Opinião

Movimentação financeira, tributação na era digital e a proposta de reforma

Autor

  • Cesar Tadeu Dias Junior

    é sócio do Gasparino Sachet Roman Barros & Marchiori Sociedade de Advogados com pós-graduação em Direito Tributário pela Unicuritiba e Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

19 de agosto de 2019, 7h03

O cenário político do país está propício à realização das reformas que sempre estiveram na pauta dos governos de turno, mas que, pelas mais diversas razões, nunca foram levadas adiante. Após o bom encaminhamento da reforma da Previdência Social na Câmara dos Deputados, as atenções agora se voltam à discussão de uma nova formatação tributária que substitua o emaranhado de normas que rege o modelo atual.

O sistema tributário em vigor foi concebido há décadas e, em sua essência, foi mantido pela Constituição Federal de 1988, com posteriores complementações, realizadas de forma muitas vezes improvisadas, visando suprir principalmente o aumento do gasto público. Trata-se do que Alfredo Augusto Becker cunhou de “carnaval tributário”, mas que também pode ser chamado de “favela fiscal, cheia de goteiras e vazamentos”, nas palavras do Roberto Campos.

Nesse contexto, os contribuintes, em especial as empresas, precisaram se organizar e investir em sistemas de controle, escrituração e apuração, além da preparação e envio das centenas de obrigações acessórias e capacitação de pessoal voltado à realização de serviços não relacionados com a respectiva atividade-fim.

Deve-se levar em conta ainda a litigância de temas, que se arrastam por anos nos tribunais administrativos e judiciais e que nem sempre possuem o deslinde mais técnico, tornando o cenário de negócios bastante inseguro.

Temos, portanto, a instituição de tributos, em sua maioria declaratórios, que demandam uma complexa estrutura do Estado para coibir a sonegação e se certificar de que a legislação em vigor está sendo observada corretamente. Como se nota, formou-se um grande ciclo vicioso em que parcela dos valores arrecadados pela Fazenda se destina a custear a própria máquina criada para fiscalização.

Resta evidente, assim, a necessidade de se promover alterações profundas que (i) visem a simplificação e modernização do modelo atual, (ii) facilitem a gestão por parte dos contribuintes e (iii) minimizem a estrutura de fiscalização, ao mesmo tempo em que otimizem a arrecadação e o desestimulo à sonegação.

Para tanto, o grande desafio é o de conciliar os interesses e necessidades dos contribuintes, da União, 27 unidades da federação e mais de 5 mil municípios, todos com realidades bem distintas entre si (PIB, IDH, geografia etc.). Além disso, a reforma deve ser idealizada levando em consideração as novas formas de relação interpessoal, se afastando dos conceitos convencionais que ditaram a economia no século passado.

No momento, há duas propostas em tramitação avançada no Congresso que, em apertadíssima síntese, preveem a extinção de uma série de tributos e a criação de um novo imposto sobre valor agregado (Imposto sobre Bens e Serviços – IBS) e impostos específicos para determinadas situações.

O presente artigo não tratará desses casos que já são amplamente divulgados pela mídia, sendo objeto de análise de renomados especialistas. O objetivo aqui é lançar luz sobre alguns aspectos, por vezes ignorados, de uma terceira proposta, concebida e defendida pelo secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, que trata da tributação sobre a movimentação financeira.

Esse tema costuma gerar forte resistência da sociedade em geral, devido à sua questionável utilização no passado, quando, por meio da CPMF, a carga tributária foi apenas incrementada por mais um tributo, sem nenhuma medida compensatória para minimização do ônus adicional.

Os equívocos da experiência anterior não deveriam, contudo, encobrir as qualidades intrínsecas desse modelo, se implementado de forma racional e coerente, conforme procuraremos demonstrar adiante.

Não se pode negar que a própria CPMF se mostrou um meio eficaz e barato de fiscalização e arrecadação, além de sua abrangência universal, já que atingiu todos os contribuintes que de algum modo geraram ou movimentaram riquezas econômicas.

Ao se adotar um modelo que priorize a tributação da movimentação financeira, substituiríamos o formato de lançamento por declaração que, como demonstrado acima, gera uma diversidade de procedimentos para sua fiscalização, por uma alternativa voltada à cobrança e a mensuração automática do fato gerador.

Com efeito, ao se tributar a movimentação financeira, a sonegação seria praticamente inviabilizada, privilegiando a automaticidade e a simplicidade procedimental, já que tornaria desnecessária a manutenção de uma pesada estrutura de fiscalização por parte da Fazenda e de apuração e recolhimento por parte do contribuinte.

O resultado desse processo seria a otimização da arrecadação (eficiência) e a desoneração do custeio da própria máquina pública.

É claro que a adoção dessa nova sistemática dependeria de uma mudança brutal na cultura fiscal tanto dos entes públicos, como dos próprios contribuintes. Haveria, inclusive, a necessidade de se abandonar antigos princípios, como o da progressividade do Imposto de Renda.

