Constituição e Poder

Reengenharia constitucional para superar a crise da democracia liberal

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

5 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
Marco Marrafon [Spacca]A ideia de Estado de Direito se ergueu sobre os pilares do liberalismo no campo político e do primeiro constitucionalismo no âmbito jurídico. Combinadas, essas matrizes teóricas foram determinantes para a concepção das instituições formadoras da Modernidade político-jurídica a partir de meados do século XVIII.

Esse movimento promoveu a emergência de um novo estágio civilizacional no mundo ocidental, ao impulsionar a superação do modo de produção do antigo regime medieval e, na sequência, derrotar o absolutismo monárquico, incompatível com a garantia dos direitos fundamentais e de segurança jurídica exigida, inclusive, pelo mercantilismo em ascensão.

Com efeito, nesse período se materializa a compreensão da importância da racionalização e limitação jurídica do poder como exigência de liberdade e, para garanti-la, relevantes institutos se consolidaram: desde o império da lei, controle de constitucionalidade, separação dos poderes, sistema de freios e contrapesos, princípio da legalidade, até as instituições representativas da democracia liberal, dentre elas o Parlamento e os partidos políticos.

Esse arquétipo constitucional formava uma armadura jurídica que deveria atuar como antídoto às arbitrariedades, tanto dos governantes em relação aos governados, quanto dos governados entre si.

Nesse passo, desde as formas originalmente liberais até o constitucionalismo social-democrático do pós-Segunda Grande Guerra, o que se assistiu foi a dominância de processos reformistas dentro das mesmas premissas da origem do Estado-Nação moderno.

As tentativas de rompimento com os postulados da democracia liberal no início do século XX acabaram desembocando nos movimentos totalitaristas que solaparam os ideais democráticos em prol de regimes autoritários e populistas, notadamente caracterizados por uma retórica coletivista que implicava a morte do cidadão enquanto sujeito de direitos. Em nome de uma suposta igualdade, aniquilava-se a liberdade.

No entanto, as instituições oitocentistas não mais dão conta das demandas contemporâneas. O tempo do Estado moderno e de sua burocracia não acompanha a velocidade das relações no mundo da vida, fornecendo respostas tardias ou ineficazes às exigências da sociedade. A potente evolução tecnológica que assombra o limiar da terceira década deste milênio não veio acompanhada de redesenhos institucionais compatíveis com os novos tempos e, nem mesmo, de formação humana e ética necessárias para lidar com tantas mudanças.

A população parece desorientada, sem entender muito bem a dimensão do que está acontecendo, enquanto temas como Inteligência Artificial, 5G, Big Data, Biotecnologia, Blockchain e Robótica cada vez mais se materializam na agenda presente e na vida das pessoas.

Vive-se uma transição civilizacional que, pensada a partir das categorias propostas por Thomas Kuhn, revela uma verdadeira crise paradigmática: as anomalias do sistema político ficam cada vez mais evidentes quando seus postulados e instituições (o “conhecimento normal” segundo Kuhn) não mais respondem satisfatoriamente e no devido tempo às demandas da comunidade de cidadãos [1].

Essas anomalias retroalimentam a crise de legitimidade política que mina a força e a presença das instituições da democracia liberal na sociedade contemporânea, abrindo espaços para a irrupção do autoritarismo ignorante.

Ao investigar as razões dessa crise e do prenúncio de uma possível ruptura, Manuel Castells, um dos mais atentos observadores do nosso tempo, anota que as instituições da democracia liberal estão obsoletas e não mais existem no lugar que deveriam existir: a mente dos cidadãos [2]. Ou seja, distanciaram-se e perderam seu sentido existencial na vida das pessoas.

Desvendando as razões para esse progressivo colapso institucional, Castells destaca os fatores que devem ser considerados em conjunto e reciprocamente, que podem ser assim resumidos: i) incapacidade de resposta do Estado-Nação no mundo globalizado aliada à crise de representação e de identidade, ii) crise econômica e sentimento de impotência das populações locais, iii) crise moral e corrupção incrustada no sistema político e iv) fake news impulsionando ainda mais escândalos em escala local e global (política do escândalo) [3].

Em relação ao primeiro ponto, a perda de força do Estado-Nação enquanto consequência negativa da globalização implicou a incapacidade de resolver problemas locais combinada com a distância da população das deliberações políticas, gerando forte crise de representação (cidadãos à margem das decisões que produzem consequências na sua vida)[4].

Segundo Castells, a ausência de legitimidade da representação leva também a uma crise identitária. Em suas palavras: “quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e sobre seu Estado, mais se recolhem em uma identidade própria que não possa ser resolvida na vertigem dos fluxos globais” [5].

Quanto às crises econômicas globais, em especial a de 2008, o desemprego e os sacrifícios exigidos dos cidadãos reforçam a crise política, à medida que a população se sente desprotegida perante as grandes decisões, gerando o medo que se transforma no germe da xenofobia e da intolerância [6].

