Opinião

Habeas Corpus coletivo e o exagerado rigorismo técnico-formal

Autor

  • Luis Victor Tebar Donegá

    é analista no Tribunal Superior Eleitoral pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC) e Direito da Proteção de Dados Pessoais pela FGV-SP.

13 de agosto de 2019, 6h48

O Supremo Tribunal Federal parece ter superado sua jurisprudência defensiva para aceitar o cabimento de Habeas Corpus coletivo no ordenamento jurídico brasileiro. Destaco os julgamentos recentes do HC 143.641/SP, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, e do HC 172.136/SP, de relatoria do ministro Celso de Mello.

Antes de tecer alguns breves comentários sobre esses dois importantes precedentes da suprema corte, pretendo aqui delimitar a natureza jurídica da proteção coletiva da liberdade de locomoção por meio do Habeas Corpus.

Sem delongas, é forçoso reconhecer que a liberdade de locomoção protegida no Habeas Corpus coletivo vai se inserir, sempre, na categoria dos direitos individuais homogêneos, não se confundindo com os direitos difusos e coletivos stricto sensu.

Em breve síntese, vale rememorar que os direitos difusos são os interesses transindividuais, de natureza indivisível, em que os titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Os direitos difusos, por serem entendidos como aqueles em que seus titulares são indetermináveis, pertencem a toda coletividade. São caracterizados pela alta abstração e grande conflituosidade interna. Temos como exemplos de direitos difusos o direito ao meio ambiente equilibrado e sadio, os direitos de proteção do consumidor contra a propaganda enganosa e a colocação no mercado de produtos nocivos à saúde e à segurança dos consumidores, entre outros.

Os direitos coletivos stricto sensu são os interesses transindividuais, de natureza indivisível, titularizado por grupo, classe, ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Nessa categoria de direitos coletivos, existe a possibilidade de identificação de seus titulares, que são organizados por uma classe e formalmente representados por um determinado organismo, a exemplo dos interesses tutelados pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Com efeito, a qualificação de determinados direitos como homogêneos tem por finalidade identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança e, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles.

Adverte, cirurgicamente, o saudoso professor Teori Albino Zavascki que “nos direitos individuais homogêneos a pluralidade não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autônomas, com titularidade própria”[1]. Em outras palavras, complementa que:

“os direitos homogêneos são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural (interesses difusos) ou da organização ou existência de uma relação jurídica-base (interesse coletivos stricto sensu), mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais. Quando se fala, pois, em “defesa coletiva” ou em “tutela coletiva” de direitos homogêneos, o que está qualificando como coletivo não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua defesa”[2].

Desse modo, a tutela coletiva do direto à liberdade de locomoção por meio do Habeas Corpus insere-se na categoria dos direitos individuais homogêneos, tendo em vista a característica instrumental da proteção que se almeja, porquanto o escopo é alcançar maior efetividade na prestação jurisdicional, proporcionando economia processual e principalmente o acesso à Justiça, de modo a evitar, inclusive, além do prejudicial assoberbamento do Poder Judiciário com inúmeras impetrações individuais, a prolação de decisões contraditórias em situações fáticas idênticas.

O eminente ministro Ricardo Lewandowski, portanto, foi assertivo em seu voto no julgamento do HC 143.641/SP, ao afirmar que “não se está mais diante de um grupo de pessoas indeterminadas e indetermináveis como assentou a PGR, mas em face de uma situação em que é possível discernir direitos individuais homogêneos, perfeitamente identificáveis e cujo objeto é divisível e cindível, para empregar a conhecida definição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery”.

O mencionado Habeas Corpus coletivo foi impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de todas as mulheres presas preventivamente na condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade. A ação teve como fundamento jurídico a afirmação de que a prisão preventiva — ao confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, subtraindo-lhes o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda privando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento — constitui tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, também, ao respeito à integridade física e moral da presa.

Na mesma linha o voto do ministro decano Celso de Mello, por ocasião do julgamento da medida cautelar no HC 172.136/SP, no sentido de que o Habeas Corpus coletivo é instrumento constitucional de defesa de direitos individuais homogêneos. Nesse caso, a medida liminar foi deferida para determinar que a administração da Penitenciária Tacyan Menezes de Lucena, em Martinópolis (SP), adotasse providências para assegurar, de modo efetivo, aos presos recolhidos nos pavilhões de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar o direito à saída da cela pelo período mínimo de duas horas diárias para banho de sol.

