Direitos Fundamentais

Os direitos e deveres fundamentais na Constituição da República de Weimar

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16 de agosto de 2019, 8h41

Que a mundialmente conhecida, citada e estudada Constituição da primeira República Democrática da Alemanha, foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte reunida na cidade de Weimar (por isso, a designação Weimarer Reichsverfassung — Constituição Imperial de Weimar, doravante apenas CW) em 11 de agosto de 1919, precisamente há cem anos, é fato que foi amplamente difundido pela ConJur ao longo da última semana mediante um conjunto notável de notícias, textos e entrevistas, o que por si só já é merecedor de efusivos aplausos. As razões de tamanho investimento de tempo e espaço físico são várias e podem ser, numa primeira aproximação tributadas, entre outros aspectos, ao fato de que se tratou a primeira constituição democrática alemã, mas em especial por ter sido uma das primeiras e seguramente a mais importante (pelo seu conteúdo e influência) Constituição de um Estado Democrático e Social de Direito de sua época, dotada de um generoso e diversificado catálogo de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, cujo legado para o constitucionalismo social subsequente é incontestável, ainda que se possa discutir qual a sua extensão.

No que toca a sua repercussão para o constitucionalismo brasileiro, a CW foi objeto de significativa consideração no seio da Assembleia Constituinte que aprovou e promulgou a Constituição de 16.07.1934, primeira a aderir ao modelo de um Estado Social e Democrático de Direito. Todavia, é preciso sublinhar, desde logo, que a República de Weimar — como é amplamente conhecido — não logrou dar conta no sentido de enfrentar e superar os imensos problemas econômicos e políticos decorrentes da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e, para além disso, do contexto mais alargado de exacerbação dos extremismos políticos, o impacto da Revolução Bolchevista na Rússia, a quebra da bolsa de Nova Iorque, dentre outros acontecimentos. Isso, contudo, não foi o suficiente para ofuscar a sua importância e aura emblemática, nem que o seja como um fecundo laboratório constitucional, com destaque para os direitos fundamentais.

Integrada por ao todo 181 artigos, dispondo, na esteira da tradição do constitucionalismo moderno inaugurada ao final do Século XVIII, sobre a organização do Estado, a Forma e o Sistema de Governo, as funções dos clássicos três Poderes/Funções estatais, entre outros, a segunda seção foi dedicada ao catálogo de direitos e deveres fundamentais (artigos 109 a 149), destacando-se uma terceira seção contendo dispositivos acerca de conteúdos bastante diferenciados, mas que também, em grande medida, guardam relação com os direitos fundamentais, ademais de formatarem elementos importantes para a configuração de um Estado Social de Direito. Exatamente pela riqueza e modernidade, ademais de seu cunho inovador, é que soa correta a afirmação de que a ordem constitucional de Weimar se caracterizava como sendo uma “República de Direitos Fundamentais” [1].

No que diz com os direitos convencionalmente chamados de civis e políticos, tanto direitos de liberdade, como de igualdade e direitos políticos, incluindo a livre associação partidária, foram contemplados, mas também um conjunto de direitos sociais e de deveres fundamentais, a serem brevemente examinados na sequência. A liberdade pessoal, incluindo a de ir e vir, foi amplamente assegurada pela CW, podendo sua liberdade ser restrita ou subtraída pelo poder público apenas com base em lei. Além disso, mais tardar no dia seguinte ao da prisão, o preso deveria ser comunicado a respeito de qual a autoridade responsável pela prisão e dos seus motivos de seu decreto, assegurando-se, ainda, sem demora, o seu direito de apresentar suas respectivas objeções.

No concernente às liberdades comunicativas, a CW assegurou o direito de todos os alemães, nos limites das leis gerais, à livre expressão por qualquer meio, com vedação expressa da censura, excepcionando-se as obras cinematográficas, para as quais poderiam ser editadas prescrições distintas. A liberdade de expressão não pode ser constrangida por conta de alguma relação de emprego ou trabalho, vedada qualquer discriminação em virtude do exercício de tal liberdade.

Da mesma forma, garantiu-se a liberdade de reunião sem prévia autorização ou comunicação, mas reuniões promovidas a céu aberto poderiam ser, mediante previsão legal, condicionadas à comunicação do poder público. Igualmente assegurada foi a liberdade de associação para consecução de fins que não contrariassem a legislação penal. Outrossim, garantiu-se o direito à livre escolha e exercício profissional, a liberdade de associação para a manutenção e melhora do trabalho e das condições econômicas, declarando-se ilegais todos os acordos e medidas que tendessem a restringir ou obstruir essa liberdade.

