pelo contrato de seguro D&O se apresentam para, a seguir, observar a cobertura destinada a reembolsar os gastos havidos pela sociedade (tomadora) para custear a defesa de seus executivos, vertendo o olhar, concomitantemente, aos contratos de indenidade.

Basicamente, este contrato de seguro oferece duas coberturas principais, quais sejam, (i) o custo de defesa e (ii) a indenização. Há, em adição, uma série de outras coberturas que, inclusive, motivam comentários da doutrina no sentido de que este seguro seria de natureza multirriscos ao invés de, como afirma o órgão regulador brasileiro, um típico seguro de responsabilidade civil. [2] Refiro-me, por exemplo, às coberturas para penhora on line, indisponibilidade de bens, crises emergenciais, abalos à imagem da sociedade (tomadora), custos com publicidade, marketing, entre outras.

As duas coberturas mencionadas — custo de defesa e indenização — apresentam-se por meio de três faces ou lados, denominados A, B e C, compondo a integralidade de uma proposta figura geométrica. A cobertura A refere-se ao custeio, pela seguradora, diretamente aos administradores, do quanto for necessário para a sua defesa/indenização. Em inglês, esta cobertura é conhecida pela ‘porção’ director’s and officer’s liability insurance; a cobertura B destina-se ao reembolso à sociedade, pela seguradora, das verbas empenhadas na defesa/indenização de seus executivos. É a chamada corporate reimbursement e a cobertura C, por seu turno, provê cobertura para a própria tomadora que, desta maneira, passa também à condição de segurada. Em inglês, trata-se da entity coverage.

No tocante à cobertura C, a generalidade das apólices brasileiras garante apenas os danos cujas reclamações estejam relacionadas aos valores mobiliários. No exterior, designadamente na Espanha e na Alemanha, esta cobertura vai além e, por exemplo, oferece garantia à tomadora para práticas trabalhistas indevidas. Nos Estados Unidos da América, a cobertura C em apólices destinadas a companhias fechadas é amplíssima. [3]

As três faces ou lados desta imaginária figura geométrica estruturam o contrato de seguro D&O como um todo, mas, vale ter em mente que, a bem da verdade, a cobertura que realmente importa aos administradores é a A, cujo pagamento será efetuado diretamente pela seguradora. As coberturas B e C, como se pôde observar, operam no interesse da sociedade (tomadora), nada obstante a B tenha por finalidade prover o reembolso à sociedade das verbas despendidas com a defesa/indenização de seus administradores.

Esta constatação revela uma fragilidade do modelo até então adotado pelo mercado segurador brasileiro em comparação com mercados seguradores mais desenvolvidos como, exemplificativamente, os norte-americano e o inglês.

No Brasil, as apólices de seguro D&O oferecem as coberturas A e B compondo um mesmo ‘pacote’. Se o limite segurado corresponder a 100 moedas e estas 100 moedas forem despendidas com reembolso à sociedade (tomadora) — isto é, cobertura B — nada remanescerá aos administradores a título de cobertura A. A cobertura C, se contratada, integrará este mesmo limite, talvez até mediante o estabelecimento de um sublimite, porém integrado ao limite maior já referido — as mesmas 100 moedas.

A depender da complexidade da reclamação formulada contra diversos administradores que, com certa naturalidade, desejarão defesas distintas, elaboradas por advogados igualmente distintos, muito provavelmente a cobertura A fará mais sentido do que a B, a revelar que o ‘pacote’ comumente observado no Brasil, num futuro próximo, enfrentará problemas decorrentes de possíveis conflitos de interesses entre os administradores e a sociedade (tomadora).

Comparativamente, Estados Unidos da América e Inglaterra apresentam os desenhos de suas apólices de maneira totalmente flexível. É comum observar a contratação da cobertura A com uma seguradora, e das coberturas B e C com outra seguradora. Como forma de gerar limites segurados mais robustos, contrata-se, como se observou, A com uma seguradora, B e C com outra seguradora e, ainda em adição ao limite contratado com a seguradora responsável pela cobertura A, as chamadas torres de seguros (insurance towers), somando limites em camadas justamente para a cobertura que, inclusive, remete ao nome deste contrato – director’s and officer’s liability insurance. [4]

O último aspecto que se deseja cobrir nesta terceira coluna, conforme antecipado anteriormente, diz respeito às semelhanças e diferenças existentes entre a cobertura B (corporate reimbursement) e os contratos de indenidade, objeto do parecer de orientação 38, de 25.9.2018, elaborado pela Comissão de Valores Mobiliários.

Em síntese, a CVM é favorável ao estabelecimento dos contratos de indenidade entre as sociedades reguladas e seus executivos, contanto que sejam observadas algumas premissas. Para fazer jus ao contrato de indenidade, o executivo não poderá ter agido de maneira gravemente culposa ou dolosa, não deverá ter cometido fraude contra a sociedade, não poderá aproveitar-se de oportunidade a ela dirigida, o que remete ao que explicitamos na primeira coluna, no concernente aos deveres de diligência e de lealdade. [5]

A depender dos valores necessários ao custeio da defesa de seus executivos, caberá à companhia levar o tema à deliberação assemblear, o que implicará na exposição de todos os fatos ao um número relativamente grande de participantes.

