Segunda Leitura

As críticas têm o objetivo de auxiliar ou de auto afirmar-se?

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de agosto de 2019, 8h10

Spacca
O curso de Direito, por sua própria natureza, desenvolve o sentido crítico. Os estudantes das Ciências Jurídicas são os que mais contestam as regras e as decisões da Universidade. Isto não é bom nem ruim. Apenas depende de o uso ser ou não razoável e exposto de forma clara.

Se assim é na fase de formação, mais ainda será na vida profissional. Nas mais diversas posições ou profissões jurídicas, o ator tem a possibilidade de rever o ato ou a opinião de terceiros. É neste momento que entra a inteligência emocional, a maturidade e o senso de oportunidade que distinguirão um bom profissional de um pretensioso enganador.

Exemplos? Sim, existem muitos. Vejamos.

O doutorando resolve defender sua tese criticando o sistema de conciliação do Tribunal Regional Federal. Passa quatro anos pesquisando e, ao final, condena-os veementemente, apontando todos os defeitos, reais ou imaginários, que lhe vêm à mente. Todavia, não dedica uma só linha a indicar o que poderia ser feito para que fossem aprimorados. Tal pesquisa, ainda que tenha na bibliografia até autores chineses, citados no original, não tem valor algum. É a crítica pela crítica, sem utilidade alguma.

O recurso de apelação criminal chega ao tribunal. O juiz fixou a pena em 1 ano, 4 meses. O relator argumenta em várias folhas todas as circunstâncias do artigo 59 do Código Penal e conclui que a pena não foi bem dosada, diminuindo-a em 15 dias. Além desta alteração não ter sentido prático, já que a execução é de medida restritiva de direitos e não de prisão, o fato é que o desembargador não vivenciou a realidade do processo, não viu o rosto do condenado e não teve contato com a vítima. Portanto, não estava habilitado como o juiz de primeiro grau. Mudar a pena justifica-se plenamente em caso de erro grave, mas não tem sentido quando passa a ser uma forma de discordar por discordar ou para mostrar erudição.

A polícia adota medidas preventivas e normas de conduta para regulamentar as manifestações públicas. Para cada ação estuda-se o tipo de reação e isto é feito com base em práticas internacionais e análise profunda. Aí o juiz de Direito, baseado em sólidos conhecimentos jurídicos, mas nenhum estudo teórico ou vivência prática de segurança pública, defere liminar proibindo o uso de balas de borracha ou algo semelhante.

O órgão de proteção ambiental tem anos de expertise e conta com profissionais capacitados e com décadas de experiência prática. O agente do Ministério Público, normalmente aprovado em rigoroso concurso público e, por isso, muito bem preparado em temas jurídicos, não se conforma com determinada ação administrativa envolvendo mangue, porque entende que fere o princípio x ou y e recomenda ao servidor que se abstenha da prática de qualquer ato na área. Este, temendo ser processado, obedece. Abandona o assunto e também outros que lhe chegam às mãos, firmemente decidido em direcionar seus interesses para a vida privada. E assim temos mais um desmotivado burocrata a complicar a vida dos brasileiros.

O Brasil firma acordo internacional sobre a guarda de filhos residentes no exterior. Um juiz de outro país dá a decisão. Um juiz brasileiro, tomando conhecimento de um relato desfavorável à criança, dá uma liminar proibindo que seja levada pelo pai ou a mãe. Aparentemente um ato de bondade. Na verdade, desautoriza as autoridades da imigração brasileira e cria um problema de imagem para o nosso país, que, certamente, será revidado no futuro.

Poderiam ser citadas dezenas de situações que se repetem a cada dia. Entre elas: discutir o tipo de exercícios físicos para ingresso na função de investigador de Polícia; propor um projeto de lei maravilhoso, mas sem a menor exequibilidade no Brasil; juiz entrar na discussão de mérito de pergunta em concurso público; anular decisão administrativa da FUNAI sobre complexo conflito entre tribos indígenas, sem ouvir o órgão.

Mas, o que leva a tal tipo de situação? Não há uma resposta única e certa. Mas é possível afirmar-se que:

a) Ausência da chamada “Judicial deference” , utilizada nos países anglo-saxões, através da qual se prestigiam as decisões de autoridades administrativas especializadas ou de outros atores que detenham expertise sobre determinado assunto. No Brasil, tal princípio vem sendo desprezado pelo Poder Judiciário e muitas vezes se lançam por terra décadas de experiência em área específica.

b) A vaidade em mostrar ao próximo e a terceiros quem manda. Por mais que seja importante o cargo ou a posição, muitos necessitam exteriorizar, continuamente, o brilho de que se acham detentores. E uma das formas de fazê-lo é diminuindo o próximo.

c) A imaturidade pode colaborar para tal tipo de situação. A visão de um jovem profissional do Direito pode ser restrita ao que é jurídico, sem atentar para o fato de que a vida vai muito além disto. Escudado na Constituição, mas sem conhecer a vida, cria situações insolúveis.

d) Assumir uma posição competitiva ao invés de colaborativa. A quem compete em tudo e com todos, pode interessar mais diminuir os outros do que colaborar para que os problemas alcancem a melhor solução. Atitude individualista, que revela quem não pode ser líder.

Tudo isto, fácil é ver, desgasta as relações entre os Poderes da República ou entre órgãos do mesmo Poder e traz uma enorme insegurança jurídica. As consequências nem sempre são claras, muitas vezes passam despercebidas. Mas elas contribuem para o desrespeito às instituições, o afastamento de investidores e a decadência econômica.

Não se está a pregar, de forma alguma, a omissão dos que têm o poder de decidir ou que deixem de corrigir os equívocos. É preciso, apenas, refletir mais sobre as consequências de uma decisão administrativa ou judicial.

Por exemplo, no Poder Executivo, ao invés da autoridade simplesmente revogar ou ser contrária a uma iniciativa de terceiros, marcar uma reunião para contornar as divergências pode ser muito melhor para o interesse público. No âmbito judicial, inspecionando o local e conversando com as pessoas, o juiz poderá conhecer a verdade real que papéis não esclarecem. Procurando conhecer a realidade sobre determinado fato, um parlamentar poderá elaborar uma lei útil ao Brasil e não aos países desenvolvidos cuja realidade é outra.

Em suma, o tema está aberto a maiores considerações, estudos e aprofundamento. Mãos à obra.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!