Processo Familiar

Exercício da empresa repercute diretamente nas relações de família

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é advogado professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD) doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).

4 de agosto de 2019, 8h05

Spacca
caricatura mario delgado NOVA [Spacca]A palavra “empresa” é polissêmica, sendo referida no ordenamento em diversos sentidos. A maioria dos autores considera a “empresa” um fenômeno poliédrico, por apresentar-se sob os mais variados perfis: ora é usada como sinônimo de empresário ou de sociedade empresária (perfil subjetivo), ora é usada com o sentido de estabelecimento comercial (perfil objetivo ou patrimonial), ora é usada no seu sentido técnico de atividade econômica organizada para produção e circulação de bens ou de serviços (perfil funcional). Esse é o sentido que lhe atribuiu o Código Civil – empresa como sinônimo de atividade. O legislador, ao empregar a palavra “empresa” no seu perfil funcional, abandonando os perfis subjetivo e objetivo, passou a distinguir os conceitos de “empresa”, “empresário”, “sociedade empresária” e “estabelecimento”.

“Empresa”, portanto, é a organização econômica dos fatores de produção (mecanismo de cooperação), ou seja, é atividade organizada para produção e circulação de bens ou de serviços nos mercados, e que pode ser desenvolvida por uma pessoa natural (empresário individual) ou jurídica (empresa individual de responsabilidade limitada ou sociedade empresária) [1].

O exercício da empresa, por qualquer de suas formas, repercute diretamente nas relações de família, tanto no âmbito do direito patrimonial, como no que se refere ao direito pessoal de família. A começar pela necessidade de submeter a registro na Junta Comercial tanto o casamento, como o divórcio do empresário. Aliás, todas as modificações nos elementos de identificação e qualificação do empresário, como é o caso da mudança da capacidade, do estado civil ou da alteração do regime de bens, serão obrigatoriamente averbadas à margem da inscrição. Também deve ser arquivada na Junta Comercial a decisão judicial (ou o ato notarial) que autorizar ou proceder à mudança de gênero do empresário. A lei também exige que o empresário individual promova o arquivamento, na Junta Comercial da sua sede, dos pactos e declarações antenupciais, dos títulos de doação, herança ou legado. Não menciona os pactos ou escrituras de união estável, não obstante as normas administrativas emanadas do DREI exijam que o empresário declare, no requerimento de inscrição, se convive ou não em união estável.

O artigo 980 do Código Civil impõe o arquivamento na Junta Comercial da sentença que decretar ou homologar a separação judicial ou divórcio, visando, assim, a dar publicidade à alteração do estado civil do empresário individual e à consequente partilha do patrimônio anteriormente pertencente ao casal.

Ocorrendo o divórcio ou a dissolução de união estável do empresário individual, que é pessoa natural, e desde que o casamento ou a união estável estejam submetidos a regime de comunhão de bens, devem ser partilhados os bens comuns, notadamente, como regra geral no regime de comunhão parcial, os adquiridos durante a convivência. Na constância do casamento e da união estável, os frutos do trabalho do empresário individual percebidos ou pendentes até a data da separação de fato integram o patrimônio a ser partilhado pelo casal. Entretanto, nem a empresa, nem os bens afetados à atividade empresarial, ainda que integrem o patrimônio pessoal do empresário, estarão sujeitos a partilha, pouco importando a data de aquisição ou a data do início da atividade, incidindo aqui as exceções previstas no Código Civil , no inciso V do artigo 1.659 e no inciso V do artigo 1.668, eis que constituem instrumentos para o exercício da profissão.

Com relação às sociedades limitadas, o artigo 1.027 do CC/2002 regulamenta a partilha das participações societárias nos casos de divórcio e dissolução de sociedade conjugal em decorrência de separação legal. Independentemente de previsão expressa, é também compreensível e aplicável à dissolução de união estável, à separação extrajudicial e à separação de fato, situações da maior relevância, das mais frequentes nos litígios de família e fonte de infindáveis disputas societárias.

A regra também oferece solução para a pretensão dos herdeiros do cônjuge ou do companheiro de sócio, no tocante às participações societárias a que aqueles fizessem jus. Enquanto os herdeiros do sócio falecido poderão eventualmente integrar a sociedade, por sucessão das respectivas quotas, nos termos do artigo 1.028, o ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio (e seus herdeiros), não poderão participar da sociedade, como consequência do resultado da partilha, que apenas lhes conferirá o direito à percepção dos lucros que ao sócio divorciado ou separado tocariam e que seriam distribuídos a cada ano, se positivo o resultado social.

Já no tocante às sociedades anônimas, o regramento é diverso. A Lei das S/A (Lei 6.404/76) estabelece, como regra geral, a livre circulação e transferência das ações, seja entre dois acionistas, seja entre acionistas e não acionistas. Por isso, divorciando-se o acionista, as ações podem ser partilhadas ao outro cônjuge que, salvo previsão estatutária em contrário, tornar-se-á automaticamente acionista.

No entanto, nas sociedades de capital fechado, que são marcadas fortemente pelo elemento da affectio societatis, o Estatuto, ou mesmo um Acordo de Acionistas, pode conter as chamadas “cláusulas de filtragem”, que são disposições contratuais cujo objetivo é o de condicionar ou restringir a entrada de novos acionistas. Na dicção expressa do artigo 36 da Lei nº 6.404, “o estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas”. No caso de Acordo de Acionistas ou de alteração posterior do ato institucional, “a limitação à circulação […] somente se aplicará às ações cujos titulares com ela expressamente concordarem, mediante pedido de averbação no livro de Registro de Ações Nominativas”.

Os estatutos de cada companhia precisam prescrever, de forma clara e minuciosa, as limitações à circulação, se aplicáveis apenas à transferência entre sócios ou à transferência para terceiros, se restritas à transferência inter vivos ou limitativas da transmissão causa mortis, e quais as exigências para aprovação do novo sócio. É possível estabelecer algumas características ou qualidades necessárias para o ex cônjuge se tornar acionista, como determinada profissão ou nacionalidade, desde que não represente discriminação proibida por lei ou infrinja a ordem pública e os bons costumes.

Todas essas questões serão tratadas no seminário Das interações entre a família e a empresa que terá palco no Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), nos dias 8 e 9 de agosto. Grandes nomes do Direito Empresarial e do Direito de Família, como Rolf Madaleno, Márcio Souza Guimarães, Ruy Pereira Camilo Junior , Mariana Conti Craveiro, Ana Luiza Maia Nevares, Luís André Negrelli de Moura Azevedo, Karime Costalunga, Maria Helena Braceiro Daneluzzi e vários outros, estarão juntos, pela primeira vez, aprofundando o debate sobre questões tão relevantes, tão frequentes nos litígios de família e, ao mesmo tempo, tão pouco discutidas.


1 Cf. DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado – doutrina e jurisprudência/ Anderson Schreiber …[et al] . Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.646.

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    é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).

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