Em suma, entendemos que os contratos de indenidade e a cobertura B oferecida pelos contratos de seguro D&O podem apresenta-se em conjunto, o que tutelaria os interesses dos administradores de maneira mais ampla. Os contratos de indenidade não dispõem de franquia, isto é, participações obrigatórias mínimas por conta dos administradores; o seguro D&O, para a cobertura B, usualmente assim se estruturam. Os pagamentos pela própria companhia a seus administradores, escorados pelos contratos de indenidade, implicam em reduções de seu próprio caixa; o dispêndio pela seguradora, uma vez pago o prêmio pela sociedade (tomadora), não afetará o fluxo de caixa da companhia. Como se observou, a depender do montante necessário, o contrato de indenidade gerará uma exposição considerável do administrador, decorrente da deliberação assemblear. No contrato de seguro D&O a sistemática é totalmente privada e confidencial.

A reunião dos contratos de indenidade e dos contratos de seguro D&O efetivamente se apresenta como a maneira mais ampla de responder aos anseios dos administradores, decorrentes dos severos riscos aos quais estes se encontram cotidianamente expostos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 Por óbvio, a complexidade de que o contrato de seguro D&O se reveste não permitiria que todas as discussões que lhe são imanentes se encerrasse nestas três colunas. Para um aprofundamento, refere-se a GOLDBERG, Ilan. O contrato de seguro D&O. 2019. 504 f. Tese. (Doutorado em Direito Civil.) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., no prelo.

2 Há consenso na doutrina quanto à classificação do seguro D&O como um contrato de seguro para além

de um típico contrato de seguro de responsabilidade civil. E.g. LACERDA, Maurício Andere Von Bruck. O seguro dos administradores no Brasil. O D&O insurance brasileiro. Curitiba: ed. Juruá, 2013. p. 106. Em Portugal: RAMOS, Maria Elisabete Gomes Ramos. O seguro de responsabilidade civil dos administradores: entre a exposição ao risco e a delimitação da cobertura. Coimbra: Almedina, 2010. p. 307-309.

3 “Under corporate D&O forms, entity coverage applies only to claims involving securities issued by the corporate entity. The most familiar claims to which entity coverage applies are shareholder class action suits alleging that management’s errors or omissions caused a drop in the corporation’s share price and ultimately a loss to the shareholders. In contrast, under D&O forms written for nonprofits and privately held organizations, entity coverage is truly that—the corporate entity is covered for all types of claims (unless excluded), including those involving securities issued by the organization. (Admittedly, the securities exposure is minimal for privately held firms and nonexistent for nonprofits.) The fact that the entity coverage within nonprofit and private company D&O forms is not restricted to securities-related claims creates a strong selling point for such policies. While there is no limit to the kinds of scenarios under which these entities could be named in a nonsecurities lawsuit, representative claims might include allegations that the entity did one of the following: – Breached a contract to supply or buy certain goods or services; – Used a preacquisition due diligence process as a ruse to gain information about a competitor; – Hired away several of a competitor’s key personnel, who then revealed their former employer’s trade secrets. While none of these types of claims against the company would be covered under the entity coverage found within a D&O policy written for a publicly held company, they would be covered by a policy written for a nonprofit or privately held company.” (BREGMAN, Bob e JORDAN, Sean. 20 ways to improve directors and officers liability coverage or practices. In IRMI D&O compass. March 2017. Disponível em https://www.irmi.com/free-newsletters/d-o-compass/, visitado em 7.9.2017. p. 11).

4 “At some point, D&O insurance was introduced with only Side A coverage for the purpose of offering directors and officers protection against the risk of personal liability. The insurance is called ‘Directors’ and Officers’ Liability Insurance’ for good reason. The protection of the company was added later to the cover provided by the D&O insurance policy (Side B and Side C). That is another type of coverage, for another insured party, for other situations. That is why it is preferable to make a division between the cover of the director – for whom the D&O insurance was originally intended – and the cover of the company against shareholders’ claims – against which risk it is difficult to obtain protection beyond the D&O insurance policy.” (WETERINGS, Wim. Possible conflicts of interest with D&O insurance in event of shareholders' class actions. In European Insurance Law Review. nº. 3/2013, p. 28. Disponível em www.heinonline.org. Visitado em 8.10.2018. p. 27).

5 O parecer de orientação, em sua íntegra, pode ser consultado em http://www.imprensanacional.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/42373934/do1-2018-09-26-parecer-de-orientacao-cvm-n-38-de-25-de-setembro-de-2018-42373791, visitado em 21.8.2018.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes, professor visitante da FGV Direito Rio, EMERJ e Escola Nacional de Seguros, além de advogado, sócio de Chalfin, Goldberg, Vainboim & Fichtner.

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