Estado Novo

"Constituição de Weimar gerou direitos sociais, mas também ditaduras"

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11 de agosto de 2019, 9h00

Spacca
Apesar de sua inegável contribuição para a consolidação do chamado constitucionalismo social, a Constituição de Weimar, que completa 100 anos neste domingo (11/8) deixou brechas que permitiram a ascensão e a estabilização da ditadura nazista.

No entanto, Ingo Sarlet e Arnaldo Godoy, professores e colunistas da ConJur, recomendam cautela na análise histórica do texto. Por um lado, dizem, se a Constituição de Weimar "previu direitos sociais, não os garantiu, pelo menos não ao nível de uma efetividade decorrente da afirmação da supremacia da constituição".

A despeito de seus méritos, ela também continha a previsão de dissolução do Legislativo pelo chefe do Executivo, dispositivo que, embora tenha sido usado inicialmente para garantir a manutenção da democracia, possibilitou, mais tarde, a consolidação de Adolf Hitler no poder e viabilizou a ditadura nazista.

Leia a entrevista:

ConJur — Por que a Constituição de Weimar foi pioneira na consolidação dos direitos fundamentais?
Sarlet e Godoy — Essa questão também exige alguma reflexão, alguma ponderação e algumas objeções. Em matéria de direitos fundamentais, por exemplo, o catálogo de direitos da Constituição Alemã de 1849, a assim chamada Constituição da Igreja de São Paulo (a Paulskirchen Verfassung), que não teve vigência efetiva, contava com um vigoroso e mesmo em parte inovador elenco de direitos, que inclusive já na época seriam designados de fundamentais. Note-se, contudo, que enquanto o texto da Constituição de 1849 (projetada para uma Alemanha unificada), tenha sido aprovado e promulgado em março daquele ano, o seu Catálogo de Direitos Fundamentais já havia sido aprovado pela Assembleia Nacional em 27/12/1948 e foi incorporado integralmente mais adiante ao texto constitucional. Além disso, o Catálogo de 1848/49 – como documento autônomo – seguiu em vigor até 1850, tendo tido alguma aplicação.

Importa sublinhar que diferentemente do que veio a ocorrer com a Constituição de Weimar, os direitos fundamentais da Constituição de São Paulo, de acordo com o texto constitucional, eficácia vinculativa e, ademais disso, previu-se uma espécie de reclamação constitucional para assegurar a sua efetividade pela via jurisdicional.

Todavia, tratava-se de um documento de época, carregado de disposições avançadas e ousadas, inexequíveis no momento em que foram concebidas, resultado das agitações da assim chamada primavera dos povos, em especial influenciada pelo processo revolucionário na França que derrubou – por algum tempo – a Monarquia e onde uma nova constituição de matriz liberal foi promulgada em 1848. Ainda que vazio de soluções para os grandes problemas da classe trabalhadora, o Parlamento de Frankfurt avançou no que pode: com algum atrevimento, pretendeu fazer da realidade uma utopia possível. Se há algum pioneirismo, alguma justiça histórica deve ser prestada à Constituição de 1849.

A Constituição de Weimar é pioneira, desse modo, por conta do fato de que efetivamente contou com – embora sempre sob influxo de intensas agitações e instabilidade – vigência e eficácia, a par de ser recorrentemente lembrada e seu texto ter efetivamente influenciado, em maior ou medida, uma série de outras constituições de seu tempo e mesmo mais adiante. Há um pioneirismo fático, resultado direto da situação alemã vivida ao fim da primeira guerra mundial. Representava um compromisso possível, aceito por uma corrente liberal que rejeitava um imediato enfrentamento com as forças de esquerda, que ainda protagonizam o espectro que rondava a Europa, exatamente como Marx havia descrito já em meados do século XIX.

