Poderes excessivos

Por prever suspensão de direitos, Weimar facilitou ascensão de ditadura de Hitler

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8 de agosto de 2019, 9h00

A Constituição alemã de Weimar – que completa 100 anos em 11 de agosto – é saudada por ter sido pioneira no estabelecimento de direitos fundamentais e sociais. Contudo, especialistas afirmam que a carta ajudou os nazistas a chegarem ao poder e Adolf Hitler a fundar um Estado ditatorial.

A Carta de Weimar instituiu um regime semipresidencialista – o sociólogo Max Weber foi um dos principais responsáveis por isso, afirma o professor Filomeno Moraes em artigo. Pela primeira vez em sua história, a Alemanha tinha uma democracia de verdade, com eleições para presidente e Legislativo (Reichstag — agora bem mais influente do que na época do Império Alemão) a cada quatro anos. Nelas, todos os cidadãos com mais de 20 anos podiam votar. Cabia ao presidente indicar um chanceler para lhe ajudar na condução do governo.

Um dos problemas era a falta de uma cláusula de barreira. Isso permitiu a proliferação de partidos minúsculos no Reichstag, dificultando a formação de maiorias. O sistema levou a diversas mudanças de governo na década de 1920. Nas eleições de 1933, integrantes de 40 legendas diferentes disputaram assentos no Parlamento.

Ao comentar o sistema eleitoral brasileiro em 2016 — há 33 partidos políticos no país —, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes criticou a ausência de uma cláusula de barreira. Em uma comparação histórica, ele falou que situação semelhante permitiu a chegada de Hitler ao poder na Alemanha. O presidente do TSE explicou que a trava existente hoje na Alemanha, contra partidos com menos de 5%, é um aprendizado com a República de Weimar. Foi a possibilidade de uma minoria sem representatividade entrar no Parlamento que levou Hitler ao poder, explicou Gilmar em um seminário.

No Brasil, a cláusula de barreira foi aprovada na Lei dos Partidos Políticos, em 1995. Porém, o STF declarou a restrição inconstitucional em 2006. Seguindo voto do ministro Marco Aurélio, relator, o tribunal entendeu que as cláusulas imporiam dificuldades para os partidos minoritários, sufocando a representação de uma parte dos eleitores.

Porém, não foi apenas a ausência de uma cláusula de barreira que levou os nazistas ao poder, disse Gilmar Mendes à ConJur. Ele ressalta que isso se deve ao desgaste da base política democrática, à crise econômica – que fortaleceu partidos políticos radicais, como o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Partido Nazista – e a escolha de Hitler como chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg.

Os colunistas da ConJur Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy e Ingo Sarlet também minimizam a falta de uma cláusula de barreira na ascensão do nazismo.

“As condições por intermédio das quais o nazismo avançou independem — necessariamente — de arranjos mais singelos, como mera cláusula de barreira. A situação posta era outra, e o ódio e o preconceito avançariam de qualquer forma. Os traumas da guerra, o rancor de Versalhes, a crise econômica, a hiperinflação, são situações que não dependiam de cláusulas de barreira ou quaisquer outros arranjos. Caso o presidente Hindenburg não tivesse nomeado Hitler chanceler e lhe atribuído os poderes excepcionais previstos no artigo 48 da Constituição de Weimar, talvez não se tivesse chegado onde se chegou. De todo modo, não se sabe se alguma outra evolução radical, ainda que talvez menos nefasta na sua extensão, teria sido evitada.”

Nessa mesma linha, o jurista Lenio Streck, também colunista da ConJur, destaca a habilidade de Hitler em manipular a insatisfação dos alemães.

“Hitler ascende ao poder em 1933 impulsionado por uma já tensa insatisfação popular frente às condições econômicas da Alemanha. Há, para além disso, o contexto da derrota na Primeira Guerra, ainda presente. Hitler sabe manejar esse clima de insatisfação. Tornou-se chanceler e, um ano antes, o Partido Nazista alcançou 230 assentos governamentais, ocupando, junto aos comunistas, mais da metade do Reichstag. Quero dizer: não foi a falta de uma cláusula de barreira, mas a aderência popular-populista, de fato, o que moveu o fortalecimento do nazismo, consolidado, posteriormente, com a expansão das polícias estatais, voltadas a sufocar toda forma de oposição.”

Superpoderes presidenciais
Há mais consenso sobre o papel do artigo 48 da Constituição de Weimar na implementação de uma ditadura nazista na Alemanha. O dispositivo estabelecia que, caso a ordem pública estivesse em risco, o presidente do Reich poderia, sem necessidade de aval do Legislativo, tomar as medidas necessárias para restituir a lei e a ordem.

Para isso, poderia suspender direitos civis como Habeas Corpus, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão, direito de reunião e associação e autorizar expropriações.

O artigo 47 foi outro dispositivo relevante para a tomada do Estado alemão por Hitler. Segundo ele, o presidente era o supremo-comandante das Forças Armadas, poderia nomear os seus oficiais e tinha competência para tomar as "medidas apropriadas" – incluindo usar militares — para combater distúrbio na ordem ou segurança públicas.