Isso porque o IR é progressivo em função da renda produzida e, de certo modo, pune as empresas mais eficientes no mercado que, em alguns casos, dispendem preciosa energia e recursos para redesenhar suas respectivas atividades, no intuito de encontrar a forma menos onerosa de atuação, o que passa inclusive pela constituição de empresas em países de tributação favorecida ou até transferência da operação para locais em que o custo de produção é menor.

Outro conceito a ser revisto seria o da tributação do consumo, em especial o ICMS e o IPI, que baseiam a validação dos critérios de suas respectivas regras matrizes em notas fiscais (declaratórias, por definição), o que permite diversas formas de sonegação.

Vale dizer que as propostas em tramitação avançada no Congresso, que lastreiam a reforma na unificação dos tributos e criação do IVA (valor agregado), ainda que signifiquem importante avanço e simplificação em relação ao atual sistema, concentram a validação do valor devido em lançamentos declaratórios (homologação não automática) e averiguações documentais (exigindo estrutura complexa tanto do Fisco como do contribuinte).

Pode-se dizer que tais formas de tributação (a atual e a baseada no valor agregado) são analíticas, porquanto dependem da burocracia estatal para sua validação, além de fincarem suas respectivas matrizes conceituais em relações econômicas lineares, baseada em uma realidade que vem sendo ultrapassada pela era digital.

Atualmente as operações comerciais e financeiras são assimétricas e globais, de difícil padronização, o que torna a legislação tributária rapidamente obsoleta, na medida em que não consegue acompanhar o avanço na forma como os negócios jurídicos são realizados.

A tributação da movimentação financeira, por outro lado, é sintética e possui características mais atreladas à constante evolução tecnológica em que vivemos, já que a cobrança é automatizada e eletrônica, por meio do sistema bancário e, principalmente, imune à sonegação fiscal, já que incidirá na fonte de qualquer transação destinada à obtenção de renda ou ao consumo, trazendo a vantagem adicional de atingir a economia informal.

É bem verdade que se trata de um imposto cumulativo, porém o chamado efeito cascata substituiria com alguma vantagem a progressividade, em especial, na tributação da renda.

Ou seja, os ricos pagariam mais impostos, porque realizam maior número de transações e pelo fato de consumirem produtos mais sofisticados, com maior cadeia de produção. Tudo isso sem a sensação de que, por auferirem mais renda, seriam “punidos” por alíquotas mais altas.

Os críticos a esse sistema argumentam que haveria perda da autonomia federativa dos estados e municípios, uma vez que os entes públicos estariam parcialmente alijados da competência para cobrar tributos.

Tal autonomia, porém, não deve ser medida pela manutenção de estruturas sobrepostas de arrecadação, mas, sim, na disponibilidade direta do valor arrecadado e na liberdade de alocação de recursos, o que seria revolucionariamente facilitado pelos métodos eletrônicos de obtenção de tais receitas.

Outra crítica à proposta seria a de que são raros os países que adotam referido modelo, o que, por si, comprovaria a ineficácia da tributação da movimentação financeira. Ora, devemos pensar o Brasil por meio de suas características particulares. Somos um país em que o sistema financeiro é concentrado em poucas instituições financeiras. Sob esse aspecto, é legítimo concluir ser mais simples e barato fiscalizar esse seleto grupo do que milhões de pessoas e centenas de milhares de empresas.

Já nos encaminhando para conclusão, a escolha a ser feita seria entre um modelo que tributa os subconjuntos (renda, serviços, circulação de mercadorias) e outro que visa a síntese deles, que é a movimentação financeira representativa de tais operações, de difícil sonegação e de cobrança automática (arrecadação máxima a um custo mínimo).

Não se está aqui defendendo intransigentemente a adoção desse sistema que certamente possui falhas e obstáculos a serem vencidos, como a tendência a verticalização da economia (empresas que subcontratam etapas de produção, passariam a concentrar toda a cadeia embaixo de si) ou o surgimento de novas formas de circulação de riquezas que dispensem a movimentação financeira, em especial às que se utilizam de criptomoedas.

Nenhum sistema será perfeito.

No entanto, não se pode negar que a proposta em questão merece ser debatida com maior detalhamento e sem o rancor herdado da época em que vigorou a CPMF, pois se trata de uma alternativa que simplificaria drasticamente o sistema tributário, barateando a fiscalização, liberando parte do orçamento público e possibilitando que os contribuintes se concentrem com maior afinco em sua atividade-fim, sem prejuízo da manutenção de tributos suplementares que corrigiriam eventuais distorções advindas do novo modelo[1].


[1] Ao nosso ver, além da tributação da movimentação financeira, manter-se-iam as contribuições sociais para Previdência Social, a tributação sobre patrimônio, comércio exterior (principalmente em relação ao caráter extrafiscal desse tipo de tributo) e o Imposto de Renda em caráter supletivo.

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    é sócio do Gasparino, Sachet, Roman, Barros & Marchiori Sociedade de Advogados, com pós-graduação em Direito Tributário pela Unicuritiba e Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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