Veja-se que a República de Weimar foi proclamada no dia da abdicação do Imperador Guilherme II, em meio ao processo de radicalização que marcou a assim chamada Revolução Alemã de 1918-19, mas que se prolongou no tempo pelo menos até 1923. Quanto aos direitos fundamentais, o texto da Carta Imperial de Weimar praticamente contemplou o catálogo da Constituição da Igreja de São Paulo, aduzindo, contudo, um conjunto de deveres fundamentais e de direitos sociais, no que propriamente, nessa matéria, lhe é de atribuir sim um elevado nível de pioneirismo e inovação.

ConJur — Qual foi a influência da Constituição de Weimar na consolidação dos direitos sociais?
Sarlet e Godoy — Muito embora sua inegável influência também na seara da positivação de direitos sociais, não se deve hipertrofiar a relevância da Constituição de Weimar, visto não ser a única carta constitucional da época a contemplar tais direitos, mesmo que a maioria dos documentos constitucionais do período entre as duas Grandes Guerras que vieram a prever normas de justiça social e direitos sociais tenham sido posteriores.

A título de contraponto, a Constituição Russa – a Constituição Soviética – de 10/07/1918, Bolchevista, que continha uma seção chamada de Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, não enunciava propriamente um catálogo de direitos fundamentais, mas previa um conjunto de princípios e metas, como a erradicação da exploração do homem pelo homem, coletivização da propriedade, instalação de uma República Socialista Soviética, entre outros.

A Constituição de Weimar não se revela como um fato normativo isolado. É mais um documento político entre tantos outros que se construíram no contexto político europeu do fim da primeira guerra mundial. Há um autor russo, Mirkine-Guetzévitch, muito conhecido pelos publicistas brasileiros do início da década de 1930, que estudou e analisou as constituições que foram construídas ao fim do primeiro grande conflito, e que nos acena com o fato de que Weimar não se revelava como uma circunstância isolada. Além do que, Mirkine-Guetzévitch insistia que o núcleo de Weimar, e das demais constituições do pós-primeira guerra, consistia menos no tema dos direitos fundamentais e sociais, e muito mais na concepção de uma racionalização do poder, o que, contudo, apenas em parte pode ser considerado como proeminente para o caso da Constituição de Weimar.

Isso pelo fato de que, embora Hugo Preuss, o Secretário de Estado a quem o primeiro Presidente da República, Friedrich Ebert, socialdemocrata, havia incumbido de elaborar um anteprojeto de constituição, tinha excluído um catálogo de direitos do texto na sua primeira versão, voltado essencialmente ao problema da estruturação e organização do estado e do poder, o que acabou, todavia, sendo alterado nas etapas seguintes.

Várias das então novas constituições (entre elas as da Grécia, da Áustria, da Letônia, da Lituânia, da Tchecoslováquia), anunciavam uma nova agenda política: federalismo, controle de constitucionalidade, proteção de minorias nacionais, processo constitucional de declaração de guerra, entre tantos outros assuntos, que não compunham, ainda, a narrativa constitucional do século XIX.

A República e a Constituição de Weimar traduziu o prestígio da doutrina alemã e dos autores que discutiram os arranjos políticos e institucionais que construiriam um amálgama entre o rancor que decorria das imposições do Tratado de Versalhes e as expectativas de um mundo em paz. A Constituição de 11.08.19, representou também uma fórmula política e cultural de enfrentamento da “Alleinschuld”, a teoria da culpa exclusiva, segunda a qual os alemães teriam sido os grandes responsáveis pelo conflito de 1914-1918.

Tendo a República sido quase que simultaneamente proclamada pelo Secretário de Estado socialdemocrata Scheidemann, e Karl Liebknecht (este apenas duas horas depois), líder do braço radical da extrema esquerda, que se havia separado da maioria socialdemocrata, o que se percebe é que a formação de uma maioria pelos socialdemocratas e liberais assegurou a vitória de uma fórmula de compromisso que logrou, pelo menos no que diz com o texto constitucional, afirmar uma conciliação entre capital e trabalho e direitos fundamentais liberais e sociais. Não se deve olvidar a violenta polarização que já se verificava em 1918-19 e que perdurou, em maior ou menos medida (com alguns períodos de arrefecimento) até a tomada do poder pelo Partido Nacional-Socialista, em 1933, processo que sucedeu a Revolução Bolchevista de Outubro de 1917, inteligentemente descrito por Edmund Wilson em Rumo à Estação Finlândia.

