Papel social

"Com Constituição alemã de Weimar, Estado é chamado a proteger o cidadão"

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10 de agosto de 2019, 9h00

Spacca
A Constituição de Weimar, que completa 100 anos em 11/8, foi um marco na história do Direito por ter sido a primeira a atribuir ao Estado o papel de proteger o cidadão.

O jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, explica a importância do marco inaugural do constitucionalismo social, de que forma a Constituição de Weimar inspirou outras Cartas pelo mundo e de que forma suas previsões ajudaram a engrossar o caldo da ascensão do nazismo na Alemanha.

Leia a entrevista:

ConJur —Qual foi a influência da Constituição de Weimar na consolidação dos direitos fundamentais e sociais?
Lenio Streck 
— Ela foi ruptural. E digo isso porque, com ela, não temos mais uma Carta Magna dizendo “o que é” ou “quais são os limites” do Estado. A partir da Constituição de Weimar, há um “fim” (em sentido de finalidade) ao Estado. Ela inaugura, junto com a do México, de 1917, aquilo que se chamou de constitucionalismo social, colocando o Estado como promovedor de políticas públicas. Do velho Estado regulador passamos para o Estado promovedor. Hans Kelsen foi um dos primeiros a defender a Constituição como norma. Embora um autor como Hermann Heller tivesse uma preocupação especial com a Constituição como algo político, não se pode dizer que desdenhasse do sentido normativo. A expessão força normativa da Constituição vem depois de 1949. De todo modo, Heller menciona, em sua “Teoria do Estado”, a “Constituição formada por normas”, destacando sua “função diretora e preceptiva”.

ConJur — Por que a Constituição de Weimar foi pioneira na consolidação dos direitos fundamentais?
Lenio Streck 
— Esse pioneirismo não se relaciona somente a direitos fundamentais. Com Weimar, o Estado é chamado a proteger o cidadão, inaugurando o que poderíamos chamar de “função social do Estado contemporâneo”. Daí o caráter ruptural mencionado na resposta anterior. Eis o grande legado de Weimar. Mais que garantir – como no Estado projetado a partir das Revoluções Liberais – a liberdade dos cidadãos, primando pela garantia da livre iniciativa, sobretudo, nas relações de mercado, a Constituição de Weimar projeta, também, a proteção do indivíduo. Com ela, a propriedade obriga: eis um marco para superar a velha noção da propriedade como mercadoria. Esse ideário, por exemplo, influiu, no Brasil, na Carta de 1934, ao vedar sua utilização contra o interesse social ou coletivo.

ConJur — Como a Constituição de Weimar inspirou constituições de outros países?
Lenio Streck 
— Comecemos pela Constituição de 1934, do Brasil, já referida. A "parte social" da Constituição de 1934 é diretamente decorrente de Weimar. Vou além: todo o Constitucionalismo Contemporâneo é devido a Weimar. O Constitucionalismo Social só existe ou existiu graças à noção de Constituição como norma, como dever. A Constituição já não é uma mera folha de papel ou Carta Política. Agora, a partir de Weimar, e sacramentado pelo Constitucionalismo do segundo pós-Guerra, fala-se em transformação das relações sociais por meio da noção de Constitucionalismo Compromissório. A noção de Constitucionalismo dirigente vem nos anos 70 e é reaproveitada por autores como Canotilho, pela qual a Constituição impõe uma finalidade a ser perseguida, e o governo diz como alcançar essa finalidade, ou seja, projeta os meios para tais finalidades, para usar um argumento que simplifique essa questão. Mas, veja-se: constitucionalismo social é Weimar; Constitucionalismo dirigente é bem posterior. Especificamente sobre a inspiração advinda de Weimar, objeto da pergunta, considero importante, aqui, destacar o global contexto de crescimento do operariado e de ascendente industrialização no mundo todo. Ou seja, o que é projetado a partir de Weimar, que em seu “Livro Dois” elenca direitos, por exemplo, relativos à “vida social”, à educação e à escola” ou à “vida econômica”, reflete reivindicações presentes em diversos países que, por óbvio, não se furtavam a esse cenário, comum a muitas nações no início do século XX. Não à toa, muito do que nela se encontra pioneiramente (assim como na Constituição Mexicana de 1917), acaba refletido em outros documentos constitucionais.

ConJur — Como a Constituição de Weimar inspirou as Constituições brasileiras, especialmente a de 1988?
Lenio Streck 
— Sucintamente, naquilo que chamo de "resgate das promessas da modernidade". Weimar é parte de um cenário de profunda crise não apenas política, como, também, institucional. Embora possam ser destacados contextos diferentes, evidentemente, é inegável, também, semelhanças com o momento pelo qual passava o Brasil, à época da transição democrática. Assim como a Constituição de Weimar, a Carta de 1988, no Brasil, coloca-se como um documento dirigente e compromissório, projetando justamente o “resgate” mencionado anteriormente: (re)situar a nação, tardiamente modernizada. Como destaca Joseph Barthélemy, Weimar foi uma espécie de “laboratório constitucional”, e muitas de suas projeções ganharam contornos universais – condição que não se verifica somente na Constituição de 1988, mas, muito antes, já na de 1934, que trazia um catálogo de direitos prestacionais como reflexo dessa condição inspiradora. Entretanto, importante frisar, a despeito dessa influência dirigente, temos um “passo atrás” com a nossa Constituição, sistematicamente enfraquecida, a ponto de, hoje, como diria Gilberto Bercovici, termos uma “Constituição Dirigente Invertida”.