Afirmou-se a inviolabilidade do domicílio, com exceções dependentes de lei. À lista se acrescenta a inviolabilidade do segredo de correspondência, postal, telegráfico e telefônico, com exceções também remetidas à lei. De igual modo, asseverou-se o princípio da legalidade em matéria penal, no sentido de que não se poderia apenar uma conduta sem prévia tipificação e previsão da pena.

O princípio da igualdade foi incorporado ao texto constitucional com particular ênfase, dispondo-se que os alemães eram iguais perante a lei e que homens e mulheres compartilhavam dos mesmos direitos e obrigações. Além disso, aboliram-se os privilégios decorrentes de nascimento e de posição social. Ainda nesse contexto, sublinha-se que a CW assegurava o direito de igual acesso de todos os alemães, observados os requisitos legais e de acordo com a sua qualificação, aos cargos públicos, afastadas todas as normas em sentido distinto destinadas às mulheres.

Na seara dos direitos políticos, foi assegurada o voto livre e secreto, recordando-se que o sufrágio era universal e assegurado igualmente a homens e mulheres com vinte anos completos de vida, nos termos do Decreto que regulamentou as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, editado em 30.11.18. Ainda nesse contexto, importa referir o direito (de exercício individual ou coletivo) assegurado a todos os alemães de dirigir petições ou reclamações às repartições públicas competentes e ao Parlamento.

A decisão por um Estado Social (na perspectiva de uma socialdemocracia), por sua vez, que já havia sido antecipada no anteprojeto de Hugo Preuss, tinha por escopo tanto combater o liberalismo econômico como de atender aos reclamos da classe trabalhadora e conter os avanços do socialismo e mesmo do comunismo, que marcaram o período da assim chamada revolução alemã e que seguiram se digladiando, em maior ou menor medida, até a tomada do poder pelos nacional-socialistas, quando toda e qualquer possibilidade de defesa do socialismo foi radicalmente reprimida.

De cimeira importância foi a inserção de um conjunto expressivo de direitos econômicos e sociais, ademais de diversos princípios diretivos da ordem social e econômica. Assim, por exemplo, a todo alemão deveria ser garantida oportunidade para ganho de subsistência pelo trabalho. Na hipótese de que não se encontrasse trabalho necessário e adequado, uma assistência seria garantida pelo poder público.

No concernente às relações de trabalho e direitos e obrigações de trabalhadores e empregadores/empreendedores, destacam-se, ainda — entre outros — o direito de livre organização e associação dos trabalhadores para todas as profissões, sendo ilícitas todas as medidas e acordos destinados ao seu impedimento ou restrição. Apontava-se para fórmulas de cooperação entre patrões e empregados, em igualdade de direitos, na regulação de salários e condições de trabalho, no contexto de desenvolvimento geral da economia e das forças produtivas, reconhecendo-se os acordos feitos, por ambas associações, de capital e de trabalho.

Dentre os princípios gerais da ordem econômica, seguramente o mais célebre, em especial para o constitucionalismo brasileiro (de 1934 até os tempos atuais) é o de que a organização da vida econômica deveria atender aos princípios da justiça, observando e garantindo para todos uma vida humana digna de ser vivida, limites no contexto dos quais se garantiria a liberdade econômica individual. Tal disposição de abertura do capítulo da ordem constitucional econômica é tida como a expressão do programa do Estado social da República de Weimar, porquanto a CW não objetiva implementar um “socialismo modificado pela economia de mercado, mas sim, uma economia de mercado modificada pelo socialismo” [2].

O sentido de solidariedade social que se destaca na CW se manifestou mediante regra emblemática, dispondo que a distribuição do uso da terra seria supervisionada pelo Estado de modo que abusos fossem prevenidos, e com o objetivo de se garantir a todo alemão uma habitação saudável, bem como a todas as famílias alemães, particularmente aquelas com muitos filhos, uma habitação que atendam às suas necessidades.

