Luta pela democracia

Positivismo jurídico não legitimou nazismo, e sim combateu o movimento de Hitler

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9 de agosto de 2019, 9h00

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos juristas passaram a afirmar que o positivismo tinha sido responsável pela ascensão de Adolf Hitler e pelas atrocidades do regime nazista. No entanto, positivistas, como Hans Kelsen, se opuseram ao ditador, defendendo a democracia a o papel das instituições. Mas prevaleceu a tese de Carl Schmitt de que o guardião da Constituição de Weimar era o presidente do Reich. Com o Judiciário enfraquecido, Hitler teve carta branca para impor suas vontades.

O positivismo jurídico está ligado ao direito emanado por autoridades competentes. E as normas têm uma existência que independe da moral, afirmou o procurador do Estado do Rio de Janeiro Rodrigo Borges Valadão, doutorando na Universidade de Friburgo, na Alemanha, no evento O positivismo jurídico legitimou o nazismo? Refutação e superação de uma lenda, ocorrido em 26 de junho na capital fluminense.

A Constituição alemã de Weimar, que completa 100 anos em 11 de agosto, foi muito influenciada por positivistas, apontou Valadão. Um exemplo está na forma de governo, de república parlamentar, que era a que conferia maior legitimidade popular aos atos dos políticos, segundo os adeptos daquela corrente.

Os direitos sociais, marca da Constituição de Weimar, também são uma vitória dos positivistas, destacou o procurador. “De um lado, a direita não queria esses direitos. Já a esquerda não achava que eles deveriam estar na Carta. A solução dos positivistas foi colocar os direitos no texto constitucional e depois buscar assegurar a efetividade deles.”

No entanto, a Constituição de Weimar não era popular, ressaltou Valadão. A esquerda queria derrubá-la para implementar o comunismo. Já a direita buscava restituir a monarquia, encerrada ao fim da Primeira Guerra Mundial.

Como a Carta de Weimar era considerada fraca e incapaz de resolver os problemas sociais, começou a haver um movimento de repensar o papel do Estado. O debate opôs os juristas Carl Schmitt, que aderiu ao Partido Nazista em 1933, e Hans Kelsen, que foi perseguido pelo regime.

No livro O guardião da Constituição, publicado em 1929, Schmitt questiona nessa obra o papel do Judiciário como guardião da Constituição. Para ele, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, pois o povo é quem o escolhe. Na visão do jurista, o presidente, alicerçado pelo artigo 48 da Constituição de Weimar, representava a unidade da autoridade política que traz consigo os anseios sociais do povo. Assim, a revisão dos atos legislativos por um tribunal independente é uma afronta clara à soberania estatal.

Além disso, Schmitt diz que a ideia de Constituição não se equipara a um simples conjunto de leis. O jurista afirmava que a Constituição é a decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência.

Em 1931, Hans Kelsen publicou uma resposta ao livro de Carl Schmitt com o título Quem deve ser o guardião da Constituição?. Na obra, Kelsen destaca a importância de um tribunal constitucional para uma democracia moderna. Foi inspirada em Kelsen que a Áustria escreveu a sua Constituição de 1920, que criava uma Corte Constitucional com o poder de fazer o controle concentrado de constitucionalidade.

“Como poderia o monarca, detentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Estado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder, e a única com vocação para o controle de sua constitucionalidade?”, questiona Kelsen.

O Estado nazista, conforme Carl Schmitt, privilegiava o conteúdo das normas em detrimento da forma. As leis também não precisavam ser escritas – a Constituição de Weimar, em tese, esteve em vigor durante todo o período em que Hitler ficou no poder (1933-1945). E o führer era supremo nesse modelo. “Se a vontade do führer valia mais do que tudo, uma norma poderia deixar de ser aplicada por sua vontade”, explicou Rodrigo Valadão.

Já o Estado liberal defendido por Hans Kelsen estabelecia a tripartição dos Poderes. Nesse modelo, as normas só têm eficácia se promulgadas por um legislador com legitimidade popular. Uma diferença importante: no Estado liberal, não há crime sem lei prévia que o defina. Já no Estado nazista, não há crime sem pena, mas o delito pode ser definido após o ato ser praticado, conforme a vontade do führer, apontou Valadão.

A disputa intelectual dos dois chegou ao Tribunal do Estado no caso Prússia contra Reich. No dia 25 de outubro de 1932, a tese de Schmitt foi a vencedora e o tribunal negou-se o poder para definir os limites de atuação do presidente e do chanceler. Em janeiro de 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg. Com a morte deste, Hitler atropelou a Constituição de Weimar, concentrou os poderes do presidente e instaurou uma ditadura nazista.

Razões do mito
“O positivismo foi uma verdadeira resistência ao nazismo”, afirmou Rodrigo Valadão no evento. A seu ver, várias das atrocidades do nazismo poderiam ter sido evitadas pela aplicação de princípios e normas positivistas da Constituição de Weimar, como a anterioridade da lei penal.

Segundo o procurador, as críticas ao positivismo distorcem o movimento. Isso porque enxergam os aplicadores do Direito como meros robôs, sem sentimentos morais. Contudo, o positivismo não nega a importância da moral, da sociologia, da filosofia ou da história na criação de leis. Ele apenas se destina a explicar o Direito como forma e teoria.

Na visão de Valadão, o mito de que o positivismo legitimou o nazismo decorre, em parte, de um movimento, no pós-guerra, de crítica ao regime anterior por juristas. “Em momentos de transição, o papel dos juristas é criticar ou legitimar o sistema anterior ou o novo. Isso para garantir a importância dos juristas. Contribuições tendem a legitimar a nova ordem, garantir o desenvolvimento”. Muitos desses juristas também queriam limpar suas biografias, por terem apoiado o regime nazista, destacou o procurador.

Outra razão dessa falsa impressão vem do recurso aos valores em tempos turbulentos. “Em épocas de crise, surge a ideia de que a forma é algo menor. Surge a ideia de que o Direito não deve só descrever o Direito, mas resolver problemas concretos. Abordagens descritivas, como o positivismo, são substituídas pelo que o Direito deve fazer”, explicou.

Dessa maneira, o Direito Natural se fortaleceu na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Ancorado em uma ideia dos valores, o Direito Natural queria proteger a ideia jurídica e os valores morais, citou o procurador. Logo, o Direito voltou a ter carga moral.

Opinião de Gilmar
Estudioso do processo de controle concentrado de constitucionalidade e com doutorado na Alemanha, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes já mostrou publicamente qual é a sua opinião nesse embate entre Kelsen e Schmitt.

Em 2006, ele assinou a apresentação da edição em português da obra mestra de Schmitt O guardião da Constituição, que foi publicada pela editora Del Rey. Para o ministro, a história deu razão a Kelsen. Depois da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países democráticos adotou um sistema como o que defende Kelsen.

“A controvérsia sobre a jurisdição constitucional, ápice de uma disputa entre dois dos mais notáveis juristas europeus do início do século XX, mostra-se relevante ainda hoje. O debate sobre o papel a ser desempenhado pelas Cortes Constitucionais, atores importantes e, às vezes, decisivos da vida institucional de inúmeros países na atualidade, obriga os estudiosos a contemplarem as considerações de Schmitt (e, inequivocamente, as reflexões de Kelsen) a propósito do tema”, afirma Gilmar Mendes, no texto.

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