Opinião

A temerária autorização para que Judiciário e Fazenda celebrem negócios processuais

Autor

  • Nida Saleh Hatoum

    é doutoranda em Direito Civil pela USP sócia diretora da área de Contencioso Cível Especializado e Direito Contratual do escritório Medina Guimarães Advogados advogada e professora.

8 de agosto de 2019, 6h42

A Medida Provisória 881/2019 incluiu, no artigo 19 da Lei 10.522/2002, que “dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados e entidades federais e dá outras providências”, o parágrafo 8º, com a seguinte redação: “Os órgãos do Poder Judiciário e as unidades da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderão, de comum acordo, realizar mutirões para análise do enquadramento de processos ou de recursos nas hipóteses previstas neste artigo, e realizar adequação procedimental com fundamento no disposto no art. 190 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”.

O dispositivo, portanto, autoriza que os órgãos do Poder Judiciário celebrem negócios jurídicos processuais com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos termos do artigo 190 do CPC/2015, para a realização de mutirões ou alteração do procedimento.

Para além de outras questões preocupantes que foram inseridas na medida provisória, essa, em especial, causa certa inquietação, sobretudo se se considerar que o juiz (e aqui se encontram compreendidos todos os órgãos do Poder Judiciário), a despeito de participar como sujeito de alguns negócios processuais típicos, a exemplo do saneamento compartilhado (conforme o artigo 357, parágrafo 3º) e da celebração de calendário processual (conforme o artigo 191), não é sujeito dos negócios jurídicos processuais atípicos, celebrados a partir da cláusula geral de negociação inserida no artigo 190 do CPC/2015, mencionado expressamente pelo já referido parágrafo 8º.

Cuida-se, a princípio, de interpretação literal do próprio artigo 190, cujo caput prevê expressamente que as partes podem celebrar negócios processuais se preenchidos alguns requisitos e cujo parágrafo único estabelece que a atuação do juiz está adstrita ao controle de validade em hipóteses relativamente restritas. O artigo 200, caput, do CPC, aliás, estabelece que os atos das partes (aí incluídos os negócios processuais) produzem efeitos imediatamente, condicionando somente a eficácia da desistência (que nem negócio processual é, a despeito de se tratar de ato processual) à homologação judicial, nos termos do parágrafo único.

O juiz pode, do que se extrai dos dispositivos do Código de Processo Civil pertinentes ao assunto, assim: (i) participar de alguns negócios processuais típicos como sujeito; (ii) controlar a validade do negócio processual em determinadas situações (artigo 190, parágrafo único, do CPC/2015); e (iii) apenas aplicar o conteúdo do negócio processual celebrado pelas partes.

É verdade que o juiz deve modificar o procedimento, adequando-o às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito (artigo 139, VI, do CPC/2015), e é verdade, também, que a sua participação em negócios processuais típicos tende a viabilizar uma prestação jurisdicional mais adequada.

Parece temerária, contudo, a autorização para que o Poder Judiciário e a Fazenda Nacional celebrem negócios processuais com fundamento no artigo 190 do CPC/2015, conquanto não seja o Poder Judiciário sujeito das convenções processuais. E mais: além de possibilitar a celebração de negócios processuais atípicos pelo Poder Judiciário, o artigo 19, parágrafo 8º, da Lei 10.522/2002, com redação dada pela MP, exclui da negociação a parte que litiga com a Fazenda Pública, o que desvirtua completamente a finalidade do instituto, que é tornar o processo e o procedimento mais adequados à cada lide, de acordo com suas especificidades.

A intenção do dispositivo, por outro lado, ao que tudo indica, é oferecer à Fazenda Nacional ferramentas para o gerenciamento dos seus processos, sem qualquer participação da parte contrária.

O parágrafo 8º, parece correto afirmar, viola o próprio artigo 190 na medida em que suprime a manifestação de vontade (elemento nuclear do suporte fático dos negócios jurídicos em geral) de um dos verdadeiros sujeitos dos negócios jurídicos processuais atípicos, o que, repita-se, esvazia o propósito do instituto.

Isso não significa que a Fazenda Nacional não possa celebrar negócios processuais com esteio no artigo 190. O parecer apresentado pela Comissão Mista da Medida Provisória 881/2019, divulgado no dia 11 de julho, inclusive, recomenda a inserção de um parágrafo 9º, o qual dispõe que, “sem prejuízo do disposto no § 8º, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional regulamentará a celebração de negócios jurídicos processuais em seu âmbito de atuação, inclusive na cobrança administrativa ou judicial da dívida ativa da União”.

É extremamente desejável que a Fazenda Pública, em todos os níveis, celebre negócios processuais com vistas a uma prestação jurisdicional mais justa, adequada e eficaz, sobretudo porque se trata da maior litigante do país. A negociação, todavia, deve ocorrer com seu oponente, e não com o Poder Judiciário, sobretudo de modo exclusivo.

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