Opinião

A EC 100/2019 e a importância do controle interno no planejamento orçamentário

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

15 de agosto de 2019, 6h24

A Emenda Constitucional 100/2019 chamou bastante atenção da comunidade do Direito Financeiro em decorrência da positivação do orçamento impositivo, o que para alguns garante maior representatividade política na execução orçamentária e para outros enfraquece o protagonismo do Poder Executivo e relação à destinação de verbas.

Ocorre que aquela reforma constitucional a qual modificou substancialmente a Constituição financeira[1], parte da Constituição que aborda especificamente o Direito Financeiro e o processo de planejamento orçamentário e que envolve os artigos 163 a 169, inseriu como diretriz constitucional outro assunto já então positivado no artigo 48, alínea “a” da Lei 4.320/1964[2]: a execução do planejamento orçamentário como obrigação da administração pública.

Com a promulgação daquela emenda, eis agora o que prescreve o recente artigo 165, parágrafo 10 da Constituição Federal: “A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessárias, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.

Positivar aquela determinação é um indicativo de que o legislador constituinte reconhece que a execução orçamentária é destoante do seu planejamento, o que pode provocar uma crise de representatividade do poder político constituído, além de comprovar que as leis orçamentárias padecem de eficácia e a obrigatoriedade quanto ao “dever de executar as programações orçamentárias” é nítida nesse sentido.

Norberto Bobbio tem um livro chamado Teoria da Norma Jurídica[3], onde apresenta três critérios de valoração da norma jurídica: justiça, validade e eficácia, e uma das suas reflexões é que uma norma pode ser válida sem ser eficaz. É o caso das leis orçamentárias que não são executadas conforme o planejado.

Utilizando o raciocínio de Bobbio, é possível afirmar que o legislador constituinte via a norma orçamentária como válida e ineficaz (devidamente aprovada e não necessariamente cumprida na íntegra), e, com a promulgação da Emenda Constitucional 100/2019, houve um avanço positivo que será palco para um embate político.

Inclusive, a mudança constitucional provoca um convite ao controle interno, externo e social no sentido de que as destinações financeiras devem ser realizadas conforme a diretriz orçamentária previamente planejada, e, para isso, a execução orçamentária deve ser auditada em relação ao cumprimento de metas, como também avaliação de resultados, nos termos do que já é prescrito no artigo 74, incisos I e II da Constituição Federal.

O devido processo legal orçamentário é espaço para o diálogo institucional entre o Poder Executivo, responsável por compilar as propostas orçamentárias dos Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos, e o Poder Legislativo, a quem compete discutir e aprovar o orçamento então enviado[4].

Em relação à prestação de políticas públicas, muito embora o Poder Executivo seja o principal responsável por direcionar o seu custeio, o Legislativo é quem determina a autorização orçamentária e estabelece, de forma democrática, por meio da definição das ações e programas, os objetivos e metas que devem ser efetivadas pelo Executivo, buscando atender aos interesses da população de cada comunidade quanto ao desenvolvimento econômico e redução das desigualdades inter-regionais[5].

Se por um lado a atitude de governo do Poder Executivo implica em identificar, interpretar e dar organicidade às demandas, postulações e interesses predominantes da sociedade no processo de estruturação orçamentária, por outro o parlamento é o órgão máximo de representação política da sociedade, local em que são tomadas as grandes decisões das quais devem decorrer os objetivos constitucionais[6].

Uma vez aprovado, o orçamento deve o mesmo ser cumprido, salvo algumas intempéries em relação à arrecadação de receita e destinação financeira para prestações inesperadas de políticas públicas como é o caso, por exemplo, das decisões judiciais.

A frustração de receitas possibilita o contingenciamento orçamentário e a limitação da movimentação financeira, cuja forma deve ser estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e, diante daquele cenário, o planejamento pode restar prejudicado, o que causa um estado de surpresa orçamentária: a não aplicação de recursos conforme previsto por uma causa não prevista durante o exercício financeiro.

Mesmo diante disso, nos termos do artigo 165, parágrafo 10 da Constituição Federal, deve o gestor público adotar os meios e as medidas necessárias para garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, o que reforça a importância de se executar o que realmente foi planejado.

