Diário de Classe

O discurso populista e a tentativa de reescrever a Constituição

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10 de agosto de 2019, 8h05

Testemunha da Bulgária comunista, o historiador Tzvetan Todorov[1], ao ensaiar quais seriam os inimigos à democracia na contemporaneidade, aponta o dedo não para as tão temidas ameaças externas ao modelo, caso do próprio comunismo que viu apoderar-se de seu país de origem durante sua juventude, por exemplo, mas para um fenômeno interno — íntimo, portanto —, possível, sobretudo, a partir das regras do jogo democrático: o fortalecimento de partidos de viés populista.

Atemporal, a questão é, inegavelmente, oportuna ao contexto brasileiro e abre no debate político da atualidade um amplo catálogo de interrogações: mais bem acabado produto de uma crise da democracia representativa em uma escala sem precedentes? Inevitável reflexo de outra crise — esta cíclica —, relacionada ao capitalismo que sustenta os modelos de bem-estar nessas mesmas experiências democráticas? Ou, a partir desse mesmo enredo econômico, saldo típico da dependência política dos resultados da economia?

Essas são algumas questões, sem dúvida importantes, mas não exatamente o que move este pequeno texto[2]. É que o populismo, conceituado em clássica leitura como uma tentativa de abolir as distâncias entre o povo e o poder através de um discurso demagógico, alinhado ao interesse do maior número de pessoas e transformado em uma demanda dirigida — mas não atendida — às instituições, fácil de assimilar e, ao mesmo tempo, difícil ou impossível de ser realizado, parece fragilizar conquistas alinhadas ao Estado de Direito. É esse o ponto que, penso, merece atenção da comunidade acadêmica, sobretudo a jurídica.

A partir disso, portanto, proponho uma premissa que, oportunamente, também serve para introduzir a discussão: o populismo é mais que um discurso à margem das instituições atrás da capitalização política. Embora persiga tal objetivo, ele toca a superfície mais sensível de problemas reais típicos do chamado grande número, e seus protagonistas são hábeis atores em identificá-los. De outro modo: ao lado da solução mítica que lhe encerra — e que em boa medida o caracteriza —, o discurso populista percebe os pontos de insuficiência da corrente orientada como racional e, a partir daí, promete a solução, como vem se colocando, no Brasil, uma espécie de marcha contra a criminalidade, a qualquer preço, por exemplo.

Assim, é possível traçar um paralelo: se é na reivindicação frustrada que o populismo encontra seu solo fértil, formando a tríade também composta de democracia e instituições, seu espaço é aquele em que expressiva parcela dos dispositivos da Constituição não obteve, até hoje, efetivação. Embora Laclau — de quem se extrai a premissa acima — perceba o fenômeno como importante ingrediente transformador das relações sociais contemporaneamente[3] (ponto que, sublinho, discordo), seu surgimento supõe, na verdade, um empobrecimento do papel da teoria constitucional. Claro. Afinal, nesse viés, a Constituição seria, e não mais que isso, apenas garantidora do acesso aos mecanismos de participação democrática no sistema, nublando — aí sim — o papel do Direito como um fator de transformação social. É dizer: admite-se não apenas mero papel procedimentalista[4] à jurisdição, mas, também, uma paradoxal espécie de democracia totalitária, em que o acesso ao poder se dá através do voto, mas seu exercício desvincula-se da Constituição. Nesse recorte, a partir dessa confusa combinação de fatores, o Direito e as instituições não seriam agentes transformadores no constitucionalismo contemporâneo, âmbito em que o Direito assume elevado grau de autonomia[5]. De outro modo, ao esperar do líder — e não do Direito democraticamente produzido e das instituições por ele balizadas — a solução à reivindicação, é um passo atrás no fortalecimento de nossos vínculos republicanos.

Nesse sentido, não é desarrazoado referir, no contexto em que se verifica o fenômeno do populismo, enfraquecimento do sentido da nossa Constituição. Há, afinal, uma espécie de reorganização de sentidos (em crítica alinhada a que Lenio Streck faz em relação ao positivismo jurídico), como parece figurar bom exemplo a plataforma eleitoral, convertida em política de combate ao crime organizado no estado do Rio de Janeiro, de seu atual governador, Wilson Witzel. E isso porque, ao propor o abate de indivíduos como “política” criminal, como cotidianamente faz em suas manifestações[6], ele desvincula a atividade estatal da Constituição. Longe da intersubjetividade que molda regimes democráticos, a ação do Estado é, assim, não mais que um ato de vontade, portanto.

Eis, afinal, o ponto de conexão entre exemplo e crítica: em contexto em que as instituições figuram distantes das demandas sociais e, pior, no imaginário popular apresentam-se como lócus privilegiado à prática criminosa, observa-se que esse mesmo imaginário aceita, em todos os níveis, portanto, uma indistinta discricionariedade de operadores do Direito, fazendo coro a uma espécie de contramedida ao famoso jargão em que a polícia prende e o juiz solta. É preciso, pois, outro ato discricionário, fazendo suceder, indistintamente à margem do texto constitucional, vontades de poder para dar conta do problema socialmente demandado. É nesse espaço que o discurso populista se insere, buscando atender a uma reivindicação frustrada (no exemplo utilizado, o institucional e insuficiente combate à criminalidade, sobretudo, nas metrópoles brasileiras), através de uma solução não apenas mítica, rápida (a sumária execução de indivíduos, através das polícias militares), mas, ainda, à margem das instituições (neste caso, a Defensoria Pública do Estado e a Secretaria de Segurança Pública do Estado)[7]. A criminalidade — ao atingir níveis cada vez maiores, sobretudo nos grandes centros urbanos — é um problema real, portanto, a abrir as portas ao discurso populista e sua mítica solução. Desvelado está, pois, seu espaço e seu contexto.

