Opinião

As inconstitucionalidades do código paulistano de defesa do consumidor

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5 de agosto de 2019, 17h25

O presente artigo se presta a discutir a legislação municipal consumerista recentemente promulgada na cidade de São Paulo, em seus aspectos de constitucionalidade e aplicabilidade.

Entende-se que o CDC municipal encontra-se maculado por uma grave inconstitucionalidade, envenenando por completo seu conteúdo e impossibilitando sua continuidade no mundo jurídico.

O artigo 24, V e VIII, da Constituição Federal atribui à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar, concorrentemente, sobre produção, consumo e responsabilidade por dano a consumidores.

Seguindo o modelo de repartição de competência legislativa traçado pelo artigo 24, parágrafos 1º a 3º[1], da CF, compete à União dispor sobre normas gerais relativas a consumidores e responsabilidade por dano a eles, e, aos estados e ao DF, dispor de forma supletiva ou suplementar sobre tais matérias, dependendo da existência de lei nacional.

A União, valendo-se dessa competência legislativa, editou a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), a qual dispôs sobre normas gerais de proteção ao consumidor e da relação de consumo.

Revela o CDC tratar-se de norma geral, podendo não conter disciplina exaustiva sobre a matéria, de modo que compete aos estados e DF suplementá-la para atender a peculiaridades locais, desde que não ingresse na disciplina própria da lei nacional sobre o tema ou dela divirja, conforme mandamento constitucional (artigo 24, parágrafos 1º a 4º, CF).

A definição do que podem ser consideradas normas gerais ou normas suplementares, para fins de repartição de competência legislativa, é questão tormentosa que clama delimitação da outorga constitucional legislativa entre os distintos níveis de poder do modelo de federalismo brasileiro.

Segundo José Afonso da Silva, normas gerais “são normas de leis, ordinárias ou complementares, produzidas pelo legislador federal nas hipóteses previstas na Constituição, que estabelecem princípios e diretrizes da ação legislativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”[2].

Na concepção de Marçal Justen Filho, ao discorrer sobre as “normas gerais” no sistema constitucional de repartição de competência legislativa, ressalta tratar-se de conceito jurídico indeterminado cujo núcleo de certeza positiva compreende “os princípios e regras destinadas a assegurar um regime jurídico uniforme […] em todas as órbitas federativas”[3].

A identificação das normas gerais ou suplementares deve se fazer caso a caso. Nesse sentido, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em acórdão de sua lavra, observou que, se a lei “especializa e aprofunda questões que são de interesse predominante e tratamento possivelmente diferenciado de uma entidade federada […], cuida-se de competência estadual e escapa-se do âmbito da norma gerais”[4].

Conquanto seja vedada, em regra, aos estados e Distrito Federal a edição de normas gerais, “eventual regulação em caráter geral por parte dos entes federados não implica necessariamente a sequela de sua inconstitucionalidade, designadamente no caso de a unidade federada apenas reproduzir o conteúdo da norma geral federal”[5].

É cediço que o constituinte de 1988 enumerou, esclarecedoramente, uma parte das competências reservadas aos municípios, a exemplo da possibilidade de instituir guardas municipais para a proteção de bens, serviços e instalações (artigo 144, parágrafo 8º) e de organizar e prestar os serviços públicos de interesse local (artigo 30, V).

Visando resguardar as peculiaridades locais, a Constituição também confere aos municípios a competência de suplementar os diplomas legislativos federais e estaduais, inclusive as decorrentes do exercício da competência legislativa concorrente, prevista no artigo 24 da CF.

A proteção do consumidor não é alheia à esfera de competência legislativa dos municípios, como ressaltou o ministro Eros Grau no RE 432.789/SC (DJ 7/10/2005): "[…] Incluem-se no âmbito dos assuntos de interesse local os relativos à proteção do consumidor. Vale mesmo dizer: o Município está vinculado pelo dever de dispor sobre essa questão, no plano local".

Cumpre esclarecer que a lei é o ato jurídico normativo votado pela Câmara Municipal nos termos da lei orgânica, sancionado pelo prefeito, ou por este vetado, rejeitado o veto pela Câmara, e promulgado na forma estabelecida.

Ao elaborar uma lei, o legislador municipal deve em primeiro plano atender à competência do município para legislar sobre determinada matéria (discriminação constitucional de competência). Após, deve verificar quem é o detentor da iniciativa para deflagrar o processo legislativo, sob pena de vício insanável.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já julgou compatíveis com a Constituição leis municipais versando sobre fixação de tempo razoável de espera dos usuários dos serviços de cartórios (RE 397.094/DF, rel. ministro Sepúlveda Pertence, DJ 27/10/2006), instalação de sanitários (AI 45.3178-AgR/SP, rel. ministra Cármen Lúcia, DJ 16/2/2007), cadeiras de espera (AI 506.487-AgR/PR, rel. ministro Carlos Velloso, DJ 17/12/2004), painel opaco entre os caixas e os clientes (RE 694.298-AgR/SP, rel. ministro Luiz Fux, DJe 21/9/2012) e portas de segurança (ARE 774.305-AgR/PR, rel. ministro Luiz Fux, DJe 27/4/2016) em agências bancárias; bem como a fixação do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais (Súmula Vinculante 38).