ConJur — Como o senhor compara a Constituição do México, de 1917, com a Constituição de Weimar?
Lenio Streck 
— Sem dúvida, há questões semelhantes. A Constituição Mexicana, de 1917, foi produto de uma série de agitações sociais desde 1910, e o contexto de Weimar é, nesse sentido, muito próximo. Ou seja, ambas as Cartas estão inseridas em um contexto social marcado por reivindicações que culminam na passagem de um modelo que “diz o que é o Estado” para um paradigma constitucional que aponta “finalidades” de caráter prestacional ao Estado. Ou seja, inauguram o constitucionalismo social, como já mencionei em uma questão anterior. Além disso, sequencialmente, Weimar tem a ascensão do Nazismo, por exemplo, enquanto o México, ditaduras. Porém, Weimar transcendeu na História. Digo isso porque, além de inaugurar esse modelo constitucional, comparativamente Weimar inova em relação à Carta Mexicana em uma série de aspectos. Dou exemplos: Weimar foi pioneira em proteger minorias (artigo 113), em projetar a igualdade jurídica entre cônjuges (artigo 119), assim como entre filhos havidos dentro ou forma do casamento (artigo 121). Também projetou a igualdade de acesso a cargos públicos (artigo 128). Contudo, o traço que faz Weimar “transcender na História”, como afirmei, é o fato de que suas prescrições parecem, a mim, mais universais (e menos particularistas) em relação à Constituição Mexicana. Daí decorre sua enorme influência em todo o globo. Além disso – e talvez mais importante: ao projetar esse já referido constitucionalismo social, Weimar produziu debates até hoje importantes para compreender as diversas concepções de Estado e Constituição.

ConJur — A Constituição de Weimar garantiu vários direitos sociais. Com a crise do estado de bem-estar social, esses direitos estão em risco?
Lenio Streck 
— Sim. Para além das crises que, sobretudo desde a década de 1980, afetam o Estado Social, basta ver, recentemente, a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência. A noção de Constitucionalismo social e compromissório, que pode ser considerado um mix de Weimar e do Constitucionalismo Contemporâneo – enfim, de autores que trabalharam a noção de força normativa, já deveriam ser suficientes para fazer valer o texto constitucional e o papel do Estado Social previsto no Artigo 3º da Constituição Federal de 1988. No meu livro “Jurisdição Constitucional”, editado no início dos anos 2000, adotando uma postura substancialista, sustentei a necessidade de termos uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países Periféricos. Lamentavelmente, parece que perdemos. O Estado Social foi derrotado. As garantias constitucionais estão sendo derrotadas. Basta ver, hoje, parte do Supremo Tribunal trocando o texto constitucional pela chamada “voz das ruas”. Estamos sendo vencidos pelo dualismo metodológico que Heller tanto combateu, e, em sua “Teoria do Estado”, datada dos anos 1930, já adjetivava como “insustentável”.

Além do mais, acrescento, depois da EC 95, pouco resta da ideia de Estado Social e o papel compromissório da Constituição. É triste dizer isso. De há muito autores como Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni advertem para o fato de a Constituição estar sendo erodida. Penso que a Constituição exigiu demais dos juristas e políticos brasileiros. Ouso dizer, tristemente, que não fomos merecedores desta Constituição. Ela nos exigiu algo que não tínhamos e não temos. Não fomos ortodoxos na aplicação da Constituição. Fomos e somos lenientes. O voluntarismo, o realismo retrô, um constitucionalismo de efetividade que gerou um neoconstitucionalismo irresponsável, o dualismo metodológico que coloca a normatividade em segundo plano (voz das ruas, moralismos), uma dogmática jurídica sem sofisticação teórica, a moralização do direito, tudo aliado a uma multidão de pessoas da área jurídica com formação deficiente – afinal, assim como no parlamento, também existe o “baixo clero jurídico”: eis a receita para o fracasso da Constituição mais rica já produzida no século XX.

ConJur — A Constituição de Weimar estabeleceu direitos fundamentais, mas não os tornou exigíveis na Justiça. Por que a Constituição de Weimar seguiu esse caminho? E, a seu ver, qual é a melhor opção para uma Constituição?
Lenio Streck 
— A efetividade da Constituição de Weimar foi sendo fragilizada por questões políticas. Por todas, basta sublinhar que Carl Schmitt pretendia eliminar da Constituição toda normatividade. Mas também houve culpa do Judiciário, que se mostrava refratário aos avanços constitucionais. O Livro Dois da Constituição de Weimar, em que estavam os direitos sociais, por exemplo, foi objeto de muitas críticas.

