Direito em Transe

Os crimes do AraraquaraGate: parte II, Glenn e os jornalistas

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

15 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
Em continuação ao último texto na coluna, em que discutimos os eventuais crimes dos Araraquarahackers, passamos a analisar a conduta de outros personagens do AraraquaGate.

Comete crime aquele que recebe as informações obtidas nos celulares ilegalmente invadidos pelos Araraquaquarahackers.

Sustentei no primeiro texto dessa série que o fato típico aplicável à invasão do celular é o tipo do artigo 154-A do Código Penal que criminaliza, no que interessa ao caso, a invasão de dispositivo informático alheio, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, desde que presente a finalidade de obter dados ou informações sem autorização do titular do referido dispositivo.

Logo, as informações assim obtidas são produto de crime.

Imaginemos – e tudo aponta que tenha sido mesmo assim – que tal produto tenha recebido (leia-se, gratuitamente) pelo Intercept.

O artigo 154-A não criminaliza o recebimento do conteúdo hackeado; o Código Penal criminaliza, em síntese, dois grupos de hipóteses de “recebimento”: de vantagem indevida por funcionário público (tipos contra a administração pública) e de produtos do crime.

Fundamentalmente, receber coisa que saiba ser produto de crime. Cuida-se do delito de receptação, delito apenado com reclusão de 1 a 4 anos, e multa. Admite até uma modalidade tida como culposa, para quando, simplificadamente, o recipiente não saiba da origem ilícita, mas deveria desconfiar de referida origem.

Cometeu Glenn Greenwald, do Intercept, o referido delito?

A resposta é negativa.

Primeiramente, o delito de receptação tem como bem jurídico protegido o patrimônio. Analisando bem, essa modalidade do crime de receptação criminaliza um fato que, a rigor, não seria punido pelas regras gerais do Código Penal. Explico: quando aquele que ilicitamente obteve uma coisa (pela via do furto, do roubo etc.) o bem jurídico patrimônio já foi lesionado; a disposição posterior da coisa seria exaurimento ou, genericamente, um pós-fato não punível. Excepcionalmente, essa conduta nova, posterior à ofensa ao bem jurídico patrimônio, foi alçada a um novo tipo penal, autônomo. Não por outro motivo que não comete receptação a disposição da coisa pelo mesmo agente que obteve a coisa ilícita.

Coisa, para fins de delitos patrimoniais, é qualquer bem revestido de significado econômico. Informações, conversas, são coisas?

Um bom modo de buscar uma resposta – daí a digressão quanto à natureza do delito de receptação – está no delito antecedente: sofreu lesão patrimonial o invadido pelos hackers?

A resposta é negativa. O tipo do artigo 154-A, a propósito, tutela a inviolabilidade dos segredos.

Do ponto de vista da tipicidade objetiva, portanto, não vislumbro receptação na ação do Intercept.

Mas e os tipos de violação de segredo ou de sigilo, já que é a lesão a esse bem jurídico que fez surgir o artigo 154-A?

Realmente, o Código Penal pune a divulgação de documento particular ou correspondência confidencial (artigo 153), de que é destinatário ou detentor, figuras que não se aplicam aos jornalistas do Intercept. Também o artigo 154 incrimina a violação de segredo profissional, tipo especial que demanda que o segredo tenha chegado ao conhecimento do autor em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Igualmente não é o caso; os interceptados, por óbvio, não levaram ao conhecimento dos conteúdos ao Glenn e seus colegas, muito menos por causa do papel que ocupam.[1]

As figuras dos artigos 153 e 154, além disso, demandam que a divulgação tenha se dado sem justa causa.

Essa locução invoca tema importante ao debate, muito embora a tipicidade objetiva, como já visto, sepultasse eventual caráter delitivo da conduta.

Como ponderar a liberdade de imprensa, de estatura constitucional, com esse tipo?

Parece haver dois caminhos dogmáticos mais diretos.

Sob a ótica da tipicidade conglobante – de que são principais defensores, entre nós, Nilo Batista e Zaffaroni – a eventual vedação típica deveria ser avaliada em conjunto (daí o conglobante) com o ordenamento jurídico como um todo. A rigor, nessa posição, só haveria um aparente conflito de sinais normativos; a liberdade de imprensa preponderaria sobre a proibição típica, dissolvendo o conflito, por ausência de pragma.

Outro caminho seria o da antijuridicidade, em que a liberdade de imprensa serviria como verdadeiro permissivo constitucional, ainda que não se tratasse de uma hipótese de justificante alistada no artigo 23 do Código Penal.

Questão mais instigante nasceria se os jornalistas tivessem pago pela fonte.

Se o pagamento se desse para que os celulares fossem interceptados, parece simples concluir pela autoria mediata do crime. Assim, os jornalistas se tornariam responsáveis pelo artigo 154-A, ao lado dos Araraquarahackers.

E se, todavia, tivessem comprado as informações depois das interceptações?

Prepondera no jornalismo não ser ética a prática de remunerar uma fonte.

Qual a relevância penal dessa infração ética?

Curiosamente, as informações passam a ter dimensão econômica e, assim, podem se aproximar do elemento típico “coisa”. De outro lado, não se observa, mesmo nessa hipótese, uma lesão ao patrimônio dos interceptados.

Assim, em que pese maior proximidade ao delito de interceptação, quando comparada à obtenção gratuita da fonte, ainda não se vislumbra, mesmo mediante remuneração, lesão ao bem jurídico patrimônio.

Pode-se arguir que isso estimularia a interceptação de aparelhos informáticos; em que pese a razoabilidade do argumento e da infração ética, do ponto de vista penal, não vislumbro maiores diferenças da obtenção gratuita de fonte jornalística.

No próximo texto, incursionaremos dos temas de potencial violação de sigilo do inquérito na possível ciência do Ministro Moro de detalhes da investigação o que representaria, do ponto de vista penal, movimento de destruir as informações ilicitamente colhidas pelos Araraquarahackers.

[1] Para evitar enfado do leitor, lembro que o crime de violação de sigilo funcional é próprio de funcionário público e, embora os jornalistas pudessem ser extranei a esse delito, não há notícia de que qualquer funcionário público (intraneus) tenha de qualquer forma participado da invasão dos aparelhos, ou da posterior divulgação. Ainda, há outras figuras que incriminam a divulgação de determinados conteúdos proibidos: cena de estupro e outras violadoras da liberdade sexual (art. 218-C do CP), daqueles sigilosos em concursos público e outros processos seletivos listados no tipo (art. 311-A do CP), de informação caluniosa (art. 138 do CP) ou de conteúdo de comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro (art. 151 do CP). Nenhuma hipótese aplicável aos fatos até aqui conhecidos do AraraquaraGate.

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