Esses precedentes têm em comum cuidarem de normatização municipal visando ao conforto dos munícipes nos locais de atendimento ao público e à sua segurança. A espécie conduz, entretanto, a uma discussão diferente.

In casu, o município de São Paulo, ao legislar sobre Direito do Consumidor, não se restringiu aos interesses locais, mas invadiu competência alheia.

Certo é que o município, ao disciplinar sobre matéria de Direito do Consumidor, invadiu competência legislativa concorrente, bem como impõe a empresas situadas no município de São Paulo situação de desigualdade com as localizadas em outros municípios, dentro do mesmo estado, afrontando diretamente o princípio da livre concorrência, petrificado no inciso IV, artigo 170, da Constituição Federal.

Tem-se uma inconstitucionalidade formal, por invasão de competência legislativa da União para estabelecer normas gerais sobre relação de consumo, nos termos do artigo 24, V, e parágrafos 1º a 3º, da Constituição.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou favoravelmente a Ação Direta de Inconstitucionalidade 750-RJ, que declarou inconstitucionais os incisos II, III e IV do artigo 2º da Lei estadual 1.939/1991, que dispunha sobre a obrigatoriedade de informações específicas nos rótulos de produtos alimentícios comercializados no estado do Rio de Janeiro. A decisão é um importante precedente em litígios consumeristas e pode auxiliar a afastar leis estaduais e municipais mais rígidas que o Código de Defesa do Consumidor.

A invasão de matéria que não lhe é afeta viola, além dos princípios constitucionais de divisão de competência, a ordem social, visto que coloca em risco a atividade econômica de inúmeros setores em uma situação condicionada limitante.

Na lei ora debatida, encontramos uma série de violações graves, relacionadas ao mérito apresentado pelo legislador, e as consideradas mais abusivas ou absurdas serão agora exploradas.

O inciso I do artigo 4º apresenta como cláusula abusiva de contratos consumeristas aquelas que prevejam a eleição de foro para dirimir conflitos diverso daquele onde reside o consumidor.

Tem-se de um lado o Código de Processo Civil (artigo 63), que permite a eleição de foro competente, trazendo inclusive a possibilidade de anulação da cláusula acaso seja abusiva, e, de outro, o Código de Defesa do Consumidor (artigos 6º e 51), com institutos que facilitam a defesa do consumidor, impondo a nulidade de pleno direito de cláusulas contratuais que impliquem renúncia ou disposição de direitos.

Deve-se encarar a questão com faces harmônicas, pois, em que pese seja o consumidor presumidamente o elo mais fraco da relação, uma excessiva proteção iria impossibilitar que a relação fornecedor x consumidor fosse consolidada.

A cláusula será considerada abusiva nos termos do CPC e CDC (já demonstrando a impertinência da lei municipal) acaso acarrete em prejuízo de fato, com a renúncia ou disposição de direitos por parte do consumidor. Leia-se, neste caso, a hipótese da cláusula de eleição de foro importar em impossibilidade de acesso ao Judiciário pelo consumidor.

Entende-se que, acaso comprovado o prejuízo de fato ao consumidor com a eleição de foro, tal cláusula poderá, pelo magistrado, ser declarada nula. Nesse sentido, corroborando a tese apresentada, já se posicionou o STJ no REsp 1.707.855 – SP (relatoria: ministra Nancy Andrighi).

Caminhando ao Capítulo III da lei, que vem com o escopo de regulamentar o atendimento ao consumidor utilizando terminologias sem que haja uma efetiva digressão sobre sua aplicabilidade, termos como “reclamação fundamentada atendida” “reclamação fundamentada não atendida” “reclamação encerrada” “reclamação não fundamentada” “consulta fornecida” são postos sem qualquer elemento que possa fazer a identificação pormenorizada de cada classificação.

Possível observar no artigo 12 da legislação em análise que poderá o Procon paulistano, mediante análise técnica, proceder com imediato registro da reclamação feita pelo consumidor, independentemente de notificação preliminar, bem como converter os casos apresentados a título de consulta em reclamações de ofício.

O artigo 5º desta lei municipal nos apresenta que o procedimento do processo administrativo relacionado ao Direito do Consumidor será regido pelos artigos 33 e seguintes do Decreto 2.181, de 20 de março de 1997, da Presidência da República.

