Direito Civil Atual

Código Civil deve proteger os usuários de planos de saúde de autogestão

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5 de agosto de 2019, 9h01

ConJur
Os conflitos entre as operadoras de planos de saúde de autogestão e os usuários têm desembocado no âmbito jurisdicional e eram pacificados mediante a aplicação da Lei 8.078/90, que instituiu o microssistema consumerista. Contudo, em 17 de abril de 2018, o Superior Tribunal de Justiça publicou o enunciado sumular 608, na condição de precedente de natureza obrigatória [1], prevendo a não incidência daquele diploma normativo aos vínculos jurídicos entabulados entre aqueles, advindo discussões acerca da temática, eis que se questiona se aqueles beneficiários ficariam desprotegidos em decorrência de não serem qualificados como consumidores. Vale ressaltar, que a Súmula foi formulada por conta da ocorrência de uma multiplicidade de demandas acerca da mesma matéria [2].

O artigo 927, inciso IV, do Código de Processo Civil de 2015, estatui que os enunciados das súmulas do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional são precedentes normativos formalmente vinculantes que deverão ser respeitados pelo Poder Judiciário [3]. O seu parágrafo 4º apresenta os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia como vetores que sedimentam o dever de os juízos de primeira instância e grau superior seguirem os precedentes obrigatórios[4]. Constituem fundamentos de natureza compulsória que devem servir de embasamento necessário para o julgamento das lides. Arruda Alvim verbera que “Não é válida, portanto, a fundamentação que simplesmente ignora (isto é, não observa) um precedente”.

Ademais, o artigo 332 do CPC/2015 disciplina as hipóteses de julgamento liminar do mérito pela improcedência manifesta da lide e a primeira delas é a existência de súmula do STF ou do STJ desfavorável à pretensão do demandante [5]. O Superior Tribunal de Justiça, após a edição do dito enunciado, vem aplicando o Código Civil Pátrio aos problemas envolvendo as autogestões que ministram planos de saúde, visto que constitui precedente de natureza obrigatória, não podendo ser ignorado e afastado pelos operadores do setor jurídico. As normas adjetivas que qualificam o posicionamento daquele sodalício superior como vinculativo não podem ser rechaçadas, eis que o direito material não pode ser efetivado ao alvedrio do Processo Civil.

Em tese inovadora, o jurista Otavio Luiz Rodrigues Junior, embasando-se no pensamento de Franz Bydlinski [6], argumenta que o Direito Privado “é tão ou mais significativo nos dias atuais do que no passado”, pois, “por efeito de uma relativa melhoria do bem-estar econômico das gentes, pode-se até dizer que sua importância nunca foi tanta para milhões de pessoas” [7]. Propõe, nessa senda, a conservação do “papel de centralidade do Direito Civil no sistema de Direito Privado, de modo particular em uma época tão rica em mudanças e notável por suas contradições” [8]. A concepção do autor é de inquebrantável relevância para se demonstrar que a não incidência da Lei 8.078/90 aos vínculos jurídicos existentes no campo da saúde suplementar na modalidade autogestão não servirá para enfraquecer a imprescindível tutela dos usuários por meio do Código Civil de 2002.

Na Lei 10.406/02, inexistem disposições normativas que versem, de modo específico, sobre os negócios jurídicos estabelecidos entre os indivíduos e as autogestões, porém, é perfeitamente cabível o manejo da cláusula geral da boa-fé objetiva, prevista nos artigos 113 e 423. Não se trata de se recorrer a um dispositivo geral de modo infundado e muito menos desarrazoado, mas, sim, de o empregar de forma justificada e necessária [9]. A elasticidade e a flexibilidade deste instituto contribuem para que possa ser aplicado, de forma satisfatória, nas situações litigiosas envolvendo as ditas partes contratantes. As funções essenciais da boa-fé objetiva, propugnadas por Josef Esser, consistem na integração; interpretação; e controle [10].

