Opinião

Reduzir número de tributos não significa, necessariamente, simplificação

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

16 de agosto de 2019, 7h24

Preâmbulo
No primeiro artigo sobre a reforma tributária, falamos um pouco sobre a complexidade do Sistema Tributário Nacional. Naquele texto, já pontuamos algumas questões importantes, como o fato de que a simplificação não é um valor absoluto, devendo ser ponderada com outros, principalmente a solidariedade, a justiça, a eficiência econômica e a manutenção da forma federativa de Estado.

Por mais que a simplificação seja o principal tema do debate atual sobre reforma tributária, temos a percepção de que essa questão vem sendo tratada de maneira parcial e, não raro, simplista. Complexidade é consequência, não é causa. Portanto, para que a possamos analisar as propostas de reforma da perspectiva da simplificação, temos que entender bem as causas da complexidade do Sistema Tributário Nacional. Este é o propósito deste artigo.

1. Causas da complexidade
Um primeiro aspecto relevante é que complexidade é uma característica que decorre de uma percepção individual. Ao afirmarmos que o Sistema Tributário Nacional é complexo, devemos entender para quem ele é complexo. Certamente não é para a empresa de pequeno porte que paga todos seus tributos pelo regime do Simples. Da mesma maneira, é possível que, para a maioria dos contribuintes que pagam Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) pelo regime do lucro presumido, a complexidade não seja a nota mais característica do sistema tributário.

É importante deixarmos já aqui uma ressalva. Nada no parágrafo anterior é uma defesa da complexidade, ou uma afirmação de que nosso sistema não é complexo — quase todos os sistemas tributários o são. Apenas registramos que a complexidade não é uma característica universal do Sistema Tributário Nacional. Provavelmente, em uma pesquisa empírica, a carga tributária seria uma característica mais repudiada pelos contribuintes do que a complexidade.

Neste texto analisaremos, sem pretensão exaustiva, seis diferentes grupos de causas da complexidade do Sistema Tributário Nacional, a saber:

  • causas decorrentes do desenho do sistema
    • modelo federativo brasileiro
    • pulverização excessiva de tributos;
  • causas decorrentes de induções legislativas
    • criação de regimes benéficos diferenciados
    • indução ao lobby
    • planejamento tributário;
  • causas decorrentes da maneira como se dá a relação entre Fisco e contribuintes
    • reação à carga tributária, à corrupção e à má-administração de recursos públicos
    • estímulo ao antagonismo e à criação de posições divergentes;
  • causas decorrentes da interpretação da Constituição e da legislação tributária
    • o papel do lançamento por homologação
    • a indeterminação da linguagem
    • a omissão e o tempo do Poder Judiciário;
  • causas decorrentes dos deveres instrumentais impostos aos contribuintes;
  • a complexidade tributária decorrente da complexidade dos fatos econômicos e sociais.

Percebe-se, desde logo, que a análise detalhada de cada um desses itens vai bem além dos limites editoriais deste artigo. Portanto, a seguir comentarei brevemente cada um deles, para, em seguida, analisar as propostas de reforma tributária à luz da questão da complexidade sistêmica.

Devemos destacar mais uma vez que neste texto estamos analisando exclusivamente a questão da complexidade. Entretanto, como já destacamos, simplificar não é o fim único de uma reforma tributária. Portanto, ter como resultado a simplificação é premissa, mas não justificativa de qualquer proposta.

2. Causas decorrentes do desenho do sistema
2.1. O modelo federativo brasileiro

Nosso último artigo sobre a reforma tributária na ConJur foi sobre federalismo fiscal e a PEC 45. Ora, se temos um sistema tributário estruturado na atribuição de competências tributárias para os três níveis da federação, temos um modelo inevitavelmente complexo.

De fato, a existência de três níveis de competência tributária faz com que as empresas em geral se relacionem com ao menos dois entes federativos, com legislações próprias — tratando de aspectos materiais e formais, inclusive processuais — e corpo fiscalizatório independente. Algumas empresas chegam a se relacionar com os três níveis. Quando a atividade da empresa se espalha por diversos estados e municípios no território nacional, os efeitos da complexidade tornam-se kafkianos.

Portanto, não há nenhuma dúvida de que o modelo de federalismo fiscal que adotamos é gerador de complexidade, o que não significa, por si só, que seja constitucional a sua abolição.

2.2. Pulverização excessiva de tributos
Este é um problema identificado essencialmente na maneira como a União exerce a sua competência para a instituição de contribuições, de modo a burlar as regras constitucionais de repartição de receitas com estados e municípios.

