Corte de direitos

Estado social criado por Carta de Weimar está ameaçado pelo autoritarismo

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11 de agosto de 2019, 9h00

Promulgada em 11 de agosto de 1919, a Constituição alemã de Weimar estabeleceu um grande catálogo de direitos sociais. Assim, prenunciou o Estado de bem-estar social, que se desenvolveria na Europa e na América do Norte após a crise econômica de 1929. Contudo, esse modelo está sob ataques em todo o mundo. O risco é que os direitos sociais sejam suprimidos, e governos autoritários assumam o poder.

A Constituição de Weimar foi uma das primeiras do mundo a prever direitos sociais, que incluíam normas de proteção ao trabalhador e o direito à educação. Além disso, a Carta também possuía um extenso rol de direitos fundamentais, que asseguravam a igualdade, a liberdade de expressão e religião e a proteção de minorias. Ela influenciou diversas constituições pelo mundo, inclusive as brasileiras de 1934 e 1988.

No entanto, desde os choques do petróleo nos anos 1970 o Estado social está em crise. Esse movimento se intensificou após a crise econômica de 2008. A queda de direitos, renda e empregos vem levando à ascensão de governantes autoritários e populistas. E ressurge o fantasma de Weimar. Afinal, especialistas apontam que essa Carta permitiu que Adolf Hitler transformasse a república alemã em uma ditadura nazista.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, acredita que as constituições ocidentais têm ferramentas para frear o aumento da repressão. Para que esse combate seja eficaz, porém, é necessário que os órgãos de controle funcionem, ressalta o ministro.

“As constituições ocidentais, como a brasileira, são mais adequadas [do que a Constituição de Weimar] para lidar com ascensão do autoritarismo. Mas é preciso que órgãos de controle funcionem. Estamos vendo graves distorções em países como Hungria e Polônia”, opina Gilmar Mendes.

Morte dos direitos
Um dos pontos frágeis da Constituição de Weimar foi que ela previu direitos sociais, mas não garantiu a sua efetividade. Já a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, tomou um caminho contrário. A norma não previu direitos sociais propriamente ditos, mas um catálogo reforçado de direitos de liberdade e garantias processuais e uma cláusula geral de socialidade a ser concretizada mediante políticas públicas, afirmam os colunistas da ConJur Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy e Ingo Sarlet.

O jurista Lenio Streck, também colunista da ConJur, acrescenta o papel da política e do Judiciário na fragilização dos direitos estabelecidos pela Carta de Weimar. “A efetividade da Constituição de Weimar foi sendo fragilizada por questões políticas. Por todas, basta sublinhar que Carl Schmitt pretendia eliminar da Constituição toda normatividade. Mas também houve culpa do Judiciário, que se mostrava refratário aos avanços constitucionais. O Livro Dois da Constituição de Weimar, em que estavam os direitos sociais, por exemplo, foi objeto de muitas críticas.”

Além disso, há razões econômicas que afastaram o texto constitucional de Weimar da realidade. Godoy e Sarlet ressaltam que o nazi-fascismo se fortaleceu devido a uma aliança entre empresários e liberais que não aceitavam a presença de ideias comunistas na Alemanha.

“Os direitos sociais dispostos na Constituição de Weimar não interessavam a vários setores que dominavam a economia e a política alemã; simplesmente, em grande parte, não foram implementados, embora deva ser dito que seguia em vigor uma relativamente pujante, para a época, legislação social e trabalhista, fragilizada pela aguda crise econômica, massivo desemprego e instabilidade política. A morte da democracia e instauração do fascismo é um caminho recorrente na desconstrução da hipótese de uma sociedade que contemple direitos sociais. A política contemporânea é abundante de exemplos. A melhor opção para uma Constituição é a permanente vigilância, a seriedade de seus aplicadores, a fidelidade institucional, a imprensa livre e o respeito ao devido processo constitucional”, dizem os juristas.

Arnaldo Godoy e Ingo Sarlet declaram que a crise do estado de bem-estar social tem colocado em risco diversos direitos que já haviam sido previstos pela Constituição de Weimar. Muitas vezes, tais garantias ainda constam dos textos constitucionais, mas não são efetivamente vivenciadas pela maioria da população, avaliam.

Crise no Brasil
A reforma trabalhista e a reforma da Previdência são exemplos da crise do Estado social no Brasil, cita Lenio Streck. Ele afirma que o conceito de força normativa, trabalhado por juristas como Hermann Heller, deveria ser suficiente para fazer valer o texto constitucional e o papel do Estado social previsto no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.

O dispositivo estabelece que são objetivos fundamentais da república brasileira construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

“O Estado social foi derrotado. As garantias constitucionais estão sendo derrotadas. Basta ver, hoje, parte do Supremo Tribunal Federal trocando o texto constitucional pela chamada ‘voz das ruas’. Estamos sendo vencidos pelo dualismo metodológico que Hermann Heller tanto combateu, e, em sua ‘Teoria do Estado’, datada dos anos 1930, já adjetivava como ‘insustentável’”, lamenta Lenio, lembrando que, em seu livro Jurisdição constitucional, defendeu a necessidade de se criar uma teoria da Constituição dirigente adequada a países periféricos.

Depois da aprovação da emenda constitucional do teto de gastos públicos (EC 95/2016), “pouco resta da ideia de Estado social e do papel compromissório da Constituição”, diz o jurista. Em sua opinião, os juristas e políticos foram lenientes na aplicação da Carta Magna de 1988. Assim, fizeram com que “a Constituição mais rica” do século XX fracassasse.

“É triste dizer isso. Penso que a Constituição exigiu demais dos juristas e políticos brasileiros. Ouso dizer, tristemente, que não fomos merecedores desta Constituição. Ela nos exigiu algo que não tínhamos e não temos. Não fomos ortodoxos na aplicação da Constituição. Fomos e somos lenientes. O voluntarismo, o realismo retrô, um constitucionalismo de efetividade que gerou um neoconstitucionalismo irresponsável, o dualismo metodológico que coloca a normatividade em segundo plano (voz das ruas, moralismos), uma dogmática jurídica sem sofisticação teórica, a moralização do direito, tudo aliado a uma multidão de pessoas da área jurídica com formação deficiente – afinal, assim como no parlamento, também existe o ‘baixo clero jurídico’: eis a receita para o fracasso da Constituição mais rica já produzida no século XX.”

Dessa maneira, o Estado social nunca passou de um simulacro no Brasil, destaca Lenio Streck. Um dos motivos disso, a seu ver, foi a confusão entre os conceitos de ativismo judicial e judicialização da política.

“Optamos por atitudes ativistas, o que é sempre ruim para a democracia. Tenho trabalhado muito tais temáticas. Há momentos em que a judicialização é de fundamental importância, porque, de forma contingencial, é necessária à implementação de direitos. Em países de modernidade tardia, como o Brasil, isso é necessário. Entretanto, por aqui, vingou o ativismo, que resolve pequenos problemas e deixa as grandes questões de lado. Na verdade, entendo que o ativismo é não apenas nocivo à democracia, mas, também, agrava a crise que incide sobre a efetivação de direitos sociais. Afinal, é a partir dele que se privilegiam – e se privatizam – determinadas demandas, em detrimento daquelas gerais, que dizem respeito a toda a comunidade. Numa palavra, o ativismo judicial vai na contramão do ideário republicano”, analisa o jurista.

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