Opinião

Na busca pela liberdade econômica, governo esqueceu da segurança jurídica

Autores

  • Lígia Pinto Sica

    é professora e pesquisadora da FGV Direito SP e da Facamp além de doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP)

  • Heloisa Bianquini

    é mestranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da USP e graduada na mesma instituição; analista sênior de advocacy na ONG Grupo Mulheres do Brasil; e pesquisadora do Núcleo de Direito dos Negócios e do Grupo de Pesquisas em Direito Gênero e Identidade da FGV Direito SP.

13 de agosto de 2019, 15h07

Após passar pela Comissão Mista da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei de Conversão 17/2019, originado de modificações à Medida Provisória 881, aguarda votação pela Câmara, e há previsão que esta se dê nesta terça-feira (13/8). Em seu surgimento, a MP 881, também conhecida como "MP da liberdade econômica", recebeu inúmeros elogios por seu objetivo de desburocratizar a atividade econômica no país.

Há acordo em torno do diagnóstico de um problema: os custos que a burocracia acarreta à atuação empresarial são muito altos. Trata-se de consenso embasado em dados: o índice de liberdade econômica elaborado pela Heritage Foundation e pelo Wall Street Journal colocou o Brasil em 150º lugar. De acordo com o relatório Doing Business do Banco Mundial, o Brasil está na 109ª posição quanto à facilidade para fazer negócios.

Na Câmara, o texto da MP recebeu 301 emendas, das quais 126 foram acolhidas parcial ou totalmente. A redação do PLV tem sido alvo de críticas, principalmente por ter incluído alguns “jabutis” (emendas sem ligação com o tema da MP), como uma minirreforma trabalhista que muitos especialistas julgam que aumentará a vulnerabilidade do trabalhador brasileiro. Até que o PLV seja assinado por Bolsonaro, a MP continua em vigor.

O texto atualmente em tramitação altera diversas normas relativas à interpretação jurídica de contratos. Uma das novidades propostas pelo PLV é a criação de norma que estabelece que todas as regras de Direito Empresarial são subsidiárias ao avençado. O que se avença pode ser prioritário porque eventualmente mais específico. O específico torna desnecessário a observação do geral. Outra alteração relevante presente desde o texto original diz respeito justamente a essa questão dos parâmetros de experiência dos contratantes.

Há que se avaliar, porém, que as especificidades contratuais não podem ser contra legem nem atentar aos princípios gerais do Direito, como a boa-fé. A boa-fé nos contratos empresariais leva em consideração que os agentes são empresários, sujeitos que bem compreendem o que firmam e que sabem quais são as regras costumeiras dos seus mercados, preços, usos e costumes. Contratos empresariais não devem ser interpretados como outros que regem relações civis de indivíduos, porém, isso não quer dizer que não devem observar os ditames da legalidade e da boa-fé.

Além disso, trata-se de previsão contraditória, pois ela não deixa de ser uma regra de Direito Empresarial, sendo então igualmente subsidiária. É duvidoso como tais regras possam ser subsidiárias, dado que são constitutivas da formação de qualquer contrato empresarial.

Outra alteração relevante já presente no texto original da MP é a inclusão, no Código Civil, de dispositivo segundo o qual, nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria e a paridade dos contratantes. Deseja-se assim diminuir o paternalismo por parte do juiz na interpretação dos contratos empresariais, o que é positivo. Entretanto, a jurisprudência já havia consolidado o entendimento de que não se pode invocar a assimetria de poderes entre as partes para dispensar o cumprimento das obrigações avençadas.

Além disso, a consideração dessas assimetrias por parte do juiz é relevante para a verificação do cumprimento de deveres laterais derivados da boa-fé objetiva durante a negociação e execução do contrato. São deveres de cuidado, de cooperação, de prestar informações à outra parte, dentre outros. E há consenso no Direito Empresarial de que, quanto mais poderosa é uma das partes, mais exigível é o cumprimento desses deveres. Ou seja, a presunção de simetria pode prejudicar a aferição do cumprimento de obrigações laterais.

Dentre as modificações trazida pelo PLV, há ainda a determinação de que ninguém poderá se beneficiar de alegação de assimetria, disparidade ou vulnerabilidade caso, no momento do contrato, estivesse assistido por advogado de sua escolha. Novamente, resta a dúvida: como medir a extensão dos deveres de boa-fé em contratos empresariais assinados por advogados de ambas as partes, considerando que tais deveres são medidos de acordo com a distribuição de poder entre elas?

Outra mudança empreendida pelo PLV foi no artigo 421 do Código Civil, que dispõe que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Propõe-se a introdução de um novo princípio, o da “intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual”. No texto original da MP se afirmava que a intervenção mínima seria do Estado.