A importância da Constituição de Weimar, é também desdobramento do prestígio de autores como Weber, Kelsen, Schmitt, Preuss, Thoma, Triepel, Kauffmann, Smend, Forsthoff, Heller, Anschütz, entre outros. Não bastasse esse imenso prestígio de autores de direito público, Weimar também ganha força em decorrência do ambiente cultural que marcava uma Alemanha em plena pujança. Os irmãos Mann, Remarque, Zweig, Kafka, Fritz Lang, Brecht, Paul Klee, Gropius, Schoenberg, Tillich, Freud, são personagens que marcavam um momento ímpar na história da cultura ocidental. Há um filme, O Anjo Azul, protagonizado por Marlene Dietrich, e baseado em romance de Heinrich Mann, que capta essa atmosfera. A influência de Weimar, assim, é resultado de um conjunto de fatores, sobremodo culturais, que marcaram um momento único na história europeia.

ConJur — Como a Constituição de Weimar inspirou constituições de outros países?
Sarlet e Godoy — A influência de Weimar é prioritariamente europeia. Há um ponto negligenciado pela historiografia constitucional, e que consiste na influência de Weimar na construção da constituição espanhola do início da década de 1930. Os espanhóis sempre foram fascinados pelos juspublicistas alemães. Francisco de Sosa Wagner, professor de direito constitucional e deputado espanhol no Parlamento Europeu historiou com riqueza de pormenores essa influência. A Constituição Espanhola da década de 1930 definia a Espanha como “uma República democrática de trabalhadores de todas as classes”. Contemporâneos viam algum exagero na fórmula, acusando os autores do texto de uma aproximação muito forte com o modelo soviético. A guerra civil espanhola, de algum modo, aí estava “in nuce”.

Weimar não apenas inspirou textos constitucionais que contemplavam direitos sociais. Weimar inspirou um roteiro histórico que culminou com experiências ditatoriais. A guerra civil espanhola que seguiu ao texto de tendência de prestígio de direitos sociais é um exemplo. O golpe de 1937 no Brasil é outro exemplo. O golpe do Estado Novo foi possível, do ponto de vista da engenharia constitucional, em virtude das técnicas de impasse que o texto brasileiro de 1934, também inspirado em Weimar, nos propiciou.

ConJur — Como a Constituição de Weimar inspirou as Constituições brasileiras, especialmente a de 1988?
Sarlet e Godoy — Esse é um ponto que merece muita reflexão. Não se recebeu Weimar diretamente, ou por tradução. Recebemos Weimar por Mirkine-Guetzévitch, que foi traduzido por Cândido Motta Filho, então Ministro do STF, em livro que conta ainda com uma substancial apresentação de Vicente Rao, professor da USP, que havia rompido com Getúlio, e que se encontrava transitoriamente na França.

Mirkine-Guetzévicth estudou as constituições europeias do fim da primeira guerra mundial. No Brasil, a Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34 foi muito influencida pelas ideias de Mirkine-Guetzévicth, então Secretário-Geral do Instituto Internacional de Direito Público em Paris, autor de livro que explorava as tendências do Direito Constitucional num contexto de defesa de Estados intervencionistas. O texto final da Constituição de 1934, tal como aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte, ficou muito diferente do documento elaborado pela Comissão do Itamaraty, que redigiu o anteprojeto. A Comissão construiu texto substancialmente mais simples e enxuto, com 136 artigos, mas os autores finais do texto da Constituição de 1934 elaboraram texto extenso (187 artigos, contra os 91 artigos da Constituição de 1891), no qual havia muita matéria de índole não constitucional.