A esses fatores alia-se uma forte crise moral, uma vez que o sistema político na maioria dos países tem alimentado oligopólios e partidos corrompidos, dando ensejo a pleitos eleitorais marcados pela corrupção [7].

O alto custo da política profissional, especialmente das candidaturas desgastadas, aliado à insuficiência do financiamento legal dos partidos, está na raiz da corrupção entranhada nos sistemas políticos [8].

Fechando esse quadro, a política do escândalo se robustece na sangrenta disputa pela conquista do poder a qualquer custo como motivo determinante para o enfraquecimento da democracia: partindo do pressuposto de que i) as decisões emocionais dominam as escolhas políticas, ii) as imagens negativas impactam muito mais que as positivas e que iii) a crença da bondade de um projeto é indissociável da personalização da liderança, Castells anota que “a luta política mais eficaz é a destruição dessa confiança através da destruição moral e da imagem de quem se postula como líder” [9].

O paradoxo é que a excessiva confusão acerca da idoneidade dos líderes já se tornou tão habitual que tem perdido seu impacto na escolha de um ou outro candidato. Na política do escândalo, todos estão “sujos” e imersos em valas comuns, seja por razões verdadeiras, seja por notícias falsas.

Contudo, ainda que tenha deixado de impactar individualmente o resultado eleitoral, o sistema político é fortemente atingido, já que a descrença e a perda de confiança atingem a todos, promovendo sentimentos de desconfiança e reprovação moral sobre o conjunto de políticos [10].

Nesse contexto, o ambiente virtual deixou de representar as esperanças de se tornar uma Ágora digital, com fortalecimento da democracia e maior participação e interação dos cidadãos, para dar lugar à formação de ilhas de intolerância, isoladas pelos mares de discursos de ódio, ensejando forte polarização e novas formas de autoritarismo, agora camufladas em torno do ciberpopulismo, como bem diagnosticado por Vania Baldi [11].

Esse novo populismo digital não foge às características tradicionais do populismo, sendo marcado pela metodologia de ruptura, simplificação de temas complexos, culto à personalidade em detrimento de instituições, desrespeito aos limites e regras postas além de forte vocação anti-partidária [12]. É o discurso “contra tudo o que está aí”, vencedor das eleições gerais brasileiras de 2018.

As consequências são preocupantes: sementes autoritárias e retrocessos civilizacionais em relação às conquistas da Modernidade jurídico-política.

Todavia, as exigências de controle do poder, a necessidade de especialização funcional para lidar com temas complexos, a diferenciação de papéis sociais e o necessário tempo para o planejamento estratégico, amadurecimento e execução de políticas públicas, bem como para atividades de fiscalização e controle orçamentários, fazem com que a democracia não possa ficar à mercê de fake news e mensagens simplistas em redes sociais. Ela exige instituições fortes e, quando necessário, ações e medidas contramajoritárias para barrar a demagogia populista.

Não as mesmas instituições oitocentistas, mas novos formatos disruptivos, que possam atender às demandas dos cidadãos na velocidade exigida e concretizar direitos fundamentais – individuais e sociais – sem afrouxar no controle da arbitrariedade do poder.

Por isso, aproximando-se da terminologia proposta por Giovanni Sartori [13], penso que, sem prejuízo do imprescindível resgate da formação humana e ética, se faz necessária uma reengenharia constitucional nas Cartas ocidentais, reconstruindo os meios de ação política na nova era.

Considerando o contexto brasileiro, a reengenharia da Constituição de 1988 deve preservar seu conteúdo funcional e abordar, especialmente, temas que tratam da organização estrutural do Estado brasileiro, do pacto federativo, do Poder Legislativo, partidos políticos e sistemas de governo e processos eleitorais, na tentativa de resgatar a legitimidade da Política (com P maiúsculo) sem recair em discursos técnico-burocrático-autoritários que, historicamente, têm levado a formas totalitárias de governo.

De largada, o desafio maior é justamente a dificuldade de se fazer boas reformas em um ambiente político tão hostil, pois existe sempre o risco de mudanças apressadas ou equivocadas, que podem gerar resultados desastrosos. De qualquer modo, esse enfrentamento será inescapável, no Brasil e no mundo. Hoje ou logo mais no futuro.


1KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

2CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 144.

3Ibidem, p. 17-27.

4Ibidem, p. 18 e ss.

5Ibidem, p. 19.

6Ibidem, p. 20, p. 29 e ss.

7Ibidem, p. 23 – 26.

8Ibidem, p. 26.

9Ibidem, p. 27.

10Ibidem, p. 28.

11Cf. BALDI, Vania. A construção viral da realidade: ciberpopulismo e polarização dos públicos em rede. Observatorio (OBS*) SpecialIssue, (2018), 004-020 Disponível em: http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1420/pdf . Acesso 03/08/2019.

12Ibidem, p. 06-07.

13SARTORI, Giovanni. Engenharia constitucional: como mudam as Constituições. Trad. Sérgio Bath. Brasilia: Ed. UnB, 1996.

Autores

  • é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli studi Roma Tre. É ex-presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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