A intenção parece boa: novamente, a de evitar o paternalismo. Isto porque o princípio da função social do contrato foi muito usado, logo após seu surgimento, de forma pouco rigorosa em decisões que transgrediam a lógica do Direito Empresarial por tutelarem em excesso uma das partes do processo. Entretanto, a jurisprudência já lidou com esse problema e consolidou o entendimento de que não se deve, via de regra, dispensar uma das partes em um contrato empresarial de cumprir o avençado.

Hoje a função social do contrato serve, principalmente, para proteger terceiros de efeitos socialmente deletérios que uma relação contratual pode ter. Ignorando a jurisprudência, a MP buscou combater um entendimento que já é extremamente minoritário com a introdução de novo princípio. As consequências da mudança são incertas, pois o sentido do princípio recém-criado é pouco claro.

Instituir para fins de interpretação contratual a “intervenção mínima” parece ser uma contradição em termos. A Constituição determina que o juiz não pode se abster de julgar. Qualquer opção interpretativa — seja privilegiando a literalidade do contrato, seja uma interpretação mais finalística — tomada na decisão é uma “intervenção”, que legitima ou não as pretensões de cada uma das partes.

A MP realizou alteração também em outra norma do Código Civil. Segundo ela, a interpretação jurídica de cláusulas ambíguas ou contraditórias no contrato de adesão deve ser a mais favorável ao aderente. Isso faz sentido, pois esses contratos são marcados por certa disparidade de poder: neles, apenas uma das partes formula as cláusulas, e a outra não tem grande margem para negociação — como nos contratos de serviços de telefonia celular, por exemplo.

A partir da MP, contudo, a interpretação dos contratos empresariais que não são de adesão também deverá ser feita, em caso de dúvida, beneficiando a parte que não redigiu a cláusula controvertida. O problema é que o dispositivo dá valor exagerado à conduta dos contratantes na formulação do instrumento contratual. Nestes casos, costuma ser difícil identificar quem propôs cada cláusula, obrigando as partes a arquivar cada versão do contrato, o que vai contra a desburocratização almejada pela medida.

Cria-se também um incentivo à não negociação: afinal, sugerir uma cláusula poderá acarretar o custo de uma interpretação desfavorável. O problema é apontado pela economia comportamental: os vieses cognitivos de excessivo otimismo, falso consenso, bem como os custos inerentes à negociação impedem, frequentemente, uma alocação mais eficiente de riscos no contrato.

Os contratantes, por vezes pensando só na perspectiva de curto prazo, preferem deixar pontos controvertidos sem previsão, esperando que não surjam problemas durante a execução do contrato. Incentivos para não propor cláusulas sobre pontos controvertidos e assim deixar o contrato com graves lacunas — que precisarão ser supridas justamente pelo juiz — serão significativamente aumentados.

Outra novidade para a interpretação dos contratos empresariais é a utilização de termos da economia, como “alocação de riscos definida pelas partes” e “racionalidade econômica”. São elementos que poderão resultar em difíceis e longas controvérsias jurisprudenciais, por serem conceitos econômicos ainda não traduzidos em conceitos jurídicos na experiência nacional. Como serão interpretados pelos tribunais, se aprovado o PLV, é incerto — mas é provável que essa nova fonte de insegurança jurídica seja custosa às empresas.

Essas mudanças poderiam ser melhor debatidas se o governo tivesse optado por instituí-las via projeto de lei, e não medida provisória. A opção pela MP é pouco responsável, pois priva a comunidade jurídica e a sociedade do debate necessário a alterações desse porte. Afinal, as mudanças podem “caducar” se não forem votadas pelo parlamento no prazo legal, impondo uma velocidade de tramitação que impede discussões aprofundadas. O Código Civil que se pretende modificar foi debatido por pelo menos 18 anos antes de ser promulgado.

Tudo isso pode resultar justamente no elemento mais negativo para a liberdade econômica: a insegurança jurídica. Mudanças nas regras do jogo do mercado sempre acarretam custos regulatórios, seja pela reelaboração de contratos em atenção às novas normas, seja pela instabilidade inicial comum à recepção de novas leis e princípios pelos tribunais. Na ânsia de promover a liberdade econômica, o governo se esqueceu da responsabilidade em manter um ambiente institucional estável, que é igualmente essencial para o funcionamento do mercado.

Autores

  • é professora e pesquisadora da FGV Direito SP e da Facamp, além de doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP)

  • é mestranda em Sociologia do Direito na Universidade de São Paulo (USP), graduanda em Licence Droit Économie et Gestion mention Droit pela Université de Saint-Étienne (França) e graduada em Direito pela USP.

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