De fato, a possibilidade de criar contribuições, ficando com a integralidade da arrecadação, juntamente com a institucionalização da desvinculação de receitas da União, atualmente em 30%, tornou um bom negócio utilizar as contribuições para a arrecadação de receitas que deveriam ser arrecadadas por impostos. Talvez o caso mais emblemático seja o da CSLL. Ela tem cara, gosto e cheiro de Imposto de Renda, mas não é Imposto de Renda. A existência da CSLL, além de complexidade no dia a dia da apuração dos tributos e do cumprimento das obrigações acessórias, gera controvérsias decorrentes de uma sobreposição legislativa imperfeita, que cria diferenças de base de cálculo que se tornam objeto de litígio.

Assim sendo, também essa proliferação artificial de tributos, que formalmente são independentes, mas em substância são iguais a outros já existentes, é sem dúvida causa de complexidade.

3. Causas decorrentes de induções legislativas
3.1. Criação de regimes benéficos diferenciados

Um dos princípios que pautam a incidência tributária é o da generalidade. Pessoas numa mesma situação devem pagar os mesmos tributos. Assim, as situações de tratamento diferenciado devem ser excepcionais e ter uma base constitucional clara. Em outras palavras, a concessão de um benefício fiscal deve sempre estar pautada pela realização de um fim constitucional, do contrário, será ilegítima.

Nada poderia estar mais distante da realidade. No contexto atual, o diferente se tornou a regra. Benefícios fiscais tornam-se privilégios fiscais. Portanto, sem sombra de dúvidas que a concessão inconstitucional de tratamentos fiscais diferenciados é uma das causas de complexidade sistêmica.

3.2. Indução ao lobby
Naturalmente, em um sistema onde benefícios fiscais tornam-se privilégios fiscais, há uma corrida dos contribuintes para tentarem influenciar no processo legislativo de forma a obterem, também, tratamentos tributários diferenciados. Cria-se, assim, um círculo vicioso. Quanto mais benefícios, maior a complexidade, ao mesmo tempo, maior a busca por benefícios, reforçando a complexidade.

3.3. Planejamento tributário
Em uma redução simplificadora, o planejamento tributário tem como ponto de partida uma ação do contribuinte para se enquadrar em um regime tributário mais benéfico que, em princípio, não lhe seria aplicável. No momento que temos uma proliferação de subsistemas tributários que levam a uma menor tributação, o próprio sistema induz o contribuinte a buscar tais tratamentos. É um comportamento intuitivo. Portanto, quanto maior o número de exceções, maior será a indução ao planejamento e as oportunidades para a sua realização. A tendência das autoridades fiscais será questionar tais atos e negócios jurídicos, criando conflitos intermináveis que aumentam a complexidade e a incerteza sobre as consequências tributárias dos atos praticados.

4. Causas decorrentes da maneira como se dá a relação entre Fisco e contribuintes
Em termos de psicologia tributária, os contribuintes, como regra, não se sentem motivados a contribuir. Certa ou errada, ou parcialmente certa ou parcialmente errada, o fato é que a percepção dos contribuintes é de que os valores que pagam são desviados, mal empregados, ou desperdiçados. Um contribuinte que não quer contribuir não será estranho ao planejamento fiscal e, até mesmo, à evasão fiscal, que tende a gerar uma baixa rejeição social.

Neste ambiente, a legislação tem que constantemente buscar mecanismos de proteção da arrecadação, não raro criando obrigações de controle que aumentam a complexidade. Ademais, este cenário leva ao desenvolvimento de uma relação belicosa entre Fisco e contribuintes, onde a desconfiança é a regra, não a exceção. Na prática, a desconfiança leva ao questionamento, que leva às autuações fiscais, que levam ao contencioso, que é gerador de instabilidade e insegurança.

5. Causas decorrentes da interpretação da Constituição e da legislação tributária
5.1. O papel do lançamento por homologação

Sabe-se que nosso sistema de administração tributária é baseado no chamado “lançamento por homologação”, no qual o contribuinte interpreta a legislação, identifica a obrigação tributária, calcula e paga o tributo. As autoridades tributárias irão, posteriormente, rever a apuração do contribuinte.

Se juntarmos o que foi dito no item 4 com este comentário acima, vemos que um sistema baseado em comportamentos ativos do contribuinte, onde este não quer contribuir, tende a ser gerador de conflitos e complexidade. Um relacionamento antagônico e bipolar inviabiliza posições conciliadoras, fazendo com que ambos os lados vivam um estado permanente de insegurança.

5.2. A indeterminação da linguagem
Parte da complexidade do Sistema Tributário Nacional é interpretativa. A excessiva constitucionalização e o conceitualismo que caracteriza boa parte da teoria tributária nacional geram intermináveis debates sobre a materialidade de cada tributo. Tendo as palavras como matéria prima, os textos normativos quase sempre têm uma margem de indeterminação geradora de complexidade.

5.3. A omissão e o tempo do Poder Judiciário
Se considerarmos os comentários anteriores notaremos que, sem um órgão de aplicação célere e tecnicamente capacitado, dificilmente haverá uma superação da complexidade interpretativa.