A integração pressupõe os deveres de consideração, ou de deferência, e de fidelidade, subdivididos estes últimos notificação, informação, custódia (conservação), e cuidado ou colaboração. Ora, é cabível exigir-se das operadoras de planos de saúde de autogestão que respeitem os usuários dignamente, merecendo a devida consideração, não se valendo de disposições contratuais leoninas nem de demais condutas vexatórias [11]. As obrigações de esclarecimento prévio acerca do conteúdo negocial e de zelo, a fim de que seja fincado com clareza, precisão e objetividade decorrem também da confiança depositada em uma parte diante da outra [12].

A manutenção do vínculo jurídico de maneira equilibrada, não engendrando ônus desmedido para um dos contratantes decorre adrede do dever de fidelidade [13]. A apreciação e a compreensão do conteúdo negocial concernente à autogestão podem ser concretizadas através da boa-fé objetiva, esclarecendo-se aspectos obscuros e ambíguos, bem como os eliminando em prol daqueles que não participam da confecção do documento que exige simples adesão [14]. O controle do liame jurídico, em epígrafe, também pode ser concretizado por meio deste valioso instrumental, expurgando-se cláusulas iníquas ou reformulando as que suscitem tal providência [15].

O Direito Civil contemporâneo, como aduz Otavio Luiz Rodrigues Junior, serve “para enfrentar os desafios da hipercomplexidade, da fragmentariedade e das desigualdades sociais” [16], podendo ser manejado para a proteção dos interesses e direitos dos beneficiários da saúde suplementar por autogestão, que não ficarão desprotegidos pela não incidência do CDC.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 Conferir: DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 12-13. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 180 a 190.

2Vide os seguintes Recursos Especiais: 251.024-SP; 1.285.483-PB; 986.947-RN; AgRg no Ag 1.250.819-PR; 1.106.557-SP; 1.121.067-PR; 1.644.829-SP; 418.572-SP; AgInt no AREsp 943.838-SP; AgInt no REsp 1.358.893-PE; 1.673.366-RS; AgInt no REsp 1.563.986-MS; REsp 285.618-SP.

3 Consultar: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; et al. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 278 a 285. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.

4 Conferir: MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ Enquanto Corte de Precedentes. Recompreensão do Sistema Processual da Corte Suprema. São Paulo: RT, 2013, p. 120 a 122. MARINONI, Luiz Guilherme. Os precedentes na dimensão da segurança jurídica. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Ano 58, n.º 398. Porto Alegre: Notadez Informação, dez. 2010.

5 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Tratamento dos Processos Repetitivos. In: JAYME, Fernando Gonzaga; et al (Coords.). Processo Civil: Novas tendências. Estudos em homenagem ao professo Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 808 e seguintes.

6 BYDLINSKI, Franz. Kriterien und Sinn der Unterscheidung von Privatrecht und öffentlichem Recht. Archiv für die civilistische Praxis – AcP, v. 194, fascículo 1, 1994., p. 319.

7 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo. Estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Gen Forense Universitária, 2019, p. 109.

8 Op. cit., p. V.

9 HEDEMANN, Justus Wilhelm. Die Flucht in die Generalklauseln: Eine Gefahr für Staat und Recht. Tübigen: J.C.B. Mohr, 1933, p. 64.

10 ESSER Joseph. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial de derecho privado. Trad. Eduardo Valintí Fiol. Barcelona, Bosch, 1961, p. 285-7.

11 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da Boa-fé no Direito Civil. Lisboa: Almedina, 2001, p. 655.

12 ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Editor Rio, 1977, p. 41-52.

13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro, Borsoi Editor, 1972, tomo III, p. 374.

14 GOMES, Orlando. Contratos. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 42.

15 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo: J. Bushatsky, 1964. Cf. também: A boa-fé na formação dos contratos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 87, p. 79-90, jan./dez.1992.

16 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo. Estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Gen Forense Universitária, 2019.p. 343.

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