Opinião

Grupo de trabalho da Câmara acerta ao tirar plea bargain do "pacote anticrime"

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8 de agosto de 2019, 14h36

A expressão “complexo de vira-lata”, cunhada pelo célebre dramaturgo Nélson Rodrigues, refere a posição de inferioridade em que os brasileiros nos colocamos em vários aspectos da vida nacional. O fenômeno tem se verificado até mesmo no que diz respeito ao sistema de justiça.

Nunca foi tão recorrente entre nós a disposição para importar institutos e conceitos jurídicos de outros países – em suma, exotismos –, notadamente dos Estados Unidos, cujo Direito tem ancoragem na “common law”, que é incompatível com o sistema romano-germânico da “civil law” que informa nosso ordenamento jurídico.

Por meio do chamado “Projeto Anticrime”, se pretende ver implementado entre nós o instituto da “plea bargain”, através do qual, grosso modo, o acusado transacionaria com o órgão da acusação sobre seu direito de liberdade, assumindo a culpa pela prática de delitos, confissão que lhe renderia pena menor, além de outros favores.

Dá-se, entretanto, que a liberdade, por constituir direito fundamental essencial, e como tal tutelado pela Constituição, representa, entre nós, bem jurídico indisponível e, por isso mesmo, inegociável à conveniência das partes. A ninguém é dado, “sponte sua”, renunciar à própria liberdade, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, muito menos sob a justificativa de um pragmatismo que visaria a evitar o assolamento da nossa justiça.

Há quem possa argumentar que esse sistema já estaria em vigor entre nós posto que instituído pela Lei 9.099/95, ou mesmo por aquela de número 12.850/13, que regulamentou a polêmica delação premiada. Estaria ainda contemplado em projetos de reforma da legislação penal. Tais circunstâncias, entretanto, não apagam, em absoluto, a inconstitucionalidade que vinca o projeto.

Abstraída essa incontornável circunstância, a experiência ianque demonstra que ele se apresenta mesmo como pouco recomendável.

Com efeito, números disponíveis em fontes abertas demonstram que, em terras de Tio Sam, 95% das condenações lavradas são provenientes da “plea bargain”, sendo certo que 18% dos condenados admitiram crimes que não cometeram; 65% daqueles que assumiram a culpa são pessoas “de cor”, e, ainda, que em 83% dos casos em que houve posterior possibilidade de identificação exata do criminoso por exame de DNA chegou-se à conclusão de que o autor do delito era outra pessoa que não aquela que admitiu a culpa no acordo celebrado (cf. https://www.guiltypleaproblem.org/).

Não bastasse essa impressionante estatística, discutem-se, acesamente, naquele país as teratologias representadas pela oververcharging (excesso de acusação) e da verdadeira coação (vis compulsiva) exercida sobre os imputados quando das tratativas da barganha. Será diferente entre nós, considerando que os imensos poderes atribuídos ao Ministério Público brasileiro não encontram paralelo em todo o Planeta? Nos Estados Unidos, sabido é que órgãos da acusação são eleitos diretamente ou indicados politicamente, conforme o caso, e possuem mandato temporário. Há, portanto, controle do Estado e da sociedade. O procurador geral, chefe do Departamento de Justiça, é nomeado pelo presidente da República e demissível ad nutum. Sujeita-se, portanto, ao Poder Executivo. Aqui, o órgão da acusação tem toda liberdade para voar.

A acromegalia funcional do Ministério Público no Brasil, que já desequilibra a regra da paridade de armas entre acusação e defesa – o que, por si só, configura um estado de coisas inconstitucional – só seria agravada, a ponto de o Ministério Público vir a se consolidar definitivamente como imperador e suserano absoluto do processo penal, promovendo ele próprio a investigação, a acusação e a identificação e aplicação das penas. Em resumo: estaríamos a concentrar, em um só órgão, todo o sistema de justiça, o que se mostra temerário, para se dizer o mínimo.

Daí o irrecusável acerto do Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados de ter retirado do projeto este malfadado instituto, que não tem cabimento entre nós.

O sentimento para o qual chamou atenção Nelson Rodrigues, a partir de uma derrota na esfera futebolística, não pode nos conduzir, através do mimetismo, para o avesso da nossa democracia.

Restaria, agora, examinar sob estas mesmas perspectivas a proposta do Ministro Alexandre de Moraes, que foi aprovada, e que, salvo melhor juízo, padeceria dos mesmos vícios.

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