Opinião

A antipolítica que politiza o Direito — uma autêntica corrupção sistêmica

Autor

  • André Portugal

    é advogado sócio do Klein Portugal mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário.

28 de abril de 2019, 6h29

O significado das palavras é conferido pelo uso que lhes é dado por uma determinada comunidade de falantes. E é somente a partir desse mínimo denominador comum de sentido que alguma comunicação se faz possível. Ou seja, embora possa haver vários usos para um mesmo termo, certamente há usos compartilhados, sobre os quais é possível algum consenso.

“Política”, por certo, figura entre as palavras cujo uso conferido pela comunidade brasileira foi submetido a uma relevante subversão. Se, idealmente, esse uso poderia ser identificado como uma busca pelo bem comum na esfera pública, especialmente desde 2013, ele tem sido associá-lo a sinônimos como “troca espúria de favores” e “corrupção”.

Esse exasperado, embora compreensível, movimento de ressignificação teve consequências relevantes: novos atores e nem tão novos remédios surgiram para refundar o que seria um sistema inteiramente viciado. Naturalmente, o antídoto à “política”, entendida naqueles termos, não poderia estar senão numa boa dose de “antipolítica”, cujo rebento, dizia-se, seria uma nova forma de se fazer política.

Apropriada por postulantes a cargos eletivos e membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, sobretudo a partir da operação “lava jato”, a “antipolítica” foi elevada à expressão máxima de legitimidade discursiva no país. A tônica passou a ser a seguinte: toda crítica à operação, às medidas em seu âmbito adotadas e ao discurso antipolítico que lhe é inerente não poderia se fundamentar senão em autointeresse e desonestidade. Seria, portanto, fatalmente ilegítima.

Defender a importância da política e apontar vícios na operação “lava jato” tornaram-se, com isso, condutas socialmente reprováveis. De uma luta contra um modus operandi corrupto e corruptor, a antipolítica converteu-se em investida direta contra tudo o que tenha sido simplesmente tocado pelo sistema político, este um Rei Midas às avessas.

A ordem do dia da antipolítica é mesmo recriar o sistema à imagem e semelhança de sua retórica, o que careceria não apenas de novos rostos para representá-lo, mas também de um novo Direito, não conivente com a corrupção.

No entanto, para o bem ou para o mal, o Direito tem a sua gênese em decisões democráticas e, portanto, políticas. É sobretudo a política que, na Assembleia Constituinte, dialoga com o Direito e estabelece o procedimento por meio do qual o sistema jurídico deve se construir e reconstruir.

Niklas Luhmann diria que o respeito a esse procedimento, especialmente, é o que confere legitimidade ao Direito posteriormente criado: em síntese, é porque se tem por estabelecido como as normas jurídicas devem ser criadas que se pode separar o que integra o sistema jurídico daquilo que dele não participa. O que é Direito daquilo que não é, por outras palavras.

O consenso sobre esse procedimento peculiar e institucional de criação de regras jurídicas é o que nos permite concluir que uma regra moral ditada, por exemplo, apenas no âmbito de uma dada comunidade religiosa, não integra o sistema jurídico. Ao mesmo tempo, é por causa desse consenso que podemos afirmar, com segurança, que o texto constitucional não será alterado a não ser pelo rito legislativo previsto para tanto, de modo que qualquer pretensão de modificá-lo fora do procedimento constitucionalmente estabelecido seria, na pior das hipóteses, uma pretensão fadada ao insucesso.

A institucionalização do procedimento, com o qual o sistema jurídico se constrói e se reconstrói, em suma, o diferencia dos demais sistemas sociais, como a moral, a religião e a economia. E é a partir dessa peculiaridade que ele exerce a sua função como sistema social, a saber, a de estabilizar expectativas de comportamento, que pode ser resumida, muito a grosso modo, como a ideia de que a todo cidadão deve ser permitido saber, com razoável segurança, o que é juridicamente permitido e o que é juridicamente proibido.

Alterar — ou refundar, como se preferir — o sistema jurídico envolve, portanto, respeito aos procedimentos que ele mesmo estabeleceu. Naturalmente, no entanto, uma tal refundação não é tarefa fácil, já que ela demanda quóruns de deliberação elevados, assim como uma reformulação substancial dos quadros que compõem o parlamento, para formar essa maioria necessária.