Com efeito, as divergências conceituais que se proliferam no debate tributário brasileiro poderiam ser mais facilmente superadas com uma decisão técnica e célere do Poder Judiciário. Nesse sentido, a demora e os déficits técnicos dos tribunais superiores os transformam em geradores de insegurança e complexidade, quando deveriam ser estabilizadores e simplificadores da interpretação da legislação.

6. Causas decorrentes dos deveres instrumentais impostos aos contribuintes
Diretamente vinculada a tudo quanto foi dito acima está a proliferação de deveres instrumentais que têm que ser adimplidos pelos contribuintes. Com efeito, se o sistema está estruturado sobre o “lançamento por homologação”, as autoridades se vêm forçadas a exigir que os contribuintes assumam obrigações informacionais que lhes permitam exercer sua função de controle. Quanto mais complexa for a operação da empresa, mais complexa será a teia de deveres instrumentais a que estará submetida.

7. A complexidade decorrente da complexidade
Além de tudo que foi apontado anteriormente, há que se reconhecer que existe um aspecto da complexidade que é decorrente do fato de que as relações sociais, empresariais, políticas etc., tornaram-se mais complexas ao longo do século XXI. A digitalização da economia torna nossa compreensão dos fatos econômicos mais complexa. Não é raro que simplesmente não se saiba como fatos novos podem ser enquadrados em legislações antigas. Muitas vezes sequer se sabe como alterar a legislação para contemplá-los. Ou seja, complexidade é uma característica da pós-modernidade. Posturas que pretendam uma redução absoluta das complexidades partem de um raciocínio utópico. A complexidade em si não pode ser eliminada, ela pode ser administrada.

8. Complexidade e reforma tributária
Considerando os comentários acima, podemos apresentar algumas considerações sobre o debate atual das propostas de reforma tributária.

No último texto publicado na ConJur, destacamos que a PEC 45 não é uma proposta de reforma tributária, mas, sim, uma proposta de reforma da tributação do consumo. Partindo dessa afirmação, devemos considerar separadamente dois aspectos da versão original da PEC 45: a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a outorga de competência para a instituição de impostos extrafiscais.

Em relação ao IBS é possível afirmar que ele é simplificador em todos os aspectos que comentamos acima. A junção de cinco tributos em um, com a vedação de incentivos fiscais e a redefinição do federalismo fiscal brasileiro, sem dúvida alguma simplifica — isso considerando o cenário pós-transição. Durante o período de transição, a instituição do IBS tornará o sistema mais complexo.

De outra parte, a competência aberta para a instituição de impostos extrafiscais, que foi objeto de nosso segundo artigo sobre reforma, é o oposto. Trata-se de uma regra aberta, que não estabelece qualquer critério para a criação desses novos impostos, podendo ser uma nova fonte de complexidade sistêmica.

Ainda não temos o desenho da proposta de reforma do governo. Contudo, por tudo que já foi divulgado, acreditamos que ela traria mais complexidade do que simplificação.

No campo da tributação do consumo, fala-se na criação de um IVA federal. Porém, entendemos que:

  • se há a necessidade de um tributo federal sobre receitas operacionais;
  • já existem dois tributos (PIS e Cofins) que incidem sobre tais operações;
  • os problemas desses tributos são conhecidos de todos, a ponto de haver uma proposta pronta eliminando a dualidade e resolvendo os problemas decorrentes da não cumulatividade;
  • então, não há porque criar um tributo novo! Se a questão é a absorção do IPI, basta ajustar a alíquota.

Vivemos um momento importante de abertura à mudança. Porém, não podemos nos entregar a uma percepção de que tudo que existe é ruim. Há um custo brutal na mudança. Quando se troca o PIS, a Cofins e o IPI por um IVA federal, surgem novas pautas constitucionais, que gerarão controvérsias. Novos conceitos que gerarão divergências interpretativas. Reinicia-se a discussão com os órgãos de aplicação, administrativos e judiciais, que terão que recomeçar o processo de criação de sentidos. Ou seja, uma modificação só é válida se ela traz, efetivamente, um ganho em simplificação. O IBS entrega esse tipo de ganho. O modelo que aparentemente será proposto pelo governo, a nosso ver, não.

9. Conclusão
Como vimos, por mais que seja ubíqua em todos os debates sobre reforma tributária, nem toda modificação do Sistema Tributário Nacional será efetivamente simplificadora. Para simplificar, temos que entender bem as origens da complexidade. Um tema que queríamos ter analisado neste texto é o famigerado estudo do Banco Mundial que aborda a complexidade da tributação, com dados aparentemente alarmantes sobre o Brasil. Traremos nossas considerações sobre esse tema em um próximo artigo.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

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