Justiça Tributária

A tributação do deságio nos casos de recuperação judicial

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de agosto de 2019, 10h37

Spacca
É sabido que o processo de recuperação judicial (Lei 11.101/05) visa soerguer a empresa que infelizmente nele ingressa, em especial em tempos de aguda crise econômica. Por meio da recuperação judicial, as empresas podem legalmente obter deságios de seus débitos vencidos e vincendos para com os credores (artigo 50, I). Um exemplo pode ilustrar a ideia. A Livraria Cultura obteve de seus credores até 70% de desconto na dívida, com até 12 anos de prazo para pagamento, somado a uma carência de dois anos, podendo esses números serem mais suaves de acordo com a categoria em que cada credor é encaixado por aquela livraria durante o período de recuperação judicial[1].

Ocorre que um credor em especial não aceita deságios, que é o Fisco. Existem diversas relações das empresas em recuperação judicial com o Fisco, e, nesta coluna, tratarei de apenas uma: a tributação do deságio. Para melhor explicitar o problema, retornemos ao caso da Livraria Cultura, acima exposto. A despeito de ter obtido a concordância dos seus credores (privados) em pagar apenas 30% da dívida, estabelecem as normas tributárias que os 70% de deságio deverão ser considerados como renda para fins de tributação pelo Imposto de Renda e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). É isso mesmo, você não leu errado: o montante que é reduzido entre as partes privadas (a empresa recuperanda e seus credores) deve ser oferecido à tributação.

Onde está o incentivo à recuperação judicial da empresa neste âmbito? Os credores privados perdem, ao reduzir seus créditos, em prol do soerguimento da empresa recuperanda, mas o Fisco não? Este é o ponto sob análise.

É inegável que a redução de um passivo se constitui em receita, conforme determina o artigo 441, II, do RIR/18; o artigo 53 da Lei 9.430/96; e o artigo 215, parágrafo 3º, IV, da Instrução Normativa da SRF 1.700/17, havendo até mesmo uma resolução do Conselho Federal de Contabilidade nesse sentido (Resolução CFC 1374/1184, item 4.25.a)[2]. Porém, trata-se de uma regra geral, não aplicável a situações específicas, anormais e extraordinárias, como nos casos de recuperação judicial de empresas.

Tudo indica que essas normas não se coadunam com a capacidade contributiva e econômica da empresa recuperanda. Pode até ser que, em situações normais, tais regras se imponham, mas não em caso de recuperação judicial, pois os pressupostos são outros. O Direito não pode ser lido em fatias, conforme a usual frase do ministro Eros Grau, lançada na ADPF 101[3], e, na situação sob análise, não se está defronte a um benefício concedido a qualquer devedor, mas a uma empresa que está em recuperação judicial, instituto através do qual se busca sua manutenção, pois atravessa crise aguda. Todas as bibliotecas sobre a função social da empresa demonstram esse escopo fundamental, que anda um pouco esquecido na aplicação do Direito no Brasil.

Observemos a situação sob outro prisma, tipicamente de Direito Financeiro. A União reconheceu que as renúncias fiscais de ICMS concedidas pelos estados às empresas não deveriam ser tributadas pelo Imposto de Renda e CSLL[4]. Neste caso, não se trata de vantagem concedida às empresas em recuperação judicial, mas para todas as empresas que receberam incentivos fiscais estaduais. Nota-se que esta norma seguiu a jurisprudência que apontava para essa solução, pois, na espécie, não havia razão para que a renúncia fiscal concedida por um ente federado fosse tributada por outro. Se um ente federativo vê fundamento para incentivar determinada atividade, não pode outro ente desincentivá-la. A divisão federativa de competências tributárias não alcança tal desiderato.

A situação acima descrita é semelhante, embora não idêntica, pois, no caso, a manutenção da empresa — de qualquer empresa em recuperação judicial — é importante para o sistema econômico. Basta ver que a empresa Odebrecht há cinco anos tinha 180 mil empregados, dos quais remanesceram apenas 48 mil, quando apresentou seu pedido de recuperação judicial, com dívidas de quase R$ 100 bilhões. Suponhamos que seus credores aceitem reduzir seus créditos em 70%, perdendo os anéis para manter os dedos. O Fisco receberá tributos sobre esse deságio. É uma solução inconsistente e incongruente dentro do sistema capitalista.

Tributação semelhante se verifica quando as empresas ingressam nos parcelamentos especiais (Refis, Pert etc.). O montante que é desonerado vem sendo submetido à tributação, o que é igualmente incongruente, pois, no caso, a União reconhece a dificuldade de pagamento tributário por parte das empresas, mas mesmo assim cobra o tributo sobre o deságio que concedeu. Isso só não ocorreu quando foi expressamente excepcionado (Lei 11.491/09, artigo 4º, parágrafo único), procedimento nem sempre adotado pelo legislador em todas as ocasiões.

Claro que as empresas, mesmo as que se encontram em recuperação judicial, têm que pagar tributos, inclusive à União, porém, nesta específica hipótese sob análise, tal exigência vai contra o sistema adotado e seguramente ajuda a levar a empresa à falência, o que é muito pior. No caso da Odebrecht, os 48 mil empregos remanescentes virarão pó. E, aí sim, os Fiscos nada receberão, pois a empresa deixará de produzir e gerar renda, ampliando e retroalimentando a crise.

Não possuo estatísticas sobre quanto vem sendo pago na hipótese sob análise, mas suponho que seja muito pouco. Trata-se de um procedimento que apenas piora a situação das empresas e da economia como um todo. Questões microeconômicas estão matando a macroeconomia, com a União dando um verdadeiro abraço de afogado nas empresas que buscam se recuperar.

Estou convencido de que nem é necessário uma lei para regular este assunto, sendo suficiente a análise a partir do princípio da isonomia e seu corolário, a capacidade contributiva ou econômica. Porém, está tramitando um projeto de lei para alterar a norma que regula as recuperações judiciais, proposta pelo deputado Hugo Leal (PSD-RJ). Pode ser uma boa oportunidade para dissipar eventuais dúvidas acerca da matéria.

Em síntese, não adianta querer tirar do contribuinte o que ele não tem, ainda mais quando se trata de uma empresa em recuperação judicial. Como escreveu Roberto Quiroga, “o fisco está matando a galinha dos ovos de ouro”. É o caso em apreço.


[1] https://www.valor.com.br/empresas/6210177/credores-aprovam-plano-de-recuperacao-judicial-da-livraria-cultura.
[2] “Receitas são aumentos nos benefícios econômicos durante o período contábil, sob a forma da entrada de recursos ou do aumento de ativos ou diminuição de passivos, que resultam em aumentos do patrimônio líquido, e que não estejam relacionados com a contribuição dos detentores dos instrumentos patrimoniais” (grifos apostos). Existem outras resoluções anteriores, com diretrizes semelhantes.
[3] “Não se interpreta o direito em tiras; não se interpreta textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo — marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas.”
[4] Nesse sentido, ver o artigo 9º da Lei Complementar 160/17, que foi vetado pelo presidente da República, tendo sido rejeitado o veto pelo Congresso Nacional.

Autores

  • Brave

    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!