Um exemplo da recepção de elementos importantes do constitucionalismo social weimariano foi a previsão, em 1934 – que se mantém na Constituição Federal de 1988 – de um dispositivo enunciando uma norma definidora de um fim do Estado, uma espécie de norma-objetivo (Eros Grau), de que a ordem econômica deve assegurar a todos uma existência com dignidade.

De fato, fortíssima foi a presença do constitucionalismo de Weimar, como afirmaram peremptoriamente Pinto Ferreira e Wamireh Chacon. Carlos Maximiliano se queixava, no sentido de que muita gente na Assembleia Constituinte, e antes na Comissão do Itamaraty, andava com o livro de Mirkine-Guetzévicth. Mas a Constituição de Weimar não é a única fonte de inspiração para nosso texto de 1934. A Constituição de 1934 catalisou os dilemas políticos da década de 1930, captando tensões que decorriam do insuperável dissenso entre o liberalismo e o conservadorismo, tendências que albergavam e também disfarçavam as antíteses entre o capitalismo e o totalitarismo que começava a triunfar na Europa. É um documento de época, e que captou suas ambiguidades e perplexidades.

Negando percepção de que nossos modelos institucionais apenas reproduzem ideias fora de lugar, a Constituição de 1934 de fato enfrentou problemas latentes, a exemplo da organização da Justiça Eleitoral, do ritual do mandado de segurança, da legislação trabalhista e do voto feminino. Permeável a influências políticas e sociais que cooptavam com o governo provisório de Vargas, a exemplo do cristianismo (e seus efeitos sobre os conceitos de família, casamento, ensino religioso) e do trabalhismo (a exemplo da representação classista) a Constituição de 1934, no plano teórico, ajustou-se a um compromisso naquele tempo imaginado como possível.

A causa da Constituição de 1934 foi a mesma razão de seu aniquilamento. Sua gênese teve como motivo as mesmas circunstâncias que qualificaram seu ocaso. Quem possibilitou a articulação de forças que produziu seu texto foi o mesmo condutor das forças políticas que engendraram seu abandono. A Constituição de 1934 é um dos mais emblemáticos exemplos da manipulação de compromissos, exercício político recorrente na trajetória de líderes dotados de carisma, a exemplo de Getúlio Vargas, a usarmos uma tipologia tipicamente weberiana. No plano dogmático, substancializou-se por inovações que eram úteis, mas que se revelavam também como inevitáveis.

A inspiração de Weimar, quanto à Constituição de 1988, é de outra ordem. O texto de 1988 é, de algum modo, resultado de um outro tempo. O seu pano de fundo histórico foi radicalmente diferente do contexto da década de 1930. Vivia-se uma reação contra um governo central forte, exercido de forma ditatorial pelos militares desde março de 1964. A influência de Weimar, em uma perspectiva histórica, é – do ponto de vista textual e da força do contexto – muito maior em 1934 do que em 1988, embora o elo comum da previsão de uma série de normas de justiça social e direitos sociais, seu caráter compromissário e em parte dirigente.

A República de Weimar e sua doutrina constitucional, também foi fonte de inspiração para autores como Francisco Campos. O catálogo da biblioteca de Francisco Campos nos dá conta de que o jurista de Dores do Indaiá contava com todos os grandes constitucionalistas de Weimar. Também Pontes de Miranda e Pinto Ferreira recepcionaram em sólida medida lições dos constitucionalistas de Weimar.

Quanto a 1988, é inegável uma aproximação com Weimar, menos por referências históricas de transposição imediata de modelos, do que por uma referência estilística e conceitual. Além disso, Weimar também exerceu influência na construção de nosso direito do trabalho, exercendo influente papel no chamado “mito da outorga”, que imputa a Vargas o favor de nos ajudar com a legislação trabalhista.

