Crime e Castigo

A Casa Tomada: argumentações na instauração da ação penal

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

4 de agosto de 2019, 16h41

Spacca
Júlio Cortázar, o ás de O Jogo da Amarelinha, concebeu a metáfora da invasão lenta e paulatina na vida das pessoas, com a gradual normalização que vai tomando cômodos, e expulsando o antigo ocupante do lugar.

Processo penal é espaço de “guerra de leituras sobre fatos e normas”, mas a “casa do processo” vai sendo tomada pela ausência de argumentação e construção de verdades previamente concebidas.

O processo-crime é um embate argumentativo. Argumenta-se em derredor de fatos e argumenta-se acerca de normas. O processo é um diálogo de narrativas, onde uma parte tenta convencer o Juízo de que fatos aconteceram e que esses fatos se devem a atos praticados por alguém. Além disso, a mesma parte que acusa — o Ministério Público, em regra — argumenta no sentido de que esses eventos repetem o que está descrito abstratamente em uma lei prévia e vigente.

De outra banda, há quem argumente que os fatos não aconteceram, ou que o acusado não concorreu para eles, ou não praticou qualquer conduta. Também é possível que se argumente que a atuação do agente não corresponde à descrição abstrata da norma que o transforma em fato criminoso.

A origem de todo o embate narrativo é a denúncia-crime: uma parte argumenta no sentido de provar sua correção descritiva e a outra, a sua incorreção. Acusação e defesa debatem sobre fatos e normas.
Para que o Judiciário aceite instaurar um processo e alguém sofra o ônus de ver contra si movida uma ação penal, não é somente necessário que a narrativa descrita na denúncia seja coerente. Não se exige apenas a coerência interna do relato, pois é exatamente esta a diferença entre ficção e realidade.

Um bom César Aira tem coerência interna, e o relato fantástico de Las Noches de Flores é lógico do começo ao fim, embora descreva a um E.T. que se disfarça de entregador de pizzas nas noites portenhas. A literatura pode ser lógica, mas não se pode cogitar, no Estado Democrático de Direito, que as narrativas literárias conduzam alguém ao cárcere.

Por esta razão, além da coerência e da fixidez da narrativa — fatos claros, fatos específicos, e tudo coerentemente e logicamente narrado —, exige-se da denúncia que dá início à ação penal, que os elementos do mundo fenomênico por ela citados estejam minimamente comprovados.

Quando a norma positiva trata de materialidade certa e indícios suficientes de autoria, ela quer afirmar exatamente isso, pois a leitura constitucionalmente adequada da norma processual penal é a que conduz à necessidade de um mínimo probatório a justificar a veracidade dos fatos que conduzem à possibilidade de autoria e a certeza prévia da materialidade.

A contemporaneidade da interpretação normativa leva, inclusive, à modificação do sentido original da norma, na medida em que ações penais são propostas sem que autor tenha certeza da ocorrência anterior do delito — sem comprovação absoluta da materialidade — transformando a lógica normativa da certeza prévia do crime em simples demonstração de plausibilidade tanto da autoria quanto da materialidade.

A práxis jurídica inunda o processo penal de ausência de certezas — levando à utilização da plausibilidade acerca dos fatos como juízo inaugural de uma ação penal.

Sendo isso verdadeiro, um elemento a mais se torna necessário para que a literatura não ocupe o espaço da narrativa penal e haja uma essencial diferenciação entre ficção e realidade!

Esse elemento é a justa causa para a ação penal — ou seja, a existência de um mínimo probatório que justifique a conclusão da denúncia e dê arrimo fático à narrativa que tende a inaugurar a ação penal.

A lógica exógena da narrativa factual da acusação — que apenas se preocupa com indícios de autoria e materialidade e, portanto, já não se prende mais à ideia de verdade — precisa estar apoiada num conjunto mínimo de provas que dê a nota de veracidade à narrativa.

É exatamente esse conjunto de provas dos fatos narrados que separa ficção de realidade e literatura de direito.

Para dar coerência externa e lógica exógena à narrativa da denúncia o acusador — em regra o Ministério Público — faz referência a provas e a meios utilizados para comprovação do alegado. Há sempre a citação a um depoimento, a uma quantidade de droga, a uma escuta telefônica, a uma colaboração premiada, a papéis apreendidos ou a acordos de leniência. São esses elementos do mundo fenomênico que jogam a função argumentativa de apoio realístico à narrativa da denúncia, dotando-a de vida e afastando-a da literatura.

Se o processo penal contemporâneo — debaixo de um Estado Democrático de Direito — pugna pelo equilíbrio entre acusação e defesa, e pela legitimação da sanção penal em razão do processo público no qual a pena é aplicada, é inadmissível que a base da argumentação que dá veracidade à narrativa da acusação, dotando-a de justa causa, seja desconhecida do acusado.

Josef K., de O Processo, de Kafka, não sabia do que estava sendo acusado.
A narrativa com lógica interna permite a alguém ser acusado de algo claro, mas a omissão das razões pelas quais a argumentação pode ser verídica conduz à acusação por literatura, de um evento ficcional, e não real.

Quando o Ministério Público utiliza-se de uma colaboração premiada na denúncia para dotá-la de veracidade, ou adjunge um acordo de leniência à sua argumentação para comprovar argumentativamente que os fatos ocorreram, ou faz referência à informação da polícia de que alguém comercializa droga, o apoio do argumento é um elemento fático — uma prova — produzido anteriormente, ao qual ele teve acesso.

Sendo o processo um locus de embate argumentativo, é intrínseco ao processo penal contemporâneo que o réu, em sua defesa, tenha acesso ao elemento factual utilizado para dar veracidade ao argumento, haja vista que a justa causa para a ação penal, que é buscada nesse elemento, somente pode ser argumentativamente desconstituída se estiver disponível a todos.

Isso implica o direito subjetivo da parte acusada de ter acesso aos elementos de comprovação da justa causa para a ação penal que estão citados na denúncia, para a elaboração de sua defesa prévia.

Há que se diferenciar elementos que dão fundamento à justa causa da ação penal de elementos de prova a serem produzidos na instrução penal.

O acusador pode não citar informações ou escutas telefônicas na denúncia como apoios para a justa causa da ação penal. Poderá simplesmente deixar que isso seja juntado, debatido e discutido — com argumentação de conteúdo — na fase instrutória do rito penal. Porém, se os utiliza para dar sentido à ação penal, como apoio mesmo da justa causa para o processo, faz-se mister que esses elementos estejam nos autos, e possam ser objeto de argumentações e contra-argumentações.

A Casa da Justiça não pode ser tomada pelo esotérico e autocrático processo de punição, sem que as defesas possam ser exercidas a contento.
Não se trata de defesa somente de quem tem a face conhecida na mídia e nas redes sociais. Cuida-se da defesa de cidadãos anônimos, excluídos ou afastados das lides, que correspondem ao rosto mais invisível do cidadão brasileiro.

Júlio Cortazar é literatura. Processos tomados por maus argumentos são uma realidade.

A Casa não pode ser tomada pela irracionalidade.

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  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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