Jurisprudência das liberdades

País celebra 30 anos de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal

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16 de agosto de 2019, 17h16

Era 17 de agosto de 1989. Dia não muito diferente dos atuais em termos políticos. Estudantes e cidadãos brasileiros protestavam contra o governo e os holofotes se viravam para as mudanças que ocorriam com rapidez na política. Nesse mesmo dia, tomava posse no Supremo Tribunal Federal o ministro Celso de Mello, que começaria a construir uma nova jurisprudência, um novo vetor de pensamento jurídico sobre a garantia de liberdades pós-ditadura. 

Nelson Jr./SCO/STF
País celebra celebra 30 anos de Celso de Mello no Supremo.
Nelson Jr./SCO/STF

Neste sábado (17/8), o ministro Celso de Mello entra para o seleto grupo de ministros que ficaram na corte por 30 anos. Ele é avesso a pompas e circunstâncias. Raramente frequenta eventos sociais, não aceita convites para dar aulas em universidades privadas ou palestras em eventos. Vive só do salário de ministro e se dedica apenas a esse ofício. Obstinadamente. Exageradamente.

O ex-presidente Sarney ficou magoado por tê-lo nomeado e não ter qualquer contrapartida. Collor tampouco teve motivos para agradecê-lo. Nem Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma ou Temer. Seu compromisso sempre foi com a Constituição. Sua opinião sobre Bolsonaro está em seus votos. Não é muito boa. Sua diplomacia não convenceu os ministros nomeados durante a ditadura quando se fez presidente do tribunal. A velha guarda fez de tudo para emparedá-lo. Como tentaram na administração Marco Aurélio de Mello, cercaram-no de limitações. Poucos souberam disso. Mas o compromisso dos dois não foi com o momento. O que veio depois deu razão aos dois. Ambos alicerçaram uma "lava jato" que a renegaram pela pantomima que se tornou. Eles objetivavam a correção de erros, não sua ampliação.

Nas inúmeras propostas  de comemorações de 30 anos de corte, todos que o procuraram, desde a PGR, passando pela Universidade de São Paulo até a ConJur, o ministro agradeceu as homenagens planejadas para celebrar os 30 anos magníficos no STF, mas pediu que fosse poupado. O motivo é bem simples: ele não acha que fez nada além da obrigação. Mas fez.

Aos amigos mais próximos que insistiram, ele foi firme. "Prefiro passar esta data em silêncio, transitar por ela em ‘low profile’. É assim que tenho me comportado durante toda a minha vida. Sentir-me-ei melhor assim", disse. 

No dia a dia, Celso, o decano da corte, é conhecido pelo seu jeito sereno e calmo. Costuma produzir votos alentados e cheios de citações históricas com pensadores de várias épocas, além de citar exemplos de jurisprudências diversas pelo mundo afora. Cada voto é uma tese de doutorado. São reproduzidos em milhares de petições e em centenas de milhares de decisões.

Os votos do ministro são extensos e exaustivamente fundamentados. Característica que os faz pedagógicos. Celso de Mello, se não esgota o assunto, precipita a análise do mérito em liminares e despachos que já passam a servir como referência para petições e decisões.

U.Dettmar/SCO/STF
O ministro tem uma jornada de 14 horas por dia. O hábito de trabalhar até tarde começou já nos primeiros anos de Ministério Público.
U.Dettmar/SCO/STF

O ministro tem uma jornada de 14 horas de trabalho por dia. O hábito de trabalhar até tarde começou já nos primeiros anos de Ministério Público. Nos anos de 1970, dificilmente saía da 4ª Promotoria de Osasco antes das 23 horas. E foi de lá que enfrentou e subjugou o temido secretário de Segurança Pública, o coronel Erasmo Dias, quando trabalhava junto à Vara da Corregedoria da Polícia e dos Presídios da cidade da Grande São Paulo. Foi o primeiro Bolsonaro no seu caminho, mas não o último.

Por suas ideias progressistas e sua visão de que o Judiciário deve protagonizar a concretização dos direitos constitucionais, Celso de Mello sofreu resistência na presidência do Supremo. Aos 51 anos, foi o mais jovem ministro a presidir a Corte. Não encontrou a mesma receptividade para fazer mudanças e racionalizar o processo que encontraram os presidentes a partir de Nelson Jobim. Apesar disso, dirigiu o Supremo com a mesma determinação que imprime em seus votos, com os destaques em negrito e sublinhado.

Foi difícil dormir no apartamento em que sempre viveu quando juízes e suas mulheres foram bater panelas à frente do prédio para pressioná-lo para pedir aumentos salariais. Ele achava isso uma bobagem diante dos problemas que o país enfrentava. A magistratura não o entendia.

Rotulado pela Garantia
Celso ganhou o rótulo de “garantista”, por defender que condenados possam recorrer em liberdade até o último recurso judicial. Ele é contrário à jurisprudência atual do tribunal, que determina a prisão depois da condenação confirmada por um tribunal de segunda instância. Para ele, a decisão é “esdrúxula” e “um retrocesso de direito fundamental”. 

Com sua visão vanguardista, o ministro também é responsável por significativos avanços no sentido de se admitir a intervenção de terceiros em processos de interesse geral. Quando o Supremo ainda engatinhava na aceitação da figura do Amicus Curiae, o ministro já desfiava argumentos a favor da participação de interessados na causa que não são partes no processo.

Spacca
Neste ano de 2019, cheio de desafios políticos e retrocessos, Celso de Mello tem deixado claro que age por coerência legalista, em nome da reafirmação de sua trajetória e defesa do Judiciário.

Quando fez 20 anos de corte, o decano cunhou a expressão “jurisprudência das liberdades” para identificar o movimento que o Supremo vem afirmando nos últimos dez anos. Fazem parte dessa coleção de julgados decisões como a que garante que ninguém seja jogado no cárcere sem condenação definitiva. Ou a que define que o cidadão não deve ser algemado quando não apresenta qualquer tipo de resistência ou quando não representa risco de fuga ou ameaça à segurança pública.

Celso mostrou não ter medo de enfrentar a dita “voz das ruas” para fazer respeitar a Constituição. Por exemplo, muito antes de o plenário do Supremo discutir o Habeas Corpus concedido a Daniel Dantas e as decisões do juiz Fausto Martin De Sanctis no caso, o ministro já havia travado uma pequena batalha com o magistrado, para que fossem respeitadas as determinações do Supremo e os preâmbulos da Constituição Federal. 

Neste ano de 2019, cheio de desafios políticos e retrocessos, Celso de Mello tem deixado claro que age por coerência legalista, em nome da reafirmação de sua trajetória e defesa do Judiciário.

Ao longo dos últimos meses, o decano se tornou o principal porta-voz do Supremo em defesa das liberdades individuais e de contraponto às posições do governo. Alvo de um pedido de impeachment após votar para enquadrar a homofobia como crime de racismo, Celso de Mello disse que a Corte não se intimida com manifestações nas ruas ou ameaças de parlamentares.

Celso de Mello é assim. Para os mais chegados, empenhado e corajoso. Da parte de todos os brasileiros, o agradecimento por defender direitos com magnificência, senhor ministro do Supremo Tribunal Federal.

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