Particularmente emblemática era a afirmação, inscrita solenemente na CW, que “a propriedade obriga (Eigentum verpflichtet) e sua fruição deve estar também à serviço do melhor interesse comunitário. Com isso, em sintonia com o acima referido artigo inaugural da ordem econômica, a propriedade adquiriu uma indissociável dimensão social e solidária, funcionalizada pelo interesse coletivo da comunidade, o que foi posteriormente recepcionado pela Lei Fundamental de Bonn, de 1949. Além do mais, tratava-se de orientação para que, no caso concreto, a Administração e o Poder Judiciário, realizassem uma ponderação entre o interesse individual do proprietário e o da coletividade [3].

Ainda que a CW não tivesse consagrado direta e autonomamente os direitos à saúde, previdência e assistência social, na tradição inaugurada durante o Império, por iniciativa de Otto von Bismarck, mas de modo mais — ao menos no plano constitucional — abrangente, um sistema compreensivo de seguridade social destinado à preservação da saúde, da capacidade de trabalho, à proteção da maternidade (esta última já prevista, inclusive na forma de um direito das mães à auxílio material do poder público no artigo 119) e prevenção das consequências econômicas da idade, fraqueza e acidentes da vida, sistema que contava com a participação dos segurados.

Quanto ao problema da eficácia das normas de direitos fundamentais da CF, há que considerar que o catálogo de direitos weimariano era composto por um leque diferenciado de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, positivados mediante preceitos de configuração e estrutura normativa bastante heterogênea, correspondendo, de tal sorte, a diferentes níveis de eficácia e possibilidade de efetivação mediante recurso ao Poder Judiciário.

Assim, se os direitos civis e políticos, os assim chamados direitos de cunho liberal clássico, eram — em regra — veiculados por normas diretamente aplicáveis, o que já tinha sido sublinhado por ocasião dos debates na Assembleia Nacional, não podendo ser reduzidas a condição de meras normas programáticas, outros direitos, à medida em que veiculados mediante normas definidoras de fins e tarefas estatais e/ou remetendo expressamente à concretização pelo legislador, operavam, no plano constitucional, como diretivas e orientações e não como direitos subjetivos de fruição imediata aptos a serem, desde lodo, deduzidos em juízo [4]. Havia, contudo, direitos cujo enquadramento em um dos dois grupos não se revelava tão evidente, destacando-se, nesse contexto, uma tendência, no seio da doutrina mais influente, de privilegiar uma interpretação mais amiga da máxima eficácia possível das normas de direitos fundamentais, o que também se verificou — embora não talvez com a mesma intensidade — na esfera jurisprudencial, em especial na prática decisória do Reichsgericht [5].

Note-se, ainda, que à vista da grave crise econômica e instabilidade social e política, os direitos fundamentais à época de Weimar vivenciaram uma forte crise de inefetividade, o que, como não é difícil de se inferir, se deu de modo mais significativo com os direitos sociais e econômicos, os quais, de acordo com as palavras de Eichenhofer, operavam — em regra — como ordens de legislar que em parte não chegaram a ser implementas, seja em virtude da crise econômica e instabilidade social, seja por causa da precoce perda da maioria parlamentar da coalisão que aprovou a CW e assumiu na primeira legislatura e Governo, de modo que a eficácia/efetividade dos direitos sociais acabava por depender e se confundir com a prática legislativa [6].

Isso — a dependência da concretização de direitos sociais de uma atuação legislativa — não poderia ser, contudo, tido como algo em si necessariamente, em toda sua extensão, negativo. Aliás, cuida-se do modelo absolutamente predominante no direito constitucional contemporâneo, pelo menos no sentido do não reconhecimento de direitos subjetivos a prestações sociais com base apenas na sua previsão no plano constitucional, como dão conta, entre outros, os casos de Portugal e da Espanha, salvo no que se trata das assim chamadas liberdades e garantias dos trabalhadores e, eventualmente, algumas exceções no domínio do assim chamado mínimo existencial ou, como na Espanha, do direito à educação.

Por outro lado, há que ter presente que a ausência de um controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, ainda que limitado à fiscalização da ação legislativa (e não dos casos de omissão, que correspondem ao problema acima apontado) sequer permitia que se pudesse impugnar (e declarar) a inconstitucionalidade de leis dispondo de modo contrário ao constitucionalmente estabelecido.

