Direito em transe

Os crimes do AraraquaraGate: parte I, os hackers

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

1 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
Noticia-se que quatro pessoas teriam se unido para invadir celulares de servidores públicos e autoridades, com objetivos ainda incertos, salvo pelo interesse em dar publicidade a conversas entre integrantes da famosa força-tarefa Lava Jato em Curitiba. Foram presos temporariamente por crime cibernético e organização criminosa. O recipiente do material colhido de celulares da referida força-tarefa foi o Intercept, cuja figura pública mais conhecida é o jornalista Glenn Greenwald. Com o desenrolar inicial das investigações pós-prisão, informam que um dos hackers teria invadido o celular da ex-deputada Manoela D’Ávila, com quem teriam mantido contado, e quem teria intermediado o contato com Greenwald. Também circulou a notícia de que o Ministro Moro teria entrado em contato com parte das autoridades interceptadas, dando a notícia de que o material apreendido seria destruído. Houve reações públicas diversas, inclusive com ajuizamento de pedidos ao Judiciário para que evitar esse desfecho.

Vários crimes foram aventados nas referidas notícias. Mas afinal, quais crimes poderiam ter sido cometidos por esses personagens do que chamarei aqui de AraraquaraGate?

Comecemos pelos ditos hackers.

A Lei Carolina Dieckmann introduziu no Código Penal o artigo 154-A, que criminaliza, no que interessa ao caso, a invasão de dispositivo informático alheio, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, desde que presente a finalidade de obter dados ou informações sem autorização do titular do referido dispositivo.

Em que pese não haver uma definição clara do quanto seja um dispositivo informático, parece razoável entender que o celular multifuncional (smartphone) atenda aos requisitos mínimos, já que tem alta capacidade de armazenamento e processamento de dados eletrônicos, inclusive com ampla conectividade a redes, inclusive à Internet.

Assim, os ditos hackers incidiriam, em tese, no artigo 154-A, que prevê pena de detenção de três meses a um ano, e multa. Essa figura, sempre bom lembrar, é crime de menor potencial ofensivo, e autoriza composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, e, via reflexa, não autoriza prisão cautelar, nem temporária, tampouco preventiva.

Há, no mesmo artigo, uma forma qualificada para a hipótese de a invasão resultar em obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas. Nesse caso, a pena passa a ser de reclusão, de seis meses a dois anos, e multa. Continua sendo um crime de menor potencial ofensivo, e admite todas as figuras alternativas ao processo e à prisão mencionadas acima para a forma simples do delito.

Mas não é só. Há duas causas especiais de aumento de pena que parecem ter relevância ao caso.

Aumenta-se a pena de 1/3 a 2/3, se houver transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos.

Isso aumentaria a pena maior pena mínima possível para 10 meses – a permitir a suspensão condicional do processo – e a maior pena máxima possível para 3 anos e 4 meses, a afastar, portanto, a composição e a transação.

A outra causa de aumento de pena relevante – a se confirmar a invasão do celular do Presidente da República – é de 1/3 à 1/2 , precisamente pela condição do invadido.

Para evitar aumento em cascata, primeiro se somam as frações de aumento, para depois aplicá-la à pena cominada no tipo penal; trocando em miúdos: a maior pena possível, em abstrato, passa a ser aquela desenhada no art. 154-A – 2 anos para a forma qualificada – acrescida de 7/6, resultado da soma de 2/3 (maior causa de aumento n. 1) e 1/2 (maior causa de aumento n. 2).

O número final – se a matemática não me trai – é: maior pena mínima possível: 1 ano 1 mês – descartada a suspensão condicional do processo – e a maior pena máxima possível: 4 anos e 4 meses.

Por que torturo o leitor com contas tão chatas?

Por que a pena máxima dos crimes dos Araraquarahackers é decisiva para a próxima questão: pode-se falar em organização criminosa?

Isso porque o tipo de organização criminosa tem definição legal própria e, assim, sujeita à legalidade estrita: é preciso haver a associação estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, de 4 ou mais pessoas, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos.

Comecemos do fim para o começo.

Os Araraquarahackers buscavam, em tese, cometer infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos?

A resposta imediata, pelas contas feitas acima, parece ser sim.

Mas há, aqui, um certo incômodo dogmático, por assim dizer: não basta que a organização buscasse cometer 1 ou 2 crimes específicos, pré-determinados, porém um número incerto de delitos, no plural. Isso tem relação com a natureza organizada e expectativa de durabilidade das organizações.