No Brasil, tínhamos tudo para implementar as bases do Estado Social que, por aqui, nunca houve. Nunca passou de um simulacro, como já afirmei em meu “Teoria do Estado & Ciência Política”, com Jose Luis Bolzan de Morais. Um dos motivos para isso foi a confusão entre os conceitos de ativismo judicial e judicialização da política. Optamos por atitudes ativistas, o que é sempre ruim para a democracia. Tenho trabalhado muito tais temáticas. Há momentos em que a judicialização é de fundamental importância, porque, de forma contingencial, é necessária à implementação de direitos. Em países de modernidade tardia, como o Brasil, isso é necessário. Entretanto, por aqui, vingou o ativismo, que resolve pequenos problemas e deixa as grandes questões de lado. Na verdade, entendo que o ativismo é não apenas nocivo à democracia, mas, também, agrava a crise que incide sobre a efetivação de direitos sociais. Afinal, é a partir dele que se privilegiam – e se privatizam – determinadas demandas, em detrimento daquelas gerais, que dizem respeito a toda a comunidade. Numa palavra, o ativismo judicial vai na contramão do ideário republicano.

ConJur — O artigo 48 da Constituição de Weimar estabelecia que, caso a ordem pública esteja em risco, o presidente do Reich poderia, sem necessidade de aval do Legislativo, tomar as medidas necessárias para restituir a lei e a ordem, podendo suspender direitos civis como habeas corpus, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão, direito de reunião e associação e autorizando expropriações. Historiadores e constitucionalistas dizem que esse facilitou a ascensão de Adolf Hitler e do nazismo. Concorda com essa crítica?
Lenio Streck 
— A ascensão do nazismo se dá a partir de uma série de fatores que, “grosso modo”, remontam à crise decorrente da Primeira Guerra, à reformulação do Partido dos Trabalhadores Alemães (depois, Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), à própria ascensão de Hitler não somente ao cargo de chanceler em 1933, mas, em seguida, ao maior cargo executivo, entre outros. Aqui um parêntesis: se o judiciário alemão não tivesse sido voluntarista ou “neoconstitucionalista” (é ironia minha), teria expulsado Hitler do país por causa do golpe da cervejaria. Eis o perigo de o judiciário não ser ortodoxo no cumprimento da Constituição e das leis. Bom, também aqui caberia lembrar o papel leniente da comunidade jurídica com a ascensão do nazismo e com a implementação do regime. O professor Ingo Müller, das Universidades de Oldenburg e Bremen, escreveu um livro magnifico sobre isso, chamado Furchtbare Juristen: Die unbewältigte Vergangenheit der deutschen Justiz (traduzido como Los juristas del
Los juristas del horror.
La justicia de Hitler: el pasado que Alemania no puede dejar atrás). Imperdível.

Volto. Evidentemente, essas aberturas na Constituição de Weimar – a que chamamos “autorização para a implementação de Estado de Exceção” – são falhas graves. São aberturas para ditadura. Contudo, o período de vigência de Weimar é curto (1919-1931), e antecede ao longo e totalitário governo de Hitler. Quero dizer, embora o nazismo não se dê sob sua vigência, isso não significa que não se desenvolveu, nos seus movimentos embrionários, muito antes de Hitler ascender ao poder, sob sua influência. Esse é um ponto importante.

De outro lado, respondendo à segunda parte da questão, ressalto que, volta e meia aqui no Brasil – e, sobretudo, ultimamente, em meio a esse ambiente de polarização política e ideológica em que vivemos -, há quem interprete equivocadamente o artigo 142 da Constituição de 1988 como se houvesse similaridade ao artigo 48 de Weimar. São coisas absolutamente distintas. Murilo de Carvalho tem razão quando coloca seu pessimismo em relação ao papel das forças armadas. Esse artigo 142 da atual Constituição é repetição de crises anunciadas. Só não estava tal previsão na Constituição de 1937. Enquanto não se tirar da Constituição essa “tutela velada” como a do artigo 142, não dormiremos o sono democrático com tranquilidade como o fazem os cidadãos das democracias europeias e a dos Estados Unidos. Sempre corremos o risco de alguém entender que “deve acabar com a balbúrdia”, se me entende a implicitude da assertiva.

ConJur — A falta de uma cláusula de barreira na Constituição de Weimar permitiu uma minoria sem representatividade entrar no Parlamento e fortaleceu o nazismo?
Lenio Streck 
— Entendo que não. Hitler ascende ao poder em 1933 impulsionado por uma já tensa insatisfação popular frente às condições econômicas da Alemanha. Há, para além disso, o contexto da derrota na Primeira Guerra, ainda presente. Hitler sabe manejar esse clima de insatisfação. Tornou-se chanceler e, um ano antes, o Partido Nazista alcançou 230 assentos governamentais, ocupando, junto aos comunistas, mais da metade do Reichstag. Quero dizer: não foi a falta de uma cláusula de barreira, mas a aderência popular-populista, de fato, o que moveu o fortalecimento do nazismo, consolidado, posteriormente, com a expansão das polícias estatais, voltadas a sufocar toda forma de oposição.

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