Independentemente dessa circunstância, os direitos civis e políticos, em termos gerais, eram, como já visto, reconhecidos como tendo a normatividade suficiente para ensejarem sua imediata realização pelo Poder Judiciário, ainda que inexistente uma jurisdição constitucional no sentido próprio do termo, com competências expressas para o controle, mesmo que difuso e incidental, de constitucionalidade.

Cintes das suas não poucas fragilidades (em muito agudizadas pelo contexto social, político e econômico instável e polarizado), é possível afirmar que a CW assumiu a condição de texto constitucional inovador e mesmo fundante no que diz com o constitucionalismo social, à medida em que positivou intensa agenda de direitos fundamentais, especialmente quanto aos direitos sociais. Como já demonstrado, a CW tentou acenar com um compromisso possível entre elementos liberais e sociais, marcado por intensa preocupação para com trabalhadores e hipossuficientes e com o seu foco (sem precedentes e paralelos na época) no interesse da coletividade e mesmo a sua proeminência, em vários (como no caso das dimensões do princípio da igualdade, da propriedade e dos deveres fundamentais, entre outros) em relação aos direitos e interesses individuais [7].

Assim, sem que se vá aqui promover uma avaliação minuciosa de seu significado e de sua atualidade, é de se pontuar que o baixo nível de efetividade da CW no domínio dos direitos fundamentais (mas não apenas nessa seara) não pode ser atribuído apenas à sua generosidade em matéria de direitos sociais, econômicos e culturais e repleto de normas de cunho dirigente e mesmo de natureza meramente programática, mas sim às circunstâncias peculiares de seu contexto. Sabe-se — e isso não apresenta nada de novo, aliás, é mesmo quase banal — que o caráter mais ou menos dirigente de uma ordem constitucional implica, para a afirmação de sua normatividade em concreto, de um concerto entre os atores estatais, de uma sólida base de legitimação política afinada com o espírito da constituição e de condições econômicas, sociais e culturais favoráveis.

Mas, mesmo à vista do exposto, os direitos fundamentais da CW — já como projeto constituinte — também já terão cumprido seu papel pelo simples fato de terem servido de inspiração direta e indireta para outras ordens constitucionais, no sentido da formatação de um Estado Social e Democrático de Direito, como possível resposta aos extremos de uma coletivização aguda e funcionalizante do indivíduo e, por outro lado, de uma economia livre de mercado descompromissada com padrões decentes de igualdade e liberdade material.

Que a transformação desse ideal em realidade não se faz apenas com textos normativos e sofisticadas doutrinas não é preciso repisar, como já referido, o que em hipótese alguma significa que a formatação de um marco jurídico-constitucional a guiar as opções políticas e seu controle e a criação e configuração adequada de um esquema organizacional e procedimental sólido e eficaz não sigam sendo elementos centrais e estruturantes para a realização do compromisso constituinte.


1 Cf. DREIER, Horst. Grundrechtsrepublik Weimar, in: DREIER, Horst; WALDHOFF, Christian (Ed.), Das Wagnis der Demokratie. Eine Anatomie der Weimarer Reichsverfassung, 2ª ed., München: C.h. Beck, 2018, p. 175 e ss.

2 Cf. HUBER, Ernst-Rudolf. Deutsche Verfassungsgeschichte, Vol. 6, 1981, p. 1032, apud EICHENHOFER, Eberhard. Soziale Grundrechte – verlässliche Rechte? In: 80 Jahre Weimarer Reichsverfassung – was ist geblieben?, op. cit., p. 213 (para conferir com o original em alemão, segue transcrição literal da citação: “Die Weimarer Reichsverfassung zielte nicht auf einen marktwirtschaftlich modifizierten Sozialismus, sondern auf eine sozialstaatlich modifizierte Marktwirtschaft”.

3 Cf. STOLLEIS, Michael. Die soziale Programmatik der Weimarer Reichsverfassung, op. cit., p. 207.

4 Cf. novamente DREIER, Horst. Grundrechtsrepublik Weimar, cit., p. 176 e ss.

5 Cf. mais uma vez DREIER, Horst. Grundrechtsrepublik Weimar, cit., p. 185.

6 Cf. EICHENHOFER, Eberhard. Soziale Grundrechte – verlässliche Rechte?, op. cit., p. 214.

7 Cf. STOLLEIS, Michael. Die soziale Programmatik der Weimarer Reichsverfassung, op. cit., p. 200-208.

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