Em tese, o Reichstag poderia suspender as medidas do presidente, conforme previa o artigo 48, III. No entanto, o presidente evitava esse controle do Parlamento dissolvendo-o antecipadamente, o que lhe era permitido pelo artigo 25, ressalta a advogada Karina Nunes Fritz, doutora pela Humboldt Universität e ex-pesquisadora do Tribunal Constitucional alemão e do Instituto Max-Planck. Dessa maneira, opina, o Executivo ficou desproporcionalmente mais forte do que o Legislativo.

Em janeiro de 1933, o Partido Nazista foi o mais votado para o Reichstag, e o presidente Paul von Hindenburg nomeou Adolf Hitler chanceler. Um mês depois, o Parlamento foi incendiado. Hitler usou o evento como argumento de que os comunistas estavam conspirando para tomar o poder.

Ele então apresentou o Decreto do Incêndio do Reichstag. Baseado no artigo 48 da Constituição de Weimar, a norma suspendeu diversos direitos fundamentais e sociais, como a liberdade de expressão, o Habeas Corpus, o direito de reunião e a inviolabilidade do domicílio. O decreto também passou ao governo central poderes atribuídos aos estados, aumentou penas – passando a prever pena de morte para quem causasse incêndio em edifícios públicos – e permitiu a construção de campos de concentração.

Em março de 1933, o Congresso aprovou a Lei Habilitante. Também com base no artigo 48 da Constituição de Weimar, a norma permitiu que o Executivo aprovasse leis, sem ter que seguir o processo legislativo fixado pela Carta – desde que elas não afetassem as instituições.

Mas este “detalhe” não foi seguido por Hitler. Quando Hindenburg morreu, em agosto, o líder nazista assumiu os poderes do presidente, com base em uma lei que aprovara no dia anterior. Ao fazer isso, o líder nazista contrariou a regra constitucional de que, se o presidente deixasse o cargo ou morresse, o presidente da Suprema Corte, e não o chanceler, deveria assumir o posto de chefe do Executivo até a promoção de novas eleições. Como concentrou os poderes do presidente, Hitler também afetou o funcionamento das instituições. Entretanto, a Lei Habilitante não estabelecia que medida poderia ser tomada para contestar a regra de que as leis do Executivo não poderiam afetar o funcionamento dos Poderes.

Assim, a concentração de poderes por Adolf Hitler jamais foi contestada judicialmente. Embora não tenha sido revogada, a Constituição de Weimar, na prática, deixou de vigorar com a aprovação da Lei Habilitante e a implementação da ditadura nazista.

Excesso de poderes
Gilmar Mendes explicou à ConJur que a Lei Fundamental de Bonn, que sucedeu a Constituição de Weimar, buscou evitar o regime de exceção permitido pelo artigo 48 desta norma. Para tanto, estabeleceu o voto de desconfiança construtivo, que só permite ao Parlamento destituir um chanceler quando já indicar outro nome para o cargo. A Lei Fundamental também trouxe a ideia de cláusulas pétreas e valorizou os direitos fundamentais de maneira mais relativa, aponta o ministro.

Lenio Streck analisa que a Constituição de Weimar facilitou a ascensão do nazismo, mas não deu causa ao movimento. “Evidentemente, essas aberturas na Constituição de Weimar – a que chamamos ‘autorização para a implementação de Estado de Exceção’- são falhas graves. São aberturas para ditadura. Contudo, o período de vigência de Weimar é curto e antecede ao longo e totalitário governo de Hitler. Quero dizer, embora o nazismo não se dê sob sua vigência, isso não significa que não se desenvolveu, nos seus movimentos embrionários, muito antes de Hitler ascender ao poder, sob sua influência”.

Por sua vez, Arnaldo Godoy e Ingo Sarlet afirmam que o artigo 48 da Constituição de Weimar “permitiu a existência de um estado de exceção permanente”. Contudo, o mecanismo não foi usado apenas por Hitler, ressaltam. E, muitas vezes, o dispositivo assegurou a manutenção da democracia.

“É preciso ter em mente que o uso recorrente de tal expediente, manejado mais de uma centena de vezes por Friedrich Ebert, social-democrata, até a sua morte, em 1925, o foi para o efeito de assegurar a manutenção da própria democracia. Após a assunção do monarquista e conservador Paul von Hindenburg, o herói e mais consagrado dos marechais alemães na Primeira Guerra Mundial, como presidente do Reich, mesmo que o instituto tenha sido muito menos utilizado, é que aos poucos foi se estabelecendo uma base – dada a circunstância de que a coligação majoritária que prevaleceu durante o processo constituinte, liderada pelos socialdemocratas, não conseguiu se manter no poder e gradualmente foi perdendo sua influência”.

E, na realidade, Hinderburg foi quem usou as prerrogativas do artigo 48, promoveu a suspensão de direitos e facilitou a ascensão do nazismo, opinam Godoy e Sarlet.

“Ao fim e ao cabo, foi Hindenburg quem, já tendo nomeado Hitler como chanceler do Reich (chefe do governo), em janeiro de 1933, acabou por se valer do expediente, em virtude da pressão exercida pelos nacional-socialistas quando da queima do Reichstag, atribuindo-lhe poderes de exceção que, como já se deveria esperar, foram utilizados para a consolidação do poder pelos nazistas e instauração da mais feroz ditadura de direita já conhecida.”

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