Esse diagnóstico levou representantes desse movimento antipolítico à opção por um caminho alternativo e heterodoxo, sobretudo a partir da operação “lava jato”: a refundação deveria se iniciar no bojo dos processos judiciais, e por meio de decisões judiciais.

Assim, se a resposta determinada pelo sistema jurídico não lhes apetecesse, ao invés de alterá-lo pela via legislativa e procedimentalmente legítima, lhes competiria, na condição de seguidores de um imperativo moral, torcê-la, distorcê-la e desfigurá-la até que se alcançasse o resultado interpretativo pretendido. Ou, então, simplesmente ignorá-la, como se essa resposta inexistisse, já que o resultado pretendido deveria sobre ela prevalecer. O procedimento constitucionalmente estabelecido pelo sistema jurídico, a rigor, passou a ser encarado como um desagradável entrave a essa necessária cruzada contra a corrupção.

O que se deve perceber, no entanto, é que, na medida em que propõe a implantação de um novo modelo regulatório/sancionatório e mesmo uma nova ordem moral para o país, a antipolítica é verdadeiramente política, do início ao fim. Assim, é apenas como uso retórico que se pode conceber o termo “antipolítica”.

A onda antipolítica e o desrespeito ao procedimento que ela pressupõe fizeram escola: no STF, por exemplo, enquanto alguns explicitamente assumiram essa retórica, encarando-a como o ingrediente que faltava para legitimar um ativismo que há tempos ali se instaurava, outros, contrários à antipolítica, passaram, não obstante, a respondê-la com a mesma moeda, jogando o seu jogo, não raro por meio de estratégicas decisões monocráticas, assim gerando um peculiar caos institucional. O resultado tem sido, fatalmente, além da perda de credibilidade social do Supremo Tribunal Federal, a formação de um cenário de desprezo generalizado pelas regras jurídicas e, consequentemente, pelo próprio Direito.

Essa aparente força gravitacional exercida pela “lava jato” foi o que se viu, por exemplo, no julgamento da constitucionalidade da execução provisória da pena, pelo Supremo Tribunal Federal, em que uma regra foi convertida em um princípio simplesmente para autorizar uma ponderação desprovida de qualquer método, assim como na divulgação, por magistrado de primeira instância, de conversas telefônicas da presidente à época, nas decisões monocráticas de ministros do STF vetando a nomeação de ministros de Estado, que é ato administrativo discricionário do chefe do Poder Executivo, ou mesmo quando das decisões que, durante e mesmo após as eleições, recolheram ao cárcere candidatos e antigos mandatários por fatos sobremodo antigos, desprezando o caráter eminentemente cautelar de prisões processuais. Vários outros exemplos poderiam ser mencionados.

O Direito tem, e cada vez mais, deixado de atuar como sistema autônomo, complexo e em sua função de estabilizador de expectativas. Aliás, nem sequer parece haver regras a serem respeitadas, para se poder falar em expectativas a serem estabilizadas. No lugar delas, parecemos tentados a vislumbrar um sistema funcionalmente diverso, recriado à imagem e semelhança de um projeto particular para o país, criado pelos membros dessa ilusória pauta antipolítica e aparentemente fundado em um único pretenso princípio, a saber, o da luta contra a impunidade, ao qual, a cada caso, todas as normas jurídicas deveriam sucumbir.

Parecemos, em suma, tentados a enxergar exatamente o que a antipolítica quer que enxerguemos: uma nova regra de reconhecimento, para usar os termos de Hart, segundo a qual “o direito é o que a voz uníssona da antipolítica disser que ele é”.

Num cenário de consolidação desse pretendido sistema, o Direito assumiria a função da política, descaracterizando-se, e a política deixaria de ser democrática, para se tornar juristocrática e, assim, distante de uma esfera pública plural e complexa. A tal metamorfose da política se daria mediante a consolidação de um sistema autoritário, moralista e de um discurso único. O lobo, não raro, veste a pele do cordeiro.

Daí é que, a despeito de pretender conferir maior autonomia ao Direito, a retórica antipolítica e o ativismo judicial que ela fundamenta têm gerado a sua mais ilegítima politização. Uma autêntica corrupção sistêmica.

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