ConJur — Como os senhores comparam a Constituição do México, de 1917, com a Constituição de Weimar?
Sarlet e Godoy — São documentos distintos, de ambientes históricos distintos, e que foram construídos sob perspectivas substancialmente diferentes. A Constituição mexicana de 1917 atendia aos anseios que resultaram do fim da ditadura de Porfírio Diaz. Discutida em Querétaro, ao norte da cidade do México, e convocada pelo presidente Carranza, a constituição mexicana de 1917 propiciou a construção de um regime monopartidário que governou o México durante todo o século XX. Somente em 1968 é que o monopartidarismo do Partido Revolucionário Institucional foi questionado, situação que alcançou seu ponto máximo com a eleição de Carlos Salinas de Gortari em 1988. O domínio do PRI se deu até as eleições de 2000. A socialdemocracia que se imputa à Constituição mexicana de 1917 deve-se mais a Plutarco Elias Calles, presidente de 1924 a 1928, que lastreou seu apoio em sindicatos e movimentos de campesinos. O vínculo da Constituição mexicana com Weimar é simbólico. O texto de Querétaro antecedeu o texto de Weimar. Imaginar-se que chegou a existir alguma influência do constitucionalismo mexicano no constitucionalismo alemão é de alguma forma um arremedo de delírio historiográfico.

ConJur — A Constituição de Weimar garantiu vários direitos sociais. Com a crise do estado de bem-estar social, que já se arrasta e aprofunda há muitos anos, esses direitos estão em risco?
Sarlet e Godoy — A Constituição de Weimar previu direitos sociais, não os garantiu, pelo menos não ao nível de uma efetividade decorrente da afirmação da supremacia da constituição, mas sim, de uma legislação social que tinha sua origem já no final do Século XIX e que atravessou combalida e esvaziada de efetividade pela aguda crise econômica, o período de vigência da Constituição de 1919. A Lei Fundamental de Bonn, de 1949, por sua vez, não previu direitos sociais propriamente ditos, mas um catálogo reforçado de direitos de liberdade e garantias processuais e uma cláusula geral de socialidade a ser concretizada mediante políticas públicas. A crise do estado de bem-estar social, que é hoje é indiscutível, mas já se desenvolve há tempos, tem colocado e coloca em risco esses direitos. Tem-se aqui o tema da retórica constitucional, e de seu diálogo com a vida real. A leitura da maior parte dos textos constitucionais contemporâneos comprova essa assertiva. O cotejo dos textos constitucionais vigentes com relatórios do Human Rights Watch, por exemplo, comprova essa premissa. Há uma relativa abundância de direitos sociais em vários textos constitucionais, que, contudo, não são efetivamente como tal vivenciados por grande parte da população da maioria dos estados constitucionais dotados de generosos catálogos de direitos, sociais ou não.

ConJur — A Constituição de Weimar estabeleceu direitos fundamentais, mas não os tornou exigíveis na Justiça. Por que a Constituição de Weimar seguiu esse caminho? E, a seu ver, qual é a melhor opção para uma Constituição?
Sarlet e Godoy — A Alemanha viveu peculiaridades históricas que afastaram o texto da Constituição de Weimar do cotidiano institucional e da vivência social diuturna. A ascensão do fascismo é produto de uma aliança entre os setores industriais e liberais que não admitiam a presença do ideário bolchevique em solo Alemão. Há uma rica literatura contemporânea (David Runciman, Steven Levitsky, Jason Stanley) que argumentam em torno da morte da democracia e da instauração de regimes fascistas. Os direitos sociais dispostos na Constituição de Weimar não interessavam a vários setores que dominavam a economia e a política alemã; simplesmente, em grande parte, não foram implementados, embora deva ser dito que seguia em vigor uma relativamente pujante, para a época, legislação social e trabalhista, fragilizada pela aguda crise econômica, massivo desemprego e instabilidade política. A morte da democracia e instauração do fascismo é um caminho recorrente na desconstrução da hipótese de uma sociedade que contemple direitos sociais. A política contemporânea é abundante de exemplos. A melhor opção para uma Constituição é a permanente vigilância, a seriedade de seus aplicadores, a fidelidade institucional, a imprensa livre e o respeito ao devido processo constitucional.