Como o direito de matar, entretanto, não é reservado aos órgãos de segurança pública (artigo 144, CF/88), ainda que exerçam o policiamento ostensivo (caso das polícias militares)[8][9], e a vida é, ademais, inviolável (artigo 5º, caput, CF), a referida “política pública” (necessariamente com aspas) seria, portanto, uma tentativa de reescrever a Constituição?

Parece-me que sim. Afinal, projetar “política pública” de combate à criminalidade através do extermínio é discricionariedade para além do permitido em âmbito executivo e legislativo. É, pois, tentativa de reescrever a Constituição. Justamente por isso, entende-se que o populismo se projeta reflexivo também a essa crise — do Direito e da democracia —, mas não se coloca, claro, como resposta legítima a ela. Ao contrário, agrava-a. Afinal, ocorre à margem das instituições, e se dá, portanto, fora do jogo de linguagem[10] que é o Direito.

Para encerrar: o discurso populista coloca-se como um íntimo inimigo da democracia — para lembrar mais uma vez a feliz expressão de Todorov —, acenando para significativos impactos no Estado Democrático de Direito. E isso porque, ao se projetar como uma tentativa de (re)significar sentidos — em que as propostas de Witzel são apenas um exemplo —, o populismo ultrapassa, nesse caso, os indispensáveis mecanismos de contenção do poder das maiorias, típicos do Estado Democrático de Direito. É lógico: ainda que alinhada à demanda institucionalmente não satisfeita, o agir político não pode atentar contra as garantias constitucionais voltadas a limitar os excessos do Estado. Como bem sublinhado no segundo capítulo de Verdade e Consenso, “uma vontade popular majoritária permanente, sem freios contramajoritários, equivale à volonté générale, a vontade geral absoluta propugnada por Rousseau, que se revelaria, na verdade, em uma ditadura permanente”. Ou seja, a indiscriminada filiação à vontade popular como forma de acessar e manter-se no poder, aproximando o demos da realização de seus desejos à margem dos necessários mecanismos contramajoritários, ignora a “essência do Estado de Direito”, que é, enfim, a “submissão do poder ao [próprio] Direito”[11].


[1] TODOROV. Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] Síntese de Os impactos do discurso populista no Estado Democrático de Direito, inédito.
[3] Na edição brasileira de On Populist Reason, Laclau observa que “quando um projeto de transformação social profunda começa a ser implementado, ele entrará em choque, em vários pontos, com a ordem institucional vigente, e esta terá de ser modificada mais cedo ou mais tarde”. O populismo, ao colocar-se contra as instituições, corresponderia, entre outros fatores, a um fator de transformação social. LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 20. Grifo nosso.
[4] Em que Habermas e Garapón sejam, talvez, os maiores expoentes. GARAPÓN, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris: Odile Jacob, 1996. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

[5] Como referido no Dicionário de Hermenêutica, o “Constitucionalismo Contemporâneo é um fenômeno que surge no segundo pós-guerra. Essa expressão foi cunhada no livro Verdade e Consenso para superar as aporias das teorias neoconstitucionalistas […] representa(ndo) uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos”. Nesse contexto, não se perde de vista, sobretudo, que o “aspecto material da constitucionalização do ordenamento consiste na conhecida recepção no sistema jurídico de certas exigências da moral crítica na forma de direitos fundamentais. Em outras palavras, o Direito adquiriu uma forte carga axiológica, assumindo fundamental importância a materialidade da Constituição”. É justamente por isso que não se pode afastar o seu caráter, evidentemente, transformador. STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 37-38.
[6] “Em diversas oportunidades, Witzel defendeu que policiais atirem para matar ao verem criminosos armados, ainda que não haja risco iminente de confronto – condição necessária para configurar legítima defesa, segundo a legislação atual. Em novembro, logo após ser eleito, ele afirmou ao jornal "O Estado de S. Paulo" que "a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-suspeitos-witzel-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid. Acesso em: 28 jul. 2019.
[7] Em maio, em operação realizada pela polícia fluminense, “é possível ver um sniper da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), a força de elite da Polícia Civil, disparando uma rajada de fuzil contra uma tenda utilizada por evangélicos que fazem vigílias na região, segundo vídeo exibido pela "TV Globo". A ação viola protocolos estabelecidos pelo próprio governo do Rio. Em outubro, após decisão liminar obtida pela Defensoria Pública do Estado, a Secretaria de Segurança do Rio (extinta por Witzel em janeiro) publicou uma instrução normativa com uma série de orientações para a realização de operações policiais. Entre elas, está a proibição de que atiradores em helicópteros disparem rajadas contra comunidades”. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-suspeitos-witzel-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid. Acesso em: 28 jul. 2019.
[8] Por certo não se desconhece as situações envolvendo legítima defesa ou o risco de morte de outrem, sob ameaça.
[9] Há, contudo, fragilização desse limite à atuação estatal, com o chamado pacote anticrime do Ministro Sérgio Moro e o excludente de ilicitude que isenta de pena agentes de segurança pública que matarem "em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado" e a imunidade para qualquer pessoa que cometer crimes sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. BRASIL. Anteprojeto de Lei Anticrime. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf. Acesso em: 4. fev. 2019.
[10] No sentido wittgensteiniano da expressão, à luz com as Investigações Filosóficas. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 87.

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