Opinião

Direito retrocede com a rejeição ao uso do plea bargain

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12 de agosto de 2019, 13h44

A rejeição do plea bargain pela Câmara dos Deputados é, ao fim, a derrota da nova realidade social para dogmas de uma estrutura de pensamento fundado na era “pré-conectiva”. Não se questionam aqui os princípios filosóficos que geraram a corrente de pensamento político-criminal denominado garantismo. Pelo contrário, continuam vivas e cada vez mais necessárias as garantias penais e processuais penais que marcam a evolução das correntes punitivistas. A própria questão sobre a transferência do presidente Lula para o presídio de Tremembé, em contato com diversos outros presos e desprezo da inegável distinção que o Poder deve fornecer a chefes de Estado, ainda que criminosos (assim como distingue prisões de policiais, por exemplo), mostra o quão fundamental é, ao cidadão, contar com recursos processuais a serem manejados junto ao Poder Judiciário.

Mas a vida não é feita de exceções. É nesta visível ruptura dos padrões sociais vigentes com aqueles que marcaram época nas clássicas lições de processo penal que se insere o plea bargain.

Se antes “quem conhecia o Direito era o juiz”, hoje é possível acessar toda jurisprudência da suprema corte mediante poucos “cliques” em sites autoexplicativos dos próprios tribunais.

Se antes o “advoguês” era uma linguagem exercida por poucos letrados na ciência empírica da advocacia, atualmente os clientes procuram um advogado após inúmeras consultas a “seus direitos” pela internet. Não é raro já apontarem soluções para seus problemas que muitos causídicos sequer imaginariam.

Se antes a hipossuficiência de um cidadão era critério de aferição “quase objetivo” ante a dificuldade em se obter conhecimento, hoje é absolutamente relativo e somente por ela se conclui quando em comparação com a outra parte — pois a difusão de conhecimentos básicos de cidadania deu para todos o acesso ao mínimo necessário para lutar por si.

Enfim, se antes apenas o Estado, através do Poder Judiciário, poderia fornecer as garantias adequadas a um justo julgamento, o quadro atual permite concluir que qualquer acusado/investigado saberá escolher para si, através de seus advogados públicos ou privados, a solução que melhor lhe convém diante de tal perseguição.

Mudou o acesso à cultura, mudou a capacidade de autodefesa do cidadão, mudou a Defensoria. Só não mudou a pretensão de que o garantismo de direitos ainda se dá pelo caminho exclusivo de um longo e penoso processo judicial. Não mudou a pretensão de “sabermos mais que o rei”, ditando ao acusado aquilo que para nós parece garantia, mas que para ele pode ser a execução sumária de uma interminável pena, pois processos levam anos.

Qual o problema de se dar ao acusado o livre-arbítrio sobre seu destino? Não confiamos na capacidade de grandes escritórios de advocacia gerirem conflitos de maneira mais eficiente que o Estado? Ou não confiamos na capacidade dos valorosos defensores públicos em sentarem de igual para igual na frente do MP e negociarem a melhor saída para seus clientes?

Vamos além: se para “grandes criminosos” (ricos, cultos, com capacidade de contratação de excelentes escritórios) existe a colaboração premiada, que nada mais é que plea bargain na veia, e para criminosos médios e pequenos (mas tradicionalmente classe média para cima na medida em que primários, de bons antecedentes, que não fazem do crime uma habitualidade) temos a Lei 9.099/95 estabelecendo plea bargain para delitos de pena mínima de até 1 ano (médio potencial ofensivo, qualidade de delitos muito superiores aos de menor potencial ofensivo), o que facilmente se percebe é que a classe média e alta se beneficiam do plea bargain e o adotam em larga escala. O “devido processo penal” sobrou apenas para aqueles que serão presos ao final por delitos que efetivamente lotam as cadeias — patrimoniais e pequeno tráfico de drogas.

Esse é o retrato do que o garantismo visa garantir? Sobre isso que se deve falar. O verdadeiro garantismo, em uma sociedade conectada que em curto espaço de tempo se transformou em algo completamente distinto das que lhe antecederam, não está na utilização do Estado e do devido processo penal como “garantia primeira do cidadão”. Pelo contrário, a linha de frente na defesa de seus direitos será o respeito ao seu poder de opção pelo destino que melhor lhe aproveitar, resguardando o processo tradicional apenas como ultima ratio, provocado quando nenhuma outra solução consensual for atingida.

Está na hora de evoluirmos, no mínimo para não ficarmos perdidos em um pensamento que é bonito, mas nada faz. A forma pela qual nos relacionamos com o mundo que nos cerca mudou radicalmente. A ausência de melhoras no sistema processual penal é a única constância de toda essa experiência. Assim será?

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