ConJur — O artigo 48 da Constituição de Weimar estabelecia que, caso a ordem pública esteja em risco, o presidente do Reich poderia, sem necessidade de aval do Legislativo, tomar as medidas necessárias para restituir a lei e a ordem, podendo suspender direitos civis como habeas corpus, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão, direito de reunião e associação e autorizando expropriações. Há quem afirme que o artigo 48 da Constituição de Weimar facilitou a ascensão de Adolf Hitler e do nazismo. O senhor concorda com essa crítica?
Sarlet e Godoy — Sim. Esse argumento foi aprofundado por autores respeitadíssimos, como Giorgio Agambem. Carl Schmitt explorou argumento próximo quanto estudou os regimes ditatoriais. Agambem avaliou o art. 48 de Weimar em relação a situações ocorridas na França e na Itália também. O art. 48 é uma técnica de enfrentamento de impasses que remonta, conceitualmente, nos conselhos de comissários do povo, da revolução francesa. O art. 48 permitiu a existência de um estado de exceção permanente, situação que fora também desnudada por Walter Benjamin.

Dito isso, é preciso, contudo, ter em mente que o uso recorrente de tal expediente, manejado mais de uma centena de vezes por Friedrich Ebert, socialdemocrata, até a sua morte, em 1925, o foi para o efeito de assegurar a manutenção da própria democracia. Após a assunção do monarquista e conservador, o herói e mais consagrado dos Marechais alemães na Primeira Guerra Mundial, como Presidente do Reich, mesmo que o instituto tenha sido muito menos utilizado, é que aos poucos foi se estabelecendo uma base – dada a circunstância de que a coligação majoritária que prevaleceu durante o processo constituinte, liderada pelos socialdemocratas, não conseguiu se manter no poder e gradualmente foi perdendo sua influência.

Ao fim e ao cabo, foi Hindenburg quem, já tendo nomeado Hitler como Chanceler do Reich (Chefe do Governo), em janeiro de 1933, acabou por se valer do expediente, em virtude da pressão exercida pelos nacional-socialistas quando da queima do Reichstag (Parlamento), atribuindo-lhe poderes de exceção que, como já se deveria esperar, foram utilizados para a consolidação do poder pelos nazistas e instauração da mais feroz ditatura de direita já conhecida.

ConJur — A falta de uma cláusula de barreira na Constituição de Weimar permitiu uma minoria sem representatividade entrar no Parlamento e fortaleceu o nazismo?
Sarlet e Godoy — Essa ilação é complicada. Exige mais reflexão e pesquisa histórica. As condições por intermédio das quais o nazismo avançou independem — necessariamente — de arranjos mais singelos, como mera cláusula de barreira. A situação posta era outra e o ódio e o preconceito avançariam de qualquer forma. Os traumas da guerra, o rancor de Versalhes, a crise econômica, a hiperinflação, são situações que não dependiam de cláusulas de barreira ou quaisquer outros arranjos. Caso o Presidente Hindenburg não tivesse nomeado Hitler chanceler e lhe atribuído os poderes excepcionais previstos no artigo 48 da Constituição de Weimar, talvez não se tivesse chegado onde se chegou, mas de todo modo não se sabe se alguma outra evolução radical, ainda que talvez menos nefasta na sua extensão, teria sido evitada. De todo modo, como afirma um dos grandes historiadores da Constituição de Weimar, Christoph Gusy, tratava-se, é possível acompanhar esse veredito retrospectivo, de uma boa Constituição em tempos difíceis.

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