Parece razoável supor que o grupo buscasse cometer delitos vários, na forma qualificada, e até mesmo com a causa de aumento de pena atinente à divulgação a terceiros. Mas poderíamos dizer o mesmo quanto à causa de aumento dedicada a determinadas vítimas qualificadas pelo alto posto público ocupado? Em outras palavras, seria possível, no caso em análise, dizer que cometiam crimes de invasão de dispositivo informático do Presidente da República ou de outros servidores públicos protegidos de maneira especial pela norma penal?

Usemos outro exemplo, para ilustrar o incômodo: um grupo organizado com vistas a cometer um número indefinido e constante de furtos não é uma organização criminosa, já que a pena máxima desse delito não é superior a quatro anos. Se, incidentalmente, cometer um furto durante o repouso noturno, cuja máxima passaria a ser maior do que 4 anos, passaria a ser uma organização criminosa?

Tendo a concluir que não, já que a gravidade particular da associação criminosa qualificada não se faria presente. A preponderar a centralidade do bem jurídico na compreensão da tipicidade, em sua dimensão material, então a gravidade dos delitos-fim do agir estruturado da organização há de ser compreendida de maneira substantiva, e não incidental.

Há outro ângulo a ser considerado, nesse particular: o STJ é firme na compreensão de que às causas de aumento de pena não se aplica apenas o critério objetivo, aritmético: “o aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes”(HC 508700/RJ, Rel. Ribeiro Dantas, j. 11.6.2019). Bem verdade que as majorantes no delito de roubo estão todas contidas no mesmo locus da norma incriminadora, um pouco diferente do art. 154-A, mas o horizonte interpretativo parece manter-se aplicável.

De qualquer forma, restaria, por certo, o artigo 288 do Código Penal, já chamado de formação de quadrilha, e rebatizado de associação criminosa.

E aqui, curiosamente, surge um certo paradoxo criado pela jurisprudência.

A lista de crimes que autoriza a prisão temporária contém a associação criminosa, mas não o crime de organização criminosa. Esse argumento foi usado pelo Min. Gilmar Mendes ao conceder habeas corpus ao ex-governador do Paraná Beto Richa, incidental na ADPF 444, em setembro de 2018.

O paradoxo seria o seguinte: se enquadrada, provisoriamente, a conduta como organização criminosa, a temporária não teria lugar, porém as sanções são mais severas; do contrário, desclassificada para “mera” associação criminosa, menos grave, a temporária seria, em tese, cabível.

Há, porém, delitos que não guardam adequação aos fatos até aqui descritos.

Não se cuida do art. 10 da Lei n. 9.296/96, já que nada aponta que tenha havido interceptação de comunicações, o que pressuporia apreensão de conteúdo em tempo real, de informações ou dados em trânsito, porém de obtenção de mensagens já armazenadas nos dispositivos informáticos.

E muito menos há falar em terrorismo ou figuras da Lei de Segurança Nacional.

A Lei n. 13.260/2016, demanda dois componentes para que uma ação se entenda como terrorista, ambas ausentes no caso em análise: a) razões de xenofobia ou discriminação; e b) finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

Já a Lei de Segurança Nacional tem um único tipo que poderia se aproximar do evento em estudo: “art. 13 – Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único – Incorre na mesma pena quem: I – com o objetivo de realizar os atos previstos neste artigo, mantém serviço de espionagem ou dele participa”.

Como uma breve leitura revela, nos fatos em apuração não se encontram a) presença de governo ou grupo estrangeiro, ou grupo de existência ilegal; b) dados ou informações sigilosas no interesse do Estado brasileiro, ambos no marco da ideologia da segurança nacional.

Em resumo: os Araraquarahackers, a se confirmarem os elementos até agora conhecidos, terão incorrido, em tese, no tipo do art. 154-A, na forma qualificada, com aumentos de pena. Se tiver havido coordenação efetiva e divisão de tarefas, pode-se falar em associação criminosa, mas não vislumbro os elementos fortes de uma organização criminosa.

A possível responsabilidade criminal dos integrantes do Intercept, de Manoela D’Ávila, do Delegado responsável pelas investigações e do Ministro Moro serão discutidas na sequencia, em outro artigo, aqui na ConJur.

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