Como se vislumbra, a situação fática conflituosa em ambos os precedentes supramencionados — (i) mães e gestantes presas e (ii) presos em isolamento celular e sem direito a banho de sol, no presídio de Martinópolis — resulta em direitos subjetivamente individuais, de modo que seu objeto de proteção — liberdade de locomoção — pode ser decomposto em unidades autônomas com titularidade própria, ou seja, cada pessoa reclusa naquelas situações poderia pleitear o afastamento da ilegalidade individualmente.

O direito à liberdade de locomoção nas hipóteses acima aventadas não é indivisível como os difusos e os coletivos strictu senso, mas instrumentalizado de forma coletiva para facilitação do acesso à Justiça, pela priorização da eficiência da tutela jurisdicional e da economia processual, de modo a ressaltar ser a tutela pretendida integrante da categoria dos direitos individuais homogêneos, a título de classificação.

Noutro vértice, é censurável o equívoco apregoado por muitos juízes e tribunais, inclusive o próprio STF, ao não conhecer da ação de Habeas Corpus coletivo com fundamento na indeterminação dos pacientes, utilizando a expressão “paciente anônimo” em muitos dos casos, o que acarreta indevido cerceamento à eficácia e ao alcance do Habeas Corpus.

Um apontamento essencial a ser feito acerca da tutela coletiva da liberdade de locomoção refere-se à determinabilidade da coletividade lesada. O paciente no Habeas Corpus coletivo é o agrupamento de pessoas que sofrem ou se encontram ameaçadas de sofrerem violência ou coação — decorrente de origem comum — em seus direitos de liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

São exemplos de coletividade determinável: (i) pessoas presas nos pavilhões de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar da Penitenciária Tacyan Menezes de Lucena; (ii) todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade; (iii) presos que se encontram em estabelecimentos penais federais há mais de dois anos (STF – HC 148.459/DF); (iv) crianças e adolescentes alcançados por portaria lavrada por juiz da infância e juventude que determina o recolhimento (“toque de recolher”) após certo horário ou em locais específicos (STJ – HC 207.720/SP); (v) adolescentes internados em casa de custódia com índice médio de ocupação superior a 119% (STF – HC 143.988/ES); e (vi) os denominados “flanelinhas” na cidade de Volta Redonda (RJ), conduzidos à delegacia de polícia para lavratura de termo circunstanciado pela prática de contravenção penal prevista no artigo 47 da LCP (STF – RE 855.810/RJ).

Em verdade, conforme explica o professor Geraldo Prado, “o que é indispensável para a admissibilidade do habeas corpus coletivo é a plausibilidade da existência da coletividade”[3], dispensável, portanto, a indicação individual de cada paciente na ação quando a ameaça ou a violação à liberdade de locomoção guarda pertinência com determinado coletivo de pessoas.

Aliás, a norma extraída do artigo 654, parágrafo 1º, a, do Código de Processo Penal exige interpretação conforme a Constituição Federal, tendo em vista que o atual diploma processual é de 1941 (Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941), de matriz inquisitória, imposto por Getúlio Vargas durante o regime autoritário do Estado Novo, época em que não se falava sobre processo coletivo ou tutela coletiva de direitos no Brasil. É dizer, sua aplicação restringe-se às hipóteses de Habeas Corpus individual, pois invocar o dispositivo processual para inadmitir a tutela coletiva do status libertatis caracteriza exagerado rigorismo técnico-formal, incompatível com os valores e garantias processuais constantes da Carta da República de 1988.


[1] ZAVASCHI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 34.
[2] Op.cit.
[3] PRADO, Geraldo. Parecer pro-bono elaborado para os autos do RE nº 855.810/RJ, rel. Min. Dias Toffoli, acórdão DJe de 17.10.2018.

Autores

  • Brave

    é assessor de ministro no Tribunal Superior Eleitoral, especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pós-graduado em Direito Penal Econômico Internacional e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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