Reflitamos a um primeiro momento sobre as eventuais intempéries na arrecadação de receitas com o seguinte questionamento: como funciona o planejamento de arrecadação de receitas?

Pelo que determina a Lei de Responsabilidade Fiscal, as previsões de receita devem observar normas técnicas e legais e considerar variação do índice de preços, crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante “e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas”[7].

É incontroverso o fato de que o Direito Financeiro deve dialogar com a economia, o que faz do orçamento público um assunto multidisciplinar, e, uma vez estabelecido o orçamento para o ano vindouro, os órgãos que compõem a organização administrativa passam a planejar as suas atividades, o que inclui a realização de licitações, que são ferramentas pelas quais as atividades estatais se desenvolvem.

Ocorre que uma vez celebrado um contrato administrativo, mesmo com a prévia dotação orçamentária[8], por vezes uma falha na execução do planejamento administrativo ou orçamentário pode ocasionar na paralisação de um serviço ou até mesmo de uma obra pública.

Inclusive, a título de informação, recentemente a Associação de Membros dos Tribunais de Contas (Atricon), o Tribunal de Contas da União e o Conselho Nacional de Justiça demonstraram preocupação em relação à existência de obras inacabadas[9].

Oportuno informar que o assunto “obras inacabadas” já foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que concluiu o seu trabalho no ano de 2001 e apontou algumas diretrizes para solucionar o problema[10], sendo uma delas o fortalecimento do controle interno.

O controle interno é responsável pela fiscalização preventiva, tendo em vista que possui funções consultivas e de assessoramento destinadas a proporcionar um planejamento eficiente à despesa e, por via de consequência, garantir a qualidade do gasto público[11].

A outra intempérie que pode obstar a execução orçamentária conforme planejado é o estado de surpresa orçamentária, situação característica de quando o orçamento é devidamente planejado e há um fator externo que impacta diretamente na alocação de verbas de maneira inesperada durante um exercício financeiro, como é o caso, por exemplo, de uma decisão judicial.

No exercício da sua função constitucional de assessoramento às ações administrativas, o sistema de controle interno deve monitorar, anualmente, o quanto de orçamento foi deslocado para o cumprimento das decisões judiciais e pode até, a título de proposta argumentativa, para evitar o estado de surpresa orçamentária no exercício vindouro, a criação de um fundo[12] cuja finalidade seja o cumprimento de decisões judiciais.

Dessa forma, como o conteúdo descritivo do orçamento público diz respeito à autorização de gastos em que o gestor público fixa a despesa concomitantemente à projeção da receita, pelo princípio da sinceridade orçamentária[13], a projeção da receita deve comportar a fixação da despesa, o que quer dizer, em termos populares, que a “despesa tem que caber dentro da receita”.

Não é dispendioso propor que o planejamento orçamentário e a projeção da receita sejam validados pelo controle interno antes da submissão ao legislativo, tendo em vista que compete àquela estrutura orgânica avaliar os resultados quanto à eficácia e eficiência da gestão orçamentária e financeira, nos termos do artigo 74, inciso II da Constituição Federal.

O controle interno possui algumas funções institucionais, tais como assessoramento, controle e consultiva, e a de assessoramento deve sempre ser prestigiada quando do processo de planejamento orçamentário, antes do envio da proposta orçamentária ao parlamento.

Pelo menos em tese, em relação ao exercício anterior, ele possui ciência se a alocação orçamentária teve a sua respectiva destinação financeira, bem como se atingiu os resultados esperados; caso contrário, deve apontar falhas no processo de execução do orçamento no sentido de auxiliar a gestão a otimizar a utilização de verbas.

Dessa forma, quando a Emenda 100/2019 positiva a obrigatoriedade de se executar o que é planejado, salvo algumas intempéries, reforça a obrigação da transparência e da sinceridade na gestão fiscal, prestigia o exercício da democracia representativa através do parlamento e fomenta a democracia participativa por intermédio do controle social.

Orçamento aprovado deve ser executado, e com essa imposição constitucional o protagonismo estratégico do sistema de controle interno no processo de planejamento orçamentário é realçado.

