Embargos Culturais

Lima Barreto nos ensina como contar a verdade com humor

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
Os Bruzundangas é um delicioso livro satírico de Lima Barreto[1]. O escritor viveu no Rio de Janeiro, onde nasceu em 1881 e morreu em 1922. Um colapso cardíaco o fulminou. Contava então com apenas 41 anos de idade. Seu pai morreu dois dias depois. Ambos eram dipsômanos, alcoólatras, diríamos hoje. O pai e a mãe de Lima Barreto eram mestiços. O escritor perdeu a mãe quando ainda era criança. Seu pai ganhava a vida como tipógrafo. Foi protegido de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto. O prenome do visconde é a explicação de seu próprio prenome: seu nome completo era Afonso Henriques de Lima Barreto.

A República de Bruzundanga é um país imaginário. Mas não muito. Nele há muitos problemas que frequentemente enfrentamos. Mas nem todos. Lima Barreto não chegou a imaginar um país tão escandalosamente surreal. Nesse livro, o escritor passa ironicamente por problemas de ensino, de diplomacia, de eleições, de serviço público, de religião, de falsos heróis e até mesmo de Constituição. Há um capítulo sobre uma Assembleia Nacional Constituinte (certamente, a de 1891), no qual o maior problema constitucional que havia consistia em se discutir (e descobrir) a Constituição de qual país que deveria ser copiada.

Há uma galeria de tipos histriônicos. Pancôme, o ministro dos Estrangeiros, era o mais adventício de todos. Em Pancôme o escritor Lima Barreto entornava o ódio que tinha para com o Barão do Rio Branco. Conta-nos Lima Barreto que o poderoso ministro andava atrapalhado para preencher um cargo simples de amanuense. De acordo com a lei, haveria concurso, se respeitaria a meritocracia e, afinal, o interessado em cargo público deveria comprovar aptidão. Lima nos diz, no entanto, que Pancôme nada tinha que ver com as leis. Além do que, “sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedece-las a todo instante”. Lima Barreto não gostava do ministro, que fazia do ministério coisa própria e sua”. Seus interesses, idiossincrasias e visões de mundo pautavam escolhas e ações.

Segundo Lima, esse ministro imaginário “nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiro por todos (…) que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam panegíricos hiperbólicos”. O ministro de Bruzundanga tinha bronca dos feios, especialmente dos bruzungandenses de origem javanesa. Todos aqueles que criticavam o importante ministro, não interessa se tivessem razão, ou não, os jornalistas habituados a canonizações simoníacas e parlamentares gritavam: que tipo mesquinho! Criticar esse patrimônio nacional que é o Pantôme, por causa de ninharias! Ingrato!”. Por isso, segundo Lima Barreto, “diante dessa desculpa de patrimônio nacional, toda a gente se calava e o país ia engolindo as afrontas que o seu ministro fazia às suas leis e aos seus regulamentos”.

Lima Barreto contou-nos também um caso bizarro relativo ao modo como se conseguiu uma vaga no Ministério das Relações Exteriores do curioso país. Inacreditável. Segundo Lima, em “um jantar de luxo, houve uma disputa entre dois convidados sobre uma qualidade de peixe que viera à mesa. Um dizia que era garoupa; o outro que era bijupirá. Não houve meio de concordarem”. Chamou-se um árbitro. Este “levou amostras para casa. Mandou tirar fotografias, fez que desenhassem estampas elucidativas, escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu que não era nem garoupa, nem bijupirá, mas cação. O seu trabalho foi tido como um modelo da mais pura erudição culinária e o moço foi logo encarregado de negócios na Guatemala”. O cargo foi decidido por conhecimentos de culinária.

Lima Barreto foi um talentoso escritor, muitas vezes marginalizado, frequentemente comparado com Machado de Assis. Há uma biografia recente, de Lilia Schwarcz[2], que recupera com muito humanismo e sensibilidade essa triste figura. O Policarpo Quaresma, o Pantôme e o Homem que sabia javanês são tipos que resumem um pouco uma imaginária alma nacional. Lima Barreto os denunciou. Afinal, mais forte do que a verdade é a própria verdade contada com humor.


[1] No presente texto, cito e comento uma versão da Livraria Garnier, com estabelecimento de texto por Francisco de Assis Barbosa e Antonio Houaiss. Lima Barreto, Os Bruzundangas – Sátira, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: Garnier, 1998.
[2] Lilia Moritz Schwarcz, Lima Barreto, triste visionário, São Paulo: Cia. das Letras, 2017.

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