Opinião

A decisão de Toffoli sobre dados sigilosos e o respeito à lei acima de tudo e de todos

Autor

  • Antonio Ruiz Filho

    é advogado criminalista e presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv). Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e diretor da Secional paulista da OAB e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

2 de agosto de 2019, 14h09

O preâmbulo da Constituição Federal institui um Estado Democrático destinado a assegurar liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. A consecução destes objetivos está imbricada com o respeito à lei, acima de idiossincrasias ou predileções. 

A igualdade de todos perante a lei; a liberdade de expressão, de credo, de pensamento, de imprensa; o direito à propriedade, ao sigilo e à intimidade; o devido processo legal e direito ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, enfeixam um conjunto de valores que permitem concluir que a nação brasileira está sob a égide de legítimo Estado Democrático de Direito e que, portanto, preserva os direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Respeitadas estas balizas, não há como desvirtuar a nossa democracia. Afastar-se delas põe em risco tudo que conquistamos e integra o ideário nacional, apesar de nem sempre existir clareza no seio da sociedade sobre os rumos a seguir.

Quem não estiver satisfeito com esse arcabouço jurídico deve organizar-se politicamente para alterar o sistema legal, mas nunca atuar para subvertê-lo. Não há outra hipótese, senão o império da lei, a que todos estamos submetidos, mesmo quando não nos agrade ou deixe de contemplar todas as nossas vontades. A submissão ao Estado de Direito não é homenagem à passividade, mas decisão voluntária, que visa a atingir os mais elevados anseios sociais em atendimento ao bem comum.

O Supremo Tribunal Federal, nesse contexto, além de servir como instância recursal, exerce papel indispensável de guardião dos valores e garantias, e precisa ser prestigiado nesta condição de resguardar tudo quanto temos de mais caro, pois seu enfraquecimento milita em detrimento de todos, expondo a perigo os bens cuja missão é proteger.

Não obstante as decisões adotadas pelo STF estarem no cume da autoridade cogente, num ambiente de livre pensamento e democracia harmoniosa, é possível escrutinar seus julgamentos e rogar por soluções que sejam fiéis ao texto da Constituição da República. Afinal, os ministros que o integram são humanos e passíveis de erro, apesar de profundamente versados no direito e, seguramente, imbuídos de fazer o melhor julgamento.

Nesse patamar de respeito à autoridade do Supremo Tribunal Federal, pode-se apontar algumas decisões controversas. Cabe observar que a literalidade do artigo 144 da Constituição reserva à polícia a competência para apurar infrações penais, e não ao Ministério Público, embora o STF tenha outorgado aos seus membros poderes de investigação, assim afetando a necessária paridade de armas em prejuízo da defesa, quando ambos são partes em ações penais públicas. A Corte também flexibilizou a presunção de inocência, cujo conceito está diretamente relacionado com o trânsito em julgado, nos termos do artigo  5º, LVII, da CF. Recentemente, interpretou existir crime de homofobia sem tipo penal específico, havendo quem diga que tal decisão esteja em contraposição ao princípio da legalidade, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina.  

Aliás, relativizar a lei penal e o seu processo não é apanágio do STF. Trata-se de verdadeira pandemia, o que transforma a Justiça criminal num faz de contas interminável. As regras precisam ser claras, e seu cumprimento inexorável, não apenas para a acusação, mas principalmente em benefício da defesa, sob pena de não se produzir a segurança jurídica que o sistema judicial dedicado à persecução penal precisa inspirar. A Justiça criminal vista por uma ótica utilitária não presta bons serviços à sociedade, antes maculando os seus mais elevados interesses.

O estrito cumprimento a uma regra legal, ainda que por esse vão possa escapar um possível infrator, está dentro dos ditames da melhor Justiça. O reverso disso seria aderir à nefasta teoria de que os fins justificam os meios — que parece tão em voga ultimamente.

A decisão adotada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, de suspender o andamento de procedimentos penais, em que tenham existido a transferência de dados sigilosos sem controle do Poder Judiciário, pode ser tomada como exemplo, nada importando quem seja o autor do pedido. Está conforme a lei processual, que expressamente admite a medida quando se trate de tema de repercussão geral (art. 1.035, § 5º, do CPC). E o que é mais importante, está em perfeita sintonia com a Constituição Federal (art. 5º, X e XII, da CF), que protege a intimidade e o sigilo das pessoas, direitos fundamentais dos quais não se pode abrir mão sem abalar os pilares da democracia e do próprio Estado de Direito.

Ao contrário da argumentação ad terrorem, posta a serviço daqueles que defendem seu próprio e ilimitado poder, a decisão do ministro Toffoli não impede nenhuma investigação criminal, mas apenas condiciona a quebra do sigilo à devida autorização judicial, isto até que sobrevenha decisão final do plenário do STF, que haverá de ser no mesmo sentido. Para a tutela desse bem inerente à cidadania, pouco importa que se percam algumas investigações ou anulem-se alguns processos e até condenações, o que faz parte do cotidiano de qualquer Justiça. Sempre foi assim e não há como evitar. Erraram os que descumpriram regra elementar. Premente se faz consertar o erro, e essa profilaxia não vai determinar o fim do combate à criminalidade, longe disso.

O afastamento de um direito fundamental como o sigilo, para permitir providências de ordem criminal, é tarefa do juiz. Assim, preocupa verificar que – do mesmo modo que injustamente os advogados são acusados de atrapalhar o andamento da Justiça – agora parece que até os juízes atrapalham ou impedem o trabalho dos donos de todas as virtudes.

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    é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Foi conselheiro e diretor da seccional paulista da OAB e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas. Também foi diretor adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) por duas gestões.

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