Em seu novo papel institucional imposto pelo artigo 165, parágrafo 10 da Constituição Federal, positivado pela Emenda Constitucional 100/2019, o controle interno deve ter em pauta um estudo detalhado de uma lei orçamentária que possui um caráter estratégico: a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Isso porque, por imposição da LRF, na LDO devem ser prescritas normas pertinentes ao controle de custos e à avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos.

Se na LDO há parâmetros de avaliação da execução orçamentária, logo, o desempenho da mesma deve ser levado em consideração na fase preparatória de planejamento administrativo.

Assim, como a LDO é um plano prévio, fundado em considerações econômicas e sociais, para utilização na elaboração ulterior da proposta orçamentária[14], deve ser levada em consideração quando da projeção orçamentária e até mesmo avaliação do cumprimento de metas de arrecadação previamente estabelecidas.

Por fim, para que a administração pública execute as programações orçamentárias de acordo com o orçamento previamente aprovado, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, adotando os meios e as medidas necessárias, nos termos impostos pela Emenda Constitucional 100/2019, é de fundamental importância o funcionamento protagonista do controle interno.


Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Edipro. 3ª edição. Bauru/SP: 2005.
CAMPOS, Luciana Ribeiro. Direito Orçamentário em busca da sustentabilidade: do planejamento à execução orçamentária.
CARVALHO, André Castro. CONTI, José Maurício. O Controle Interno na Administração Pública: Qualidade do Gasto Público e Responsabilidade Fiscal. Revista Direito Público, v. 8, n. 37, abr. 2012. Disponível em <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/1845/1028>.
MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil: devido processo orçamentário e democracia. Editora Renovar. Rio de Janeiro/RJ: 2010.
SANTOS, Adiel Lopes dos. Orçamento em discussão. Caráter da Lei Orçamentária Anual e suas implicações no equilíbrio de força entre os Poderes Executivo e Legislativo: caráter da lei orçamentária anual e suas implicações no equilíbrio de força entre os Poderes Executivo e Legislativo. BRASIL, Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal. Brasília/DF: 2016. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518801>.
TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro. Teoria da Constituição Financeira. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo/SP: 2014.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. Editora Renovar. 3ª edição. Rio de Janeiro/RJ: 2008.


[1] TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro. Teoria da Constituição Financeira. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo/SP: 2014.
[2] Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
[3] BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Edipro. 3ª edição. Bauru/SP: 2005.
[4] MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil: devido processo orçamentário e democracia. Editora Renovar. Rio de Janeiro/RJ: 2010.
[5] SANTOS, Adiel Lopes dos. Orçamento em discussão. Caráter da Lei Orçamentária Anual e suas implicações no equilíbrio de força entre os Poderes Executivo e Legislativo: caráter da lei orçamentária anual e suas implicações no equilíbrio de força entre os Poderes Executivo e Legislativo. BRASIL, Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal. Brasília/DF: 2016. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518801>, acesso em 16/7/2019.
[6] JUCÁ, Francisco Pedro. Finanças Públicas e Democracia. Editora Atlas. São Paulo/SP: 2013.
[7] Art. 12.
[8] Art. 7º, §2º, inciso II da Lei de Licitações.
[9] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=415642, acesso em 16/7/2019.
[10] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/51-legislatura/cpiobras/relatoriofinal.pdf, acesso em 16/7/2019.
[11] CARVALHO, André Castro. CONTI, José Maurício. O Controle Interno na Administração Pública: Qualidade do Gasto Público e Responsabilidade Fiscal. Revista Direito Público, v. 8, n. 37, abr. 2012. Disponível em https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/1845/1028, acesso em 16/7/2019.
[12] Segundo o art. 71 da Lei 4.320/1964 “Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”.
[13] CAMPOS, Luciana Ribeiro. Direito Orçamentário em busca da sustentabilidade: do planejamento à execução orçamentária.
[14] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Volume V. O Orçamento na Constituição. Editora Renovar. 3ª edição. Rio de Janeiro/RJ: 2008.

Autores

  • Brave

    é advogado, professor universitário, mestre em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e especialista em Direito Constitucional pela mesma instituição.

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