Ocorre que tem-se no Decreto 2.181, de 20 de março de 1997, em seu artigo 42, que a autoridade competente expedirá notificação ao infrator, fixando o prazo de dez dias, a contar da data de seu recebimento, para apresentar defesa, na forma do artigo 44 do mesmo diploma.

A norma é expressa: a autoridade notificará o infrator, não havendo margem para qualquer interpretação que permita a dispensa de notificação, como pretende o município.

A ausência de notificação implica em nulidade absoluta do procedimento, acarretando prejuízo para a administração pública, para os fornecedores e prestadores de serviço e para o consumidor, indo de encontro às garantias firmadas no Estado Democrático de Direito.

No artigo 14 da legislação enfrentada, extrai-se que, para que o Procon paulistano profira manifestação conclusiva, que irá classificar a reclamação, não será necessária a comprovação da efetiva ocorrência do dano ao consumidor, bastando a mera verossimilhança das alegações quanto ao nexo de causalidade entre os fatos narrados e a lesão ou ameaça de lesão neles apontadas.

Ao fazer a dispensa da comprovação da efetiva ocorrência, a administração poderá registar “reclamação fundamentada” sem a necessidade de se constatar se o fato realmente existiu, acarretando em prejuízo ao reclamado, conforme restará demonstrado na análise do artigo 15 da presente legislação.

Ora, inadmissível que o consumidor, em que pese seja parte insuficiente e esteja em determinadas situações não incumbido do ônus probatório, possa apresentar reclamação sem que comprove efetivamente o fato.

Ao atribuir à administração um poder decisório exacerbado, bem como sufocando o direito ao contraditório e à ampla defesa, a norma consubstancia-se como inconstitucional materialmente, por violar direito fundamental postulado em nossa carta maior, qual seja, o due process of law.

O artigo 15 da legislação debatida inova ao determinar a fixação de emolumentos a serem recolhidos pelos fornecedores reclamados, por consequência do registro da reclamação, onde é preciso destacar que a lei, em seu parágrafo 3º deste artigo, faz menção expressa ao fato de que “em nenhuma hipótese caberá ao consumidor o pagamento dos emolumentos”.

Preconiza a legislação que, pelo registro e encaminhamento das reclamações “fundamentadas” analisadas pelo Procon, serão cobrados emolumentos, devendo estes serem pagos única e exclusivamente pelo fornecedor reclamado.

Frise-se, a cobrança de emolumentos é feita tão somente pelo registro da reclamação, independente de seu desfecho (acaso seja considerada improcedente após a defesa do reclamado, por exemplo).

A priori traz-se a relação deste instituto com o apresentado no item anterior, que dispensava a necessidade de efetiva ocorrência da lesão ao direito do consumidor.

Vislumbra-se que o parágrafo 3º do artigo 15, que isenta independentemente da situação o consumidor do pagamento de emolumentos, fere, ao menos em tese, o princípio da isonomia[6], pois, sem qualquer motivação, isenta o consumidor do ônus de movimentar a máquina pública, independente do resultado, carreando ao reclamado, independente de dolo ou culpa, a responsabilidade pelo pagamento dessas custas.

É preciso refletir, pois até o acesso ao Poder Judiciário está condicionado aos pagamentos de taxa e emolumentos, como pode o legislador municipal isentar uma parte de todo e qualquer pagamento, verdadeiro fator discriminem.

Iniciar-se-á a análise do dispositivo alertando que para o STF[7] a natureza jurídica dos emolumentos é de tributo.

Tributo conceituado no Código Tributário Nacional, em seu artigo 3º como toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Ora, a modulação de valores realizada pela legislação municipal, que diferencia a quantia a ser paga por ocasião dos emolumentos, acaso seja a reclamação atendida ou não, caracteriza flagrantemente uma aplicação de sanção através de tributo, o que é expressamente vedado pela legislação tributária brasileira.

Igualmente, por ter natureza de tributo, em observância ao artigo 150, III, alíneas b e c, da Constituição Federal (respectivamente princípio da anterioridade de exercício e da noventena), não podem os emolumentos serem cobrados no exercício em que foram instituídos, respeitando também o período de 90 dias a partir da publicação da lei que os instituiu ou majorou, portanto, enquanto não houver decisão judicial que suspenda os efeitos da vil legislação consumerista municipal, é possível salvaguardar-se ao direito de não fazer o pagamento, até, ao menos, 2020.

Por fim, entende-se ser possível a propositura de ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, pelos legitimados previstos no artigo 90 da Constituição paulista, e também, nas ações incidentais, através do controle difuso, requerer a declaração de inconstitucionalidade ao Poder Judiciário, pelas razões e motivos já trazidos à baila.


[1] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […]
V – produção e consumo; […]
[2] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 284.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 15.
[4] Apud SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 817.
[5] Idem, p. 818
[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
[7] ADI 1378-ES, j. 13.10.2010, DJ de 9.2.2011